sexta-feira, 11 de abril de 2008

Quando um Crocodilo Engole o Sol


A maioria de nós luta na vida para manter a ilusão de controle, mas na África essa ilusão é quase impossível... Na África, você não vê a morte do auditório da vida, como um espectador, mas sim nos bastidores, esperando apenas a sua vez de entrar. Você se sente perecível, transitório. Você se sente mortal. Talvez essa seja a razão por que na África parece que se vive mais vigorosamente. O drama da vida lá é amplificado pela proximidade constante da morte... As pessoas amam com mais intensidade lá. O amor é a maneira de a vida esquecer que é finita.

Peter Goodwin

É raro encontrar um livro sobre política africana contemporânea no Brasil, por isso foi uma agradável surpresa a publicação de “Quando um Crocodilo Engole o Sol”, do jornalista Peter Goodwin (clique no link para baixar o primeiro capítulo). Natural do Zimbábue, ele narra a história do colapso do país na última década, tendo como contraponto a decadência financeira e de saúde de seu pai e de sua mãe, com direito a uma revelação surpreendente sobre a origem da família. Os Goodwin deixaram a Europa após a Segunda Guerra Mundial e migraram para a então Rodésia como parte de uma leva de brancos pobres que se estabeleceu no que era uma razoavelmente promissora colônia britânica.

A maior parte dessa população comprou terras baratas e foi cultivar tabaco, mas os Goodwin são profissionais liberais – o pai, engenheiro, a mãe, médica. Tiveram três filhos no país. A família sofreu os efeitos da guerra civil, quando os negros lutaram e venceram o regime de minoria racial semelhante ao apartheid, liderado por Ian Smith. Uma das filhas dos Goodwin morreu no fogo cruzado entre o Exército e a guerrilha. Os outros dois, Peter e Georgina, viraram jornalistas cada vez mais críticos do regime estabelecido por Robert Mugabe (foto) e acabaram tendo que se exilar nos Estados Unidos e na Inglaterra.

Peter Goodwin é bom repórter e descreve os conflitos do Zimbábue atual: a insanidade da hiperinflação de 100.000% ao ano (só para comparar, no auge da loucura brasileira o índice foi próximo a "apenas" 3.000%), a repressão de Mugabe à oposição democrática, o flagelo da AIDS, a ascensão de uma elite corrupta e, sobretudo, as perseguições orquestradas pelo governo aos fazendeiros brancos. Esse é o aspecto político que mais ocupa espaço no livro, e é também seu ponto frágil.



Goodwin narra com precisão os sofrimentos de seus amigos – como ele, brancos de classe média alta e educação européia. São 5% da população. Mas os únicos negros descritos em detalhe no livro são os empregados dessas pessoas: jardineiros, cozinheiros, auxiliares tratados “quase como da família” e que recebem favores dos patrões. Invariavelmente, terminam traindo os chefes.

Impressiona como Goodwin se recursa a perceber o fosso de ressentimento que existe entre os dois grupos étnicos e insiste em tentar pintar um quadro idílico de um Zimbábue multirracial que só não se concretiza pela torpeza de Mugabe. Evidente que o ditador semeia no campo fértil dos ódios acumulados durante o período colonial, e manipula com habilidade esses sentimentos para se manter no poder. Afinal, é um país com 80% de desemprego, e com milhões de pessoas famintas, com raiva e uma expectativa de vida inferior aos 40 anos.

Podemos nos interessar por um país por diversas razões. O Zimbábue entrou no meu mapa por conta de amigas (negra e branca, esta descendendo de judeus bálticos que fugiram da turbulência da Rússia revolucionaria) que nasceram lá e que conheci na África do Sul. Como tantas de suas compatriotas de classe média, emigraram para a nação vizinha, cuja economia necessita de mão-de-obra qualificada. Ambas me falaram maravilhas sobre as belezas naturais do país e me garantiram que preciso conhecê-lo quando a ditadura acabar.

Os observadores internacionais nos dizem que Mugabe fraudou as eleições para garantir sua ida ao segundo turno. A campanha segue em clima tenso e com mais ataques aos fazendeiros brancos e à oposição. O cenário é pouco promissor, mas sigo na esperança de que um dia tomarei um vôo para Harare e confirmarei a opinião das minhas amigas.

5 comentários:

Anônimo disse...

Todos as ditaduras um dia passam, meu caro, nem que seja por conseqüência da morte do ditador...

É interessante que a visão crítica não tenha levado o autor a entender que "quase família" significa "estranhos dos quais temos algum grau de pena e por isso tratamos de forma um pouco menos desumana"...

Em relação ao acordo ortográfico de que o Mia Couto é crítico, e que vc comentou abaixo, acho uma iniciativa interessante. A homogeneização da escrita da língua certamente não acabaria com a critividade daqueles que a escrevem. Guimarães Rosa talvez seja paradigmático neste sentido...

Maurício Santoro disse...

Salve, meu caro.

Acho que foi você que comentou comigo sobre o romance indiano que falava da relação entre uma mulher de classe média e sua empregada, e que tinha virado best seller no Brasil... Essas coisas se repetem em muitas partes.

Ainda não conseguir formar opinião sobre o acordo ortográfico. Certamente não irei chorar pelo fim da trema, mas não está claro para mim os custos e benefícios do tratado, ou mesmo a necessidade dele, dada a facilidade com lemos obras em qualquer expressão do português.

Abraços

Tiago disse...

Segue aqui uma defesa do acordo ortográfico com argumentos interessantes. É um texto de Claudio Willer, publicado na revista Agulha:

http://www.revista.agulha.nom.br/ag62willer.htm

Maurício Santoro disse...

Olá, Tiago.

Concordo com os argumentos de Willer quanto às vantagens do intercâmbio entre escritores da mesma língua, mas não me fica claro pelo texto dele que essas trocas dependam, ou sejam facilitadas, por acordos de unificação ortográfica.

Gostaria de conhecer a história das negociações de acordos semelhantes para o espanhol e o alemão. Creio que não há nada parecido para o inglês.

Abraços

Bete Torii disse...

Meu caro amigo,

estou nas últimas páginas desse livro e creio seriamente que você não o leu inteiro ou não o leu com atenção. Por exemplo, não é nem de longe verdade que os únicos negros descritos no livro são empregados de europeus! O autor fala de vários amigos negros que estudaram com ele ou com sua irmã, trabalharam com sua mãe, ou que ele encontrou mais tarde em sua vida profissional. E esses negros são "simplesmente" ministros de Estado, médicos, jornalistas, pastores, presidente de empresa etc... Também não é verdade que a maioria dos empregados tenha traído seus patrões.

E um engano muito sério de sua parte é deixar implícito que "era natural que a população negra se revoltasse com uma situação que incluía inflação e desemprego mirabolantes, corrupção e outros males" - quando essas coisas começaram a acontecer a certa altura do governo de Mugabe, duas décadas após a libertação do país, e em uns 5 anos arrasaram com a economia, a agricultura, o turismo e o moral do país - que tinham melhorado enormemente ao longo de duas décadas após a libertação.

Ah, e a propósito, o nome do autor não é Goodwin, é Godwin.