sábado, 31 de maio de 2008

Ritos de Passagem



O ciclo está completo. Após seis anos de estudos de pós-graduação, sou doutor em ciência política. Naturalmente, vai levar um tempo até me acostumar ao título, e quando telefonam procurando pelo “dr. Maurício”, minha primeira reação é dizer que foi engano. Quando penso em ritos de passagem, me vem à mente aqueles documentários sobre povos indígenas com um monte de rapazes tendo a pele lixada por couro de jacaré e depois mergulhando num poço de formigas carnívoras. Minha própria cerimônia foi muito diferente – sabem a quantas anda o preço do crocodilo? - e na realidade bem mais tranqüila e afetuosa do que haviam sido minhas experiências anteriores com mestrado e graduação.

Vários dos colegas comentaram que ficaram impressionados com a qualidade da banca. De fato, demorei diversos meses para realizar a defesa justamente porque fiz questão de reunir um grupo de professores que se destacasse pela especialização nos diversos aspectos abordados pela minha tese (relações internacionais, América do Sul, modelos de desenvolvimento). Uma bela supresa, não intencional, foi que eles representavam as três instituições nas quais fiz meus estudos de nível superior – UFRJ, IUPERJ e Torcuato di Tella. Foi a melhor educação que o dinheiro podia comprar no Brasil, e na Argentina. Com a ressalva, fundamental, de que foi toda ela gratuita. Sou mais um beneficário dos que os franceses chamam de “elevador republicano”, uma experiência que deixou em mim, acredito que para toda a vida, a crença na educação pública como o mais importante dos direitos de cidadania.

Um amigo que defendeu seu próprio doutorado há pouco tempo tinha me aconselhado a curtir bastante o momento: “Você terá vários especialistas discutindo seu trabalho em detalhes por uma tarde. É uma sensação gostosa, você verá, aproveite esse instante!”. Tinha recebido a dica com ceticismo, mas comprovei que é verdade. Poucas coisas são tão estimulantes para um pesquisador do que ouvir críticas construtivas, feitas com boa vontade e num ambiente de respeito profissional, que realmente iluminam problemas do texto, abrem outras perspectivas e levam o trabalho adiante.

Muitas pessoas se surpreendem que eu tenha cursado o doutorado ao mesmo tempo em que trabalhava em três empregos. Por estranho que pareça, acho que foi essa intensa atividade profissional que me deu a tranqüilidade (financeira e psicológica) para me dedicar aos estudos. O maior medo que vejo entre os doutorandos brasileiros é o de não conseguir emprego após a defesa, o que faz com que muitos adiem a conclusão de suas pesquisas. Mas é claro que tive dúvidas sérias entre igressar no doutorado ou me dedicar só ao trabalho e no fim o que me decidiu foi o carinho e o incentivo incomparáveis que sempre recebi dos professores e colegas do IUPERJ.

Ninguém se faz sozinho e a vida da gente não é só a vida da gente. Minha escolha de pesquisar a América do Sul se deu num contexto político e acadêmico muito rico, em que a região despontou como centro de atenções para a opinião pública e que no IUPERJ se refletiu na criação do Observatório Político Sul-Americano e em colegas escrevendo teses sobre Argentina, Chile, Venezuela. Na cerimônia de defesa, meu orientador chamou a atenção para a importância de os acadêmicos brasileiros façamos o esforço para compreender o continente, e através de um olhar que busque escapar dos preconceitos nacionalistas e adote enfoque mais regional.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O Haiti e a Crise das Missões de Paz



Ontem o presidente Lula fez uma visita-relâmpago ao Haiti, onde criticou a falta de apoio da comunidade internacional (leia-se, os países ricos) à Minustah, missão de paz que o Brasil comanda por lá, e afirmou que os esforços brasileiros teriam chegado ao “segundo tempo do jogo”, chegando a hora de investir em infra-estrutura e desenvolvimento. A operação multinacional liderada pelo país resultou em muitos ganhos, mas depois de quatro anos a realidade haitiana continua sombria, marcada pela pobreza extrema, fome e instabilidade política. A visita presidencial ocorre em meio a mais um escândalo envolvendo as missões de paz da ONU: as acusações de envolvimento dos capacetes azuis com exploração sexual de crianças e adolescentes, inclusive no Haiti.

O que o Brasil e os demais parceiros na Minustah conseguiram é impressionante. Em 2004, o Haiti enfrentava uma situação de caos social e violência de rua, em meio a conflitos envolvendo o governo e gangues que misturavam criminosos comuns e opositores políticos. De lá para cá, a segurança melhorou muito, inclusive em áreas perigosas como a favela Cité Soleil. Eleições reconduziram ao poder o presidente René Preval. Entretanto, o aspecto econômico não prosperou. Apesar de bons projetos de cooperação e desenvolvimento local, a situação continua miserável para a maioria da população, com a fome agravada pela alta dos preços dos alimentos, que levou a grandes protestos (foto abaixo).

