quinta-feira, 10 de abril de 2008

A Margem que falta para sermos rio


Em minha casa, meu pai - que era e é poeta - deu o nome de Jorge a um filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação referencial. Recordo que, na minha família, a paixão brasileira se repartia entre Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não havia disputa: Graciliano revelava o osso e a pedra da nação brasileira. Amado exaltava a carne e a festa desse mesmo Brasil.

Assim o escritor moçambicano Mia Couto fala sobre a influência da literatura brasileira na África de língua portuguesa.

O tema me interessa desde que entrevistei o romancista angolano Pepetela, em meu tempo de repórter cultural, numa Bienal do Livro.

Tanto em Angola quanto em Moçambique, os jovens escritores que se apaixonavam pela literatura nos últimos anos do colonialismo buscavam inspiração nos autores do modernismo brasileiro. Pepetela coloca na boca de um personagem de “Geração da Utopia” elogios rasgados a Jorge Amado, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, destacando o uso criativo que fazem da língua oral e das imagens poéticas do cotidiano. O oposto do que os escritores africanos viam como as tradições engessadas da literatura portuguesa, que lhes era ensinada à força no currículo imposto por Lisboa.

As semelhanças culturais entre o Brasil e os países africanos são imensas e ao falar de Jorge Amado Mia Couto frisa o quanto o escritor foi importante para fazer seus colegas de outro lado do Atlântico descobrirem (ou inventarem?) a si mesmos:

Essa familiaridade existencial foi, certamente, um dos motivos do fascínio nos nossos países. Seus personagens eram vizinhos não de um lugar, mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente com as nossas raças passeavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam os nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses, ali estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume das nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós mesmos.

(...)

E nós precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes soubéramos ter...Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava ser nação. O Brasil - tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio.


Muita água passou pelo Atlântico desde então e hoje penso que a literatura mais bela que se faz em português é a que nos chega de Angola e de Moçambique: de Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Pepetela e outros craques.

Esses escritores situam suas histórias entre Luanda, Maputo, Lisboa, Rio de Janeiro, Recife... A arte aponta caminhos para as ciências sociais: só teremos a compreensão plena do que significa a aventura brasileira como nação quando a contextualizarmos dentro das dinâmicas sociais, culturais e econômicas do mundo banhado pelas múltiplas expressões da língua portuguesa, em particular o Atlântico Sul.

O potencial do olhar ampliado para o Brasil pode ser medido pela alta qualidade do trabalho de quem deu o salto: a triologia africana de Antônio Olinto, os estudos sobre a África de Gilberto Freyre (como "Aventura e Rotina"), a história do tráfico negreiro escrita por Luiz Felipe Alencastro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Uma pena que iniciativas como a CPLP fiquem em um segundo plano nessa iniciativa brasileira de aproximação com a África. Seria um grande vetor de integração...

Maurício Santoro disse...

Pois é, Igor. A CPLP é um pouco o patinho feio na política cultural brasileira, embora todo mundo diga que ela é importante.

Curiosamente, o Mia Couto tem sido bastante crítico de algumas iniciativas da CPLP, como a reforma ortográfica da língua portuguesa. Ele diz que isso é tirar a riqueza do idioma, que se manifesta nas variações locais.

Abraços