terça-feira, 1 de abril de 2008
Panelas contra Cristina
Quando morei na Argentina, me impressionei com o número e variedade de protestos sociais que ocorrem no país. Praticamente todas as vezes em que passei pelo centro de Buenos Aires havia uma ou mais manifestações em andamento, fossem dos ambientalistas de Gualeguaychú, dos veteranos da Guerra das Malvinas ou das vítimas do corralito. Me sentia na França do século XIX. À época, havia tensão no ar com respeito à manipulação dos índices da inflação pelo governo, das dificuldades com o controle de preços e da insatisfação com a crise energética. Me perguntei quanto tempo demoraria até que as pessoas fossem às ruas contra os Kirchner. Resposta: um ano. A presidenta Cristina Fernández (como prefere ser chamada) agora enfrenta protestos duplos, mas interligados, dos produtores rurais e da classe média.
O estopim da crise foi a decisão do governo de aumentar os impostos sobre a exportação de grãos (soja, trigo, milho e girassol), que passaram de média de 35% para 44%, sendo que os percentuais aumentam à medida que sobe o preço dos produtos no mercado internacional. No caso da soja, carro-chefe do agronegócio argentino, quando a tonelada ultrapassa US$600, as autoridades federais abocanham nada menos que 95% da diferença.
Os produtores reagiram à medida bloqueando cerca de 90 estradas em 11 províncias, e paralização no comércio de carne e leite, o que provocou problemas de abastecimento e escassez de alimentos em várias cidades, inclusive na sempre turbulenta Buenos Aires. Daí os panelaços da classe média contra o governo, e as manifestações de apoio a Cristina Fernández organizadas pelos movimentos sociais, como piqueteros.
Para quem estuda a política argentina, a crise impressiona pelo modo como repete temas recorrentes da relação dos peronistas com o setor rural e a classe média. Perón se envolveu em problemas semelhantes quando criou um mecanismo de compras que fixava preço máximo para os produtos agrícolas, que eram adquiridos pelo governo e revendidos ao mercado internacional por um valor mais alto. A diferença era usada para financiar projetos de desenvolvimento industrial e as políticas sociais do presidente.
Os produtores rurais nunca engoliram Perón, mas não tinham tanto a se queixar dos Kirchner. Os governos de Néstor e Cristina coincidiram com um boom internacional pelas commodities agrícolas e minerais que constituem 2/3 das exportações argentinas. A política cambial de manter o peso subvalorizado, em 1/3 do valor do dólar, faz a festa dos exportadores. A contrapartida foi alta de impostos (de 20% para 35%) , fundamental para estabilizar o país no turbilhão pós-crise de 2001. Mas que são insuficientes para que o governo cubra suas despesas, que aumentaram muito em função de políticas sociais e subsídos à indústria. Daí nova alta na carga tributária. Perón reloaded.
Os movimentos sociais de cada país, e em cada época, tem seu repertório próprio de modos de ação. Na Argentina dos últimos 70 anos, os mais comuns foram greves e comícios, fruto da fortíssima tradição sindical do país. A partir de meados dos anos 90, começaram os bloqueios de ruas e estradas, algo que nasceu nas chamadas “puebladas”, as rebeliões em cidades do interior duramente afetadas pelas políticas de Menem. Quando a onda chegou em Buenos Aires, virou tsunami: presidentes como De La Rúa e Duhalde caíram porque não conseguiram lidar com os protestos populares.
Não me parece que a crise atual seja tão grave, mas sempre é ilustrativo observar como faz diferença o estilo político dos peronistas, sempre mais conflituoso e pouco propenso a dialogar e ceder, com a tradição brasileira de “vamos sentar para conversar e encontrar um consenso entre elites que permita a supressão do conflito antes que ele chegue ao povo”. Meus amigos argentinos costumam me perguntar qual considero o melhor. A virtude, já diziam os gregos, está no meio. Mas bem que podíamos contrair um pouquinho do vírus dos hermanos!
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6 comentários:
A cobertura brasileira desses acontecimentos tem tratado sempre a crise como um embate entre "o campo" e Cristina. Sendo que "o campo" são "pequenos, médios e grandes" produtores de commodities agrícolas.
Me parece que o termo "campo" é bem menos preciso do que "agronegócio".
Uma matéria legal do (meio decadente) Página 12 mostra que "o campo" não é tão homogêneo como as notícias brazucas (ou serão de agências internacionais?) dão a entender.
Dê uma olhada: http://www.pagina12.com.ar/diario/ultimas/20-101280-2008-03-25.html
Em outra matéria do mesmo jornal, há algumas denúncias sobre a formação de milícias por grandes proprietários, que cometem violência contra agricultores familiares e indígenas. Aqui:
http://www.pagina12.com.ar/diario/sociedad/3-94639-2007-11-14.html
Aliás, seria interessante saber quais são as políticas oficiais argentinas para a agricultura familiar. Aqui no Brasil, apesar do esplendor do agronegócio, do lobby ruralista e dos trangênicos, há bastante coisa interessante acontecendo.
Olá, Tiago.
O governo argentino tem oferecido algumas vantagens aos pequenos e médios produtores rurais, mas não se comparam aos programas brasileiros, como PRONAF.
Abraços
é... o campo não é homogêneo. Mas o La Nación e o Clarín chamaram a atenção para como as quatro associações agrárias se uniram nessa causa. O erro da Cristina foi não ter anunciado junto com o aumento dos impostos algumas medidas para o pequeno produtor.
abs
ah, importante lembrar que inclusive produtores não filiados a nenhuma das associações saíram às ruas protestando...
Olá, Barbara.
Pelo que acompanho, a presidenta anunciou algumas medidas beneficiando os pequenos produtores, mas em geral essas decisões têm sido consideradas insuficientes.
Abraços
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