As missões de paz da ONU foram concebidas originalmente na década de 1950 para lidar com crises muito específicas. Basicamente, consistiam em colocar em campo tropa que pudesse mediar cessar-fogo já assinado em dois exércitos inimigos – a operação de Suez (1956-1967) entre Egito e Israel, é o exemplo clássico. No fim dos anos 1980, o escopo das missões se alargou muito, com diversas atuações no Camboja, na Namíbia e em El Salvador nas quais a ONU assumiu tarefas governamentais, como realização de eleições, condução de ministérios-chave, policiamento etc. Tais tarefas continuaram a aumentar na década seguinte, no Kosovo, em Timor Leste e outras partes, sem que houvesse o crescimento correspondente do orçamento para tais missões, nem o treinamento de pessoal qualificado.



Um dos clichês da segurança internacional pós Guerra Fria, em particular após o 11 de setembro, é que a estabilidade política tem múltiplas dimensões e que só pode ser alcançada por atuações conjuntas no campo militar e do desenvolvimento sócio-econômico. Fala-se muito hoje em dia nos “Estados fracassados” como sendo grande fonte de ameaças à paz, e da importância de empreender projetos de “reconstrução nacional”. Mas há poucos estudos, para não falar de recursos concretos e exemplos práticos, de casos bem-sucedidos.

O Haiti reproduz em miniatura desafios que aparecem em escala muito mais assustadora no Afeganistão e no Iraque. Me parece que o governo brasileiro entendeu bem que a Minustah é uma experiência importante para a criação de modelo próprio de missões de paz, no qual se destacaria a ênfase nos aspectos sociais e na cooperação militar entre os países da América do Sul – sobretudo Brasil, Argentina e Chile.

A ONU e os países ricos têm falhado em estar à altura desses desafios, contribuindo com os recursos financeiros e técnicos necessários para o desempenho das tarefas - mês passado deveria ter havido conferência de doadores para o Haiti, cancelada por falta de interessados. O descalabro dos abusos sexuais cometidos pelas tropas de paz é apenas o ponto mais sombrio de diversos problemas que incluem a arrogância e o desrespeito com que os profissionais da cooperação muitas vezes tratam a população com quem precisam lidar.

terça-feira, 27 de maio de 2008

A Raiz das Coisas


Ontem à noite fui ao coquetel de lançamento do livro "A Raiz das coisas - Rui Barbosa, o Brasil no mundo", do embaixador Carlos Henrique Cardim, que dirige o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Ministério das Relações Exteriores. Conheci o embaixador Cardim quando, num momento de desvario, fez parte da banca que me concedeu o Prêmio América do Sul por meu estudo sobre os movimentos sociais na Bolívia. Apesar de tais credenciais, trata-se de exemplo de diplomata-acadêmico afável e dedicado, que realizou importantes trabalhos quando esteve à frente da Editora da Universidade de Brasília.

Para o Itamaraty, Rui Barbosa é um patrono que só perde em importância para o Barão do Rio Branco. O motivo da devoção é a participação que o jurista teve na Segunda Conferência de Paz da Haia, em 1907 - a estréia brasileira nos fóruns multilaterais. O principal tema daquele encontro foi a criação de uma espécie de super tribunal internacional, que acabou não se concretizando. No entanto, a atuação de Rui Barbosa prenunciou diversas posições que o Brasil adotaria depois na Liga das Nações e na ONU, sobretudo no que diz respeito à igualdade entre as nações no âmbito do multilateralismo.

Rui Barbosa foi muito admirado pelos conteporâneos, mas depois da Revolução de 1930 foi posto, em grande medida, em descrédito, como representante de uma tradição jurídica afastada da realidade concreta do país, excessivamente retórica e pouco analítica. É célebre a anedota sobre diplomata brasileiro na ONU que sempre citava a "Águia de Haia", levando um colega estrangeiro a perguntar ao seu secretário se aquela era a ave típica brasileira. Ora, um dos pontos altos do coquetel de lançamento foi ouvir meu velho mestre de filosofia política, Wanderley Guilherme dos Santos, questionar essa interpretação, chamando a atenção para a necessidade de estudar os líderes e instituições da I República com olhar mais livre de preconceitos.



Me parece que algo do gênero já começa a acontecer com Rui Barbosa. O criador do Supremo Tribunal Federal está sendo revalorizado por seus embates em defesa dos direitos individuais, quando mais não seja porque o STF se tornou o guardião da Constituição de 1988 e com a adoção da súmula vinculante e da repercussão geral, sua influência só aumenta. Até a política que ele lançou quando ministro da Fazenda, o "encilhamento", tem sido olhada com mais simpatia, como pioneiro esforço de industrialização do país.

O livro de Cardim recorre a uma impressionante documentação - a obra de Rui Barbosa está sendo republicada, já são mais de 160 volumes e ainda não está completa! - que ilumina os debates entre o jurista e o Barão do Rio Branco sobre as posições brasileiras na conferência da Haia, mostrando a alta sintonia existente entre ambos. O embaixador mostra a importância que as negociações tiveram para o Brasil, que buscava então, como hoje, maior projeção nos assuntos internacionais. Há interessantes análises sobre como a erudição de Rui Barbosa e seu talento retórico eram venerados pela imprensa brasileira, que via neles algo como a compensação pelo sentimento de inferioridade que o país tinha (e tem) diante da opinião pública da Europa e dos EUA.

Cardim também destaca a importância de Rui Barbosa para a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial, e o acompanhamento detalhado que o jurista fazia do conflito. Comentei com o embaixador que esse ponto fora cobrado na prova de história deste ano para o acesso ao Itamaraty, assim como a conferência da Haia havia sido em 2007.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Unasul


Desde o início da década de 1990, a política externa brasileira tem sido marcada por iniciativas que buscam abarcar toda a América do Sul e aumentar a coordenação política do continente para posicionamentos comuns em temas da agenda internacional. De lá para cá foram assinados tratados de livre comércio entre o Mercosul e os países da Comunidade Andina, lançados projetos para integração da infra-estrutura e para a cooperação na região amazônica. São muitas ações, às vezes dispersas e que pouco dialogam entre si. Dessa perspectiva, faz todo o sentido para o Brasil a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, em dezembro de 2004, que em 2007 foi rebatizada como União das Nações Sul-Americanas (Unasul). Na última sexta, os presidentes dos países da região se reuniram em Brasília e assinaram o tratado que formaliza a Unasul. Michelle Bachelet foi escolhida como a primeira presidente da instituição, depois que Álvaro Uribe recusou o convite.

Ainda não está claro para mim qual o papel efetivo que a Unasul poderá desempenhar na articulação das posições sul-americanas em fóruns multilaterais como ONU e OMC. Há clivagens na região em torno de assuntos controversos como a assinatura de tratados de livre comércio com os Estados Unidos e o conflito armado na Colômbia. Ao mesmo tempo, os últimos anos mostraram convergências expressivas nos diálogos sobre integração, com o intercâmbio econômico entre os países da região aumentando muito, na esteira da alta dos preços das commodities de exportação. As nações do continente têm crescido a taxas altas, entre 5% e 10% ao ano, e com certeza podem se beneficiar de diálogos de melhor qualidade em áreas como energia e finanças, nas quais a integração deu poucos passos. No mais, é a concretização sul-americana de tendências rumo ao aprofundamento do regionalismo, como se observa na União Européia, na União Africana e mesmo na Ásia (Apec, Asean).

A imprensa deu destaque, a meu ver exagerado, ao Conselho de Defesa não ter sido criado no encontro de sexta-feira. O tema tem seu próprio ritmo, ditado em grande medida pelo desenrolar da situação colombiana e de seus impactos na Venezuela e no Equador. De uma perspectiva otimista, é o campo onde a ação concertada da América do Sul mais pode trazer benefícios imediatos, colocando algodão entre os delicados cristais andinos.Cito a coluna desta segunda de mestre Segio Leo:

Para garantir a presença maciça, Lula mobilizou até aviões da FAB (e o Orçamento federal), que buscou os presidentes da Guiana, Suriname e Peru. Evitou que o equatoriano Rafael Correa cumprisse a ameaça de contestar o acordo; em um café da manhã, alertou a Correa, a Chávez e ao boliviano Evo Morales do risco de isolar o colombiano Álvaro Uribe. Se não evitou troca de farpas entre Uribe e Corrêa, patrocinou até um espantoso aperto de mãos entre os presidentes da Venezuela e da Colômbia, que, até a véspera, trocavam insultos. Abre-se, com a Unasul, um espaço, ainda que acidentado, para prevenir ou amenizar as crises políticas no continente.

Mas o ministro da Defesa, Nelson Jobim, neófito na diplomacia, criou a expectativa de que se assinaria, durante o encontro, a criação do polêmico Conselho de Defesa Sul-Americano. O tema estava fora da agenda, e, ao entrar, deu à reunião um tom - falso - de fiasco diplomático.


De um ponto de vista puramente acadêmico, acompanhar o desempenho do Brasil na Unasul será interessante para avaliar os custos e benefícios da liderança diplomática do país. As teorias de Charles Kindleberger, Robert Keohane e Robert Gilpin nos dizem que um dos papéis de maior relevância dos líderes é criar instituições que gerem bens públicos - paz, segurança, prosperidade - para todos os membros envolvidos. Esses autores pensam nos EUA após a Segunda Guerra Mundial, mas suas idéias podem ser adaptadas ao Brasil no contexto da América do Sul.

Acredito que o país terá dois desafios principais na Unasul. Primeiro, ter a maturidade para perceber que a organização se destina à melhoria do diálogo na região, e que seria um erro transformá-la em plataforma para confrontar-se com os Estados Unidos numa espécie de jogo de soma zero, em que aproximar-se do Brasil significaria afastar-se dos EUA. Já ouvi muito diplomata veterano colocando as coisas nesses termos e costumo citar Joaquim Nabuco, que chamava a atenção justamente para esse risco. Segundo, o Itamaraty precisará de mais capacidade de ouvir a sociedade, para convencer a opinião pública da importância do projeto regional para os interesses nacionais brasileiros.

domingo, 25 de maio de 2008

A Morte de Tirofijo


O governo colombiano anunciou ontem a morte de Tirofijo, também conhecido por Manuel Marulanda, nome de batismo Pedro Antonio Marin, o fundador e líder das FARCs. Ele teria falecido de causas naturais, provavelmente infarto, há dois meses. É o golpe mais duro na sucessão de derrotas que a guerrilha tem sofrido em 2008, e que já resultaram na eliminação de metade de seu secretariado-geral.

Ainda não há confirmação para a morte de Tirofijo, mas rumores quanto a ela já corriam há bastante tempo, devido à ausência de aparições públicas do líder das FARCs. Era quase certo de que ele estava muito doente e de que não mais exercia papel relevante na liderança prática da guerrilha, permanecendo muito mais como uma figura simbólica.

A vida de Tirofijo ilustra os momentos mais dramáticos da convulsionada Colômbia. Ele começou na luta armada nas guerrilhas ligadas ao Partido Liberal, em 1948, após o assassinato de Gaitán e a eclosão do Bogotazo. Radicalizou-se ao longo dos anos e se tornou comunista, menos influenciado por Marx e Lênin e mais pela situação de miséria e violência endêmica da zona rural colombiana.

O guerrilheiro foi um dos principais articuladores do envolvimento das FARCs com o narcotráfico e da estratégia de seqüestros políticos promovidos pela organização. Sua atuação nos processos de paz sempre foi controversa e as conseqüências de sua morte dividem os analistas: um grupo acredita que facilitará o desmonte da guerrilha, outra corrente afirma que não irá interferir muito.

Segundo o governo colombiano, as FARCs nomearam Alfono Cano sucessor de Tirofijo. O outro líder de destaque da guerrilha é Jorge Briceño, mais conhecido como Mono Jojoy. Nenhum deles tem o prestígio e o poder do falecido comandante e é bastante provável que, no curto prazo, as FARCs se tornem ainda mais fragmentadas, quem sabe até com a divisão em grupos rivais.

Enquanto isso, ganha força a campanha pelo terceiro mandato de Uribe, e o governo colombiano acusa parlamentares da oposição de ligações com as FARCs.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Idéias, Diplomacia e Desenvolvimento



Está quase no fim. No próximo dia 30 será a defesa da minha tese de doutorado: “Idéias, Diplomacia e Desenvolvimento: política externa argentina de Menem a Kirchner”. Nestes dias tomei as últimas providências, como preparar a apresentação de power point para a ocasião e encomendar o serviço de coquetel, porque ninguém é de ferro...

A tese tem cerca de 150 páginas, pequena para os padrões do IUPERJ, onde os trabalhos desse tipo costumam ter o dobro, ou até o quádruplo, do tamanho! Vícios de repórter, que fez o aprendizado profissional limitado por algumas dezenas de centímetros na página do jornal do dia seguinte. A tese foi escrita em nove meses, tempo curto que me permitiu entregá-la no prazo regulamentar de quatro anos – algo que só 25% da minha turma conseguiu cumprir.

São cinco capítulos. O primeiro trata das bases teóricas do “realismo periférico”, a doutrina de política externa implementada no governo Carlos Menem (1989-1999) e continuada a contragosto no mandato seguinte, de Fernando de la Rúa (1999-2001). Consistiu numa leitura liberal da história contemporânea argentina, criticando o modelo de desenvolvimento por substituição de importações, o distanciamento dos Estados Unidos e as relações conturbadas com Brasil e Chile. O receituário: reformar a economia com base no Consenso de Washignton e promover a integração regional como primeiro passo para uma liberalização comercial mais ampla, que culminaria na adesão a um acordo com os EUA.

Os capítulos 2 e 3 tratam das agendas bilaterais da Argentina com os Estados Unidos e o Brasil. Argumento que a aproximação a Washington levou benefícios em termos do aumento dos investimentos e do comércio, mas que os ganhos foram em grande medida eliminados por erros da política econômica, como a sobrevalorização extrema do peso e a falta de atenção aos problemas sociais, como o aumento do desemprego. Também afirmo que o discurso da aliança com os Estados Unidos foi matizado por distanciamentos práticos em questões importantes, como o combate ao narcotráfico e ao terrorismo, e que as posições na ONU foram moderadas, mais próximas ao Brasil e ao Chile.

No que diz respeito à formação do Mercosul, meu ponto principal é que houve contradições entre o ótimo impacto do bloco para o comércio exterior argentino e as tensões entre os modelos de desenvolvimento da Argentina e do Brasil, com este país mantendo muito do ativismo estatal na economia e o governo Menem insistindo na possibilidade de acordos com os Estados Unidos.

O capítulo 4 é um estudo sobre a grave crise argentina de 1998-2002 e seu impacto para as relações internacionais do país. Analiso as razões do colapso da economia e examino como o turbilhão levou ao descrédito do realismo periférico e à retomada da integração com o Brasil. Destaco a fragmentação e instabilidade crescente do sistema político argentino, com o surgimento de novos movimentos sociais (piqueteros, o sindicalismo mais autônomo da CTA) e reviravoltas nos principais partidos, com o surgimento de siglas.

O último capítulo aborda o governo Kirchner. Argumento que sua frágil base doméstica o levou a posturas confrontacionistas na política externa, com EUA, Chile e Uruguai. O mesmo ocorreu incialmente com o Brasil, mas as divergências foram superadas, em grande medida. Abandonou-se o regionalismo aberto e buscou-se integração mais próxima aos padrões do desenvolvimentismo. Novos atores regionais entraram em cena, como Venezuela e México.

Concluo afirmando que o debate argentino sobre política externa é inseparável da discussão sobre modelo de desenvolvimento, mas que a instabilidade do país impediu a formulação de estratégias de longo prazo para ambos. No entanto, chamo a atenção para a prevalência da integração sul-americana na agenda diplomática da Argentina. A questão é definir qual será o papel do país na região, o que passa por clarificar qual o lugar que ocupará diante da ascensão internacional do Brasil.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Osorio e as Guerras no Prata



A semana que passei na Academia Militar foi também excelente oportunidade para conhecer melhor a história e as tradições do Exército. Coincidiu que minha leitura por estes dias fosse “General Osorio”, biografia recém-lançada do oficial cuja trajetória se confunde com a formação das Forças Armadas do Brasil. O autor é o historiador Francisco Doratioto, que escreveu uma já clássica história da Guerra do Paraguai.

Estranhei que Doratioto optasse por biografar Osorio, e não o Duque de Caxias, mas ele explica na introdução do livro que no século XIX Osorio era muito mais popular. Vindo de baixo, do ambiente dos peões gaúchos, tinha mais empatia com a tropa do que Caxias, que era da aristocracia militar. Segundo Doratioto, o duque só se tornou figura de culto nacional a partir do Estado Novo (1937-1945), porque Vargas buscava um general que simbolizasse o poder central forte. Osorio, liberal que sempre defendeu o federalismo e a descentralização, e chegou a lutar ao lado da Revolução Farroupilha, não se prestava ao papel.

Osorio era fruto da turbulenta fronteira sul, sempre em disputa entre Espanha e Portugal, e depois palco de conflitos entre os novos países. Estreou como soldado lutando na então província Cisplatina do Brasil, atual Uruguai, contra tropas portuguesas que se opunham à independência. Depois voltou àquele território, mas para combater a população local e seus aliados de Buenos Aires, que buscavam se libertar do Império. O resultado foi a criação do Uruguai.



O Rio Grande do Sul foi província muito particular no Brasil, com tradição guerreira e de autonomia com relação ao governo central. Nos anos difíceis de consolidação do Estado nacional, era fonte permanente de revoltas. A mais famosa e longa foi a Farroupilha (1835-1845), que começou como rebelião contra abusos fiscais da Corte, e logo virou movimento separatista e republicano. Osorio lutou com os insurgentes no primeiro momento, mas depois retornou para o lado do Império. A revolta foi o divisor de águas em sua carreira, em especial quando virou homem de confiança de Caxias, que o promoveu repetidas vezes. Mas a pecha de republicano enrustido ficou com ele para sempre, e era com freqüência usada por seus adversários na monarquia.

No Exército, mesmo hoje em dia, o Rio Grande do Sul ocupa um lugar de destaque. São muitos oficiais gaúchos e conversei com eles sobre Osorio – muitíssimo admirado por todos, inclusive é o patrono da cavalaria, a arma por excelência dos pampas. No século XIX a região que engloba Rio Grande do Sul, Uruguai, as províncias argentinas de Corrientes e Entre Ríos e o Paraguai era uma terra de fronteiras ainda indefinidas, lealdades regionais fortes e uma cultura comum transnacional, fascinante. Líderes como Osorio tinham amigos, aliados e propriedades em vários países. Ele realizou missões de espionagem na Argentina e no Uruguai, monitorando a situação política local e as conseqüências para o Brasil.

O período das guerras no Prata (1820-1870) é um dos menos estudados na história diplomática brasileira, mas foi essencial para a formação do país. O Brasil buscou impedir que a Argentina reunisse novamente os territórios do antigo Vice-Reinado do Prata (que incluía também Paraguai, Uruguai e partes da Bolívia) e tentava manter o acesso aos rios da região, fundamentais para se alcançar as províncias do centro-oeste, como Mato Grosso. O auge dessas lutas foi a guerra contra a Argentina (1852) e, claro, a Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870). Osorio foi importante em todas, em especial nesta última, em que chegou a comandar o Exército.

Muita coisa mudou na América do Sul e hoje os antigos rivais são parceiros no processo de integração regional do Mercosul. Na própria Academia Militar, há convívio intenso entre cadetes de vários países do continente. Em minhas aulas aos cadetes, ressaltei que os militares que proclamaram a República no Brasil se formaram na dura experiência das guerras no Prata. Sabiam a importância de manter boas relações com os países vizinhos e promoveram a chamada “americanização da política externa brasileira”, reforçando os vínculos na América do Sul. Neste ano que se comemora o bicentenário de nascimento de Osorio, é uma lição sempre útil para recordar.

sábado, 17 de maio de 2008

Academia Militar



Passei a semana na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), ministrando curso de introdução às relações internacionais aos cadetes do último ano. O convite, gentilíssimo, me foi feito pelo Exército e faz parte do esforço que a instituição tem realizado, em diversas de suas escolas, para se aproximar da comunidade acadêmica.

Montei equipe de quatro professores, todos doutorandos em ciência política ou relações internacionais e preparamos um curso de 20 horas de duração, com cinco focos: 1) Introdução Histórica; 2) Teoria; 3) ONU; 4) Integração Regional na Europa e América do Sul; 5) Política Externa Brasileira. O conteúdo geral é semelhante ao que fazemos nas universidades e cursinhos em que lecionamos, nosso desafio é adaptar o conhecimento às perspectivas e interesses dos cadetes.

Os militares brasileiros passam a vida estudando e realizando cursos de especialização. A AMAN forma os cadetes para serem tenentes, líderes de pequenos grupos. Alguns anos depois serão promovidos a capitão e irão para a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, no Rio de Janeiro. Dali em diante, depende da progressão da carreira de cada um. O Exército tem se envolvido de maneira crescente em atividades internacionais – missões de paz da ONU, aditâncias militares em mais de 30 países, manobras conjuntas e intercâmbios de oficiais, os pelotões especiais de fronteira – de modo que as perspectivas para os cadetes são muito interessantes.



A formação da AMAN dura quatro anos e mistura conteúdos acadêmicos e militares. Os cadetes estudam história, economia, filosofia, direito e também precisam escolher uma especialização militar, chamada de arma, quadro ou serviço. É uma das decisões mais importantes da vida de um oficial, porque não pode ser mudada. Algumas tratam das funções que costumamos considerar como sinônimos do Exército (infantaria, cavalaria, artilharia, material bélico, engenharia de combate) enquanto outras envolvem técnicas também presentes na sociedade civil (intendência, comunicações). O modelo brasileiro difere, por exemplo, das academias dos EUA, que oferecem diversas graduações universitárias e treinamento militar básico, complementado posteriormente pelo curso em um dos Fortes que preparam infantes, artilheiros etc.

A estrutura, organização e qualificação profissional que se encontra na AMAN é impressionante. A academia é, com toda a razão, um dos orgulhos do Exército e creio que poucos países fora do mundo desenvolvido dispõem de uma escola de formação tão sofisticada. As instalações são bonitas, muito bem-cuidadas e incluem salas de aula, alojamentos, um teatro de primeiríssimo nível, parques onde se realiza o treinamento militar, quadras para diversos esportes, estandes de tiro e estábulos com cerca de 200 cavalos. O que mais impressiona é o fato do projeto básico ser da década de 1930 – tributo à visão de um excelente oficial, o marechal José Pessôa, e do esforço de modernização do Estado empreendido na Era Vargas. A AMAN tem cerca de 1.750 cadetes, incluindo alunos de diversos outros países da América do Sul, da África de língua portuguesa e dos EUA. Contando com os demais militares e seus familiares que vivem ao redor da academia, o complexo abriga uma pequena cidade de 12 mil pessoas.

A AMAN é um posto cobiçado no Exército e os professores com quem temos contato são excelentes, em geral oficiais superiores (tenente-coronéis e coronéis) que serviram em missões nos EUA, na África e em outros países da América Latina e que são de uma simpatia e gentileza extraordinárias. O general que comanda a academia conversou e jantou consoco em diversas ocasiões e compartilhou sua experiência como professor em West Point e as negociações internacionais das quais participou como secretário-geral do Exército.

É raro que a AMAN tenha professores civis, de modo que para os cadetes a experiência de ter aula conosco foi marcada por curiosidade. Acredito que se gerou também grande simpatia entre a equipe de professores e os alunos. Ajudou o fato de que as idades são muito próximas – os docentes temos entre 29 e 31 anos e a maioria dos nossos alunos deve andar pela faixa dos 22, 23. Um deles me contou que havia uma aposta rolando a respeito da minha idade, e que a média andava em torno de 35, erro que credito a todo mundo parecer mais velho quando usa terno preto e fala sobre política internacional.

Os cadetes são bem preparados e estamos todos muito satisfeitos com a participação e o interesse que têm demonstrado pelo curso – algo notável, já que eles estão a seis meses de formatura, com a cabeça em outras coisas, e nossa matéria não vale nota. Os temas que mais os entusiasmam são as crises políticas na América do Sul, as missões de paz e a questão do Conselho de Segurança da ONU. Vários demonstram interesse em aproximar-se do mundo civil, cursar pós-graduação em relações internacionais e entender o que a sociedade espera deles como oficiais militares, e quais as expectativas e imagens que os outros países têm do Brasil.

É um prazer ajudá-los e conversar com eles sobre seus projetos e aspirações.Retorno à AMAN amanhã à tarde, porque ainda lecionarei por lá na segunda e na terça. Foto de abertura: cadetes formando para o rancho. Foto 2: formatura em homenagem ao dia da arma de Comunicações.

terça-feira, 13 de maio de 2008

A Nova Política de Desenvolvimento



Escrevi neste blog que pobre receber dinheiro do governo é clientelismo, mas quando o mesmo ocorre com os ricos, chamamos de política industrial. E no caso da nova política de desenvolvimento produtivo, anunciada nesta segunda, a Bolsa Família para o setor empresarial é da marca Louis Vuitton. Afinal, são R$210 bilhões até 2010, mais R$24 bilhões em renúncia fiscal. Os incentivos oficiais incluem crédito barato, redução de tributos, estímulos para investimento em pesquisa e inovação tecnológica, auxílio para aumentar as exportações e práticas de substituição de importações em áreas estratégicas como a indústria farmacêutica. No total, são beneficiados 24 setores da indústria e dos serviços, numa escala abrangente que o presidente Lula comparou aos Planos Nacionais de Desenvolvimento da ditadura militar (não foi ironia, o PT agora chora de saudade cada vez que alguém fala de Geisel, ou até de Médici, com uma ou outra exceção como a ministra Dilma Roussef).

Toda política desse tipo envolve a seleção de segmentos/empresas que serão privilegiados - pick up the winners, como dizem os americanos. O risco de seleção adversa é grande. O que começa como algo grandioso, como "fomentar uma área estratégica" facilmente pode se transformar num conluio entre Estado e grandes grupos empresariais para transferir dinheiro público para os amigos do rei, garantindo a sobrevivência de negócios pouco competitivos graças aos favores da Corte. O Brasil acumula tanto experiências bem-sucedidas de política industrial (Embraer) quanto fracassos antológicos (informática, telefonia). O quadro foi melhor nos países do Leste da Ásia, como a Coréia do Sul, porque lá a ênfase nas exportações obrigou as empresas a competir no exterior, mesmo que beneficadas por práticas corruptas domésticas. No Brasil, até a década de 1990, a economia fechada criou uma barreira que protegeu muitos incompententes.

A nova política tem inovações interessantes, como a meta de estimular as produtoras de software, mas também vem carregada dos velhos vícios do modelo brasileiro. Um dos problemas é quem irá fiscalizar a avassaladora corrente de dinheiro público que o BNDES irá transferir para o setor privado, a custos baixos. Os repetidos escândalos de corrupção e favorecimento no banco mostram os problemas da estratégia. Outra questão: é legítimo dar esse tipo de subsídio para grandes empresas perfeitamente capazes de captar recursos no mercado financeiro privado, como a Vale? Não seria melhor que a ação do Estado se focasse em quem mais precisa, como as pequenas e médias firmas?

O Roda Viva de ontem foi como o Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge (foto) - jornalista que virou executivo da indústria siderúrgica e do setor bancário. Os entrevistadores eram amigos e colegas de Jorge e os questionamentos foram muito leves, pouco mais do que plataformas para que o ministro prometesse que irá apurar os abusos. Mas não se discutiram as bases nas quais a nova política foi concebida.

Os entrevistadores ressaltaram dois pontos críticos. O primeiro, é que as iniciativas acabam sendo substitutos ou paliativos para a ausência de reformas estruturais como a redução da carga tributária e a melhoria da infra-estrutura. Vale ressaltar que elas teriam o ganho extra de beneficar toda a economia, e não só setores selecionados. Mas com os cofres públicos cheios, a possibilidade de empurrar negociações indesejáveis com a barriga é imensa. Melhor abrir a generosa bolsa do Estado e acalmar os ânimos.

O segundo ponto é que a política de desenvolvimento tenta lidar com problemas conjunturais que têm se agravado, como os juros e o câmbio, em especial esse último. O real já está há muito sobrevalorizado com relação ao dólar e a tendência é que a situação piore. No ano passado entraram cerca de US$35 bilhões em investimentos no Brasil, o valor provavelmente subirá com a obtenção do grau de investimento, fazendo a moeda se apreciar ainda mais. Nesse quadro, as exportações até conseguem crescer, mas as importações disparam num ritmo maior. Embora o ministro tenha dito que isso não é tão ruim, porque a maior parte seria em bens de capitais para modernizar a indústria, o efeito é a deterioração da balança de pagamentos, com a possibilidade de déficits comerciais.

Espero agora pelo anúncio do Ministério da Fazenda sobre os detalhes a respeito do Fundo de Riqueza Soberana que o Brasil irá criar com o objetivo principal de alavancar as empresas brasileiras que atuam no exterior. A bolsa do governo é um saco cheio de bondades, pelo menos para aqueles que conseguem ter acesso a ela.

domingo, 11 de maio de 2008

Por que democracia?


Televisão e direitos humanos não são expressões que costumo citar na mesma frase, mas em boa hora o Canal Futura exibe a série "Por que democracia?". Trata-se de um projeto internacional que reúne 10 documentários realizados com o objetivo de iniciar uma "conversa global" sobre o tema. Até agora assisti a seis programas e gostei de todos.

O melhor deles é "Por favor, vote em mim" que usa uma pioneira eleição para representante de turma numa escola primária da China como microcosmo dos desafios e possibilidades da construção da democracia no país. As crianças, de 8 anos, são incrivelmente articuladas e falantes, mas a disputa eleitoral é barra-pesada, com direito a manipulações para matar qualquer político clientelista de inveja. Impressiona como os pais se envolvem em todo o processo e estimulam os garotos e competir selvagemente entre si.

Outro destaque do projeto é "Jantar com o Presidente", em que uma ativista liberal se encontra com o presidente do Paquistão e com os líderes tribais da turbulenta fronteira do país com o Afeganistão. A conclusão é que uma ditadura militar pode não ser o pior dos mundos... Uma perspectiva diferente é do filme sobre o Egito, "Estamos Vigiando Você", no qual um grupo de militantes pró-democracia questiona o governo secular e autoritário do país e rejeita sua pretensão de ser a única barreira à ascensão do fundamentalismo islâmico.

O encontro difícil entre o mundo desenvolvido e o desenvolvimento aparece em dois documentários, um que trata da polêmica sobre os cartuns dinamarqueses sobre o Islâ, outro que aborda as torturas praticadas pelas autoridades dos EUA nos suspeitos de terrorismo. Há ainda um filme sobre a Rússia pós-soviética que mostra a força política do novo nacionalismo, que mistura religião ortodoxa, culto ao Estado e desprezo ao Ocidente.

Ainda não vi todos os filmes e estou especialmente curioso para ver os que abordam América Latina, Índia e África.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A Guerra do Futebol



O nome Ryszard Kapuscinski pode parecer um exercício cruel de soletrar consoantes, mas seus aficcionados o venerávamos como o decano dos correspondentes internacionais e um mestre do jornalismo literário. Nascido na Polônia, ele se celebrizou cobrindo revoluções e golpes de Estado, sobretudo na África, mas também na Ásia e na América Latina. Kapuscinski morreu ano passado, deixando vasta obra, que aos poucos começa a ser publicada no Brasil. A Companhia das Letras já lançou por aqui “Imperium” (painel da Rússia contemporânea), “Ébano” (relato das aventuras africanas do autor), “O Imperador” (perfil do monarca da Etiópia), “Minhas Viagens com Heródoto” (misto de reportagem e ensaio histórico) e agora saiu “A Guerra do Futebol”.

Como as demais obras de Kapuscinski, esta é uma coletânea de textos curtos – pequenas reportagens, perfis de pessoas pitorescas, descrições de hóteis ou cidades. Apesar do título referir-se ao conflito entre Honduras e El Salvador, a maior parte do livro trata da África nos primeiros anos das independências, ou seja, a década de 1960. Temos uma narrativa primorosa do caos no Congo após o assassinato de Patrice Lumumba, os conflitos na Argélia que levaram ao golpe contra Ben Bella, a descrição do triunfo político de Kwame Nkrumah em Gana (ainda hoje, dos mais admirados estadistas do continente), a anatomia das origens do apartheid na África do Sul e a guerra civil entre ibos e iorubás na Nigéria.

O texto que batiza o livro é a narrativa do caos em que se travou a guerra do futebol, com a explicação de sua causa real - a tensão provocada pela migração em massa de camponeses salvadorenhos para Honduras, e a decisão do governo deste país de realizar uma reforma agrária às custas dos estrangeiros indesejáveis. Há também artigos sobre a fracassada guerrilha na Bolívia e a persistência da pobreza e da desigualdade no México e no Peru, mas estão longe de serem os melhores do livro. Por fim, estão breves reportagens sobre o Oriente Médio, que tratam dos palestinos e dos sírios na Guerra do Yom Kippur e do conflito entre gregos e turcos na ilha de Chipre.

O trabalho de Kapuscinski às vezes é polêmico, com acusações de que ele distorceria a realidade para ressaltar os aspectos mais exóticos dos países que visita, visando a impressionar seus leitores no mundo desenvolvido. Talvez seja o caso em alguns momentos, mas leio Kapuscinski em busca do talentoso contador de histórias, e não para procurar análise imparcial e objetiva. Leiam, por exemplo, sua descrição dos bares africanos:

O bar é uma segunda casa. Na casa mesmo não dá para ficar, porque ela é apertada demais - é triste, cinzenta, pobre... A casa é confinamento, enquanto o bar oferece liberdade. No bar há sempre muitas palavras... Ali, acerta-se o preço de uma noite de amor, acolá se elabora o plano de uma revolução, ao lado alguém recomenda um feiticeiro e, mais ao longe, contam que houve uma greve.

Há ótimas razões para seguir lendo Kapuscinki. Espero que o próximo de seus livros a ser lançado por aqui seja “Another Day of Life”, seu relato sobre a independência e a guerra civil de Angola.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Sempre a Relação Especial



O Valor desta terça traz uma reportagem interessante sobre as relações entre Brasil e EUA, citando documentos diplomáticos que foram recentemente liberados para consulta pública. São relatos de conversas entre autoridades dos dois países, que mostram o alto grau de colaboração entre o Planalto e a Casa Branca em temas sensíveis como as crises na Venezuela e na Bolívia e as perspectivas da transição política em Cuba.

A reportagem está como a mais acessada do dia no site do jornal, talvez pelo título para lá de chamativo (“Lula ofereceu ajuda aos EUA para deter Chávez”). O conteúdo integral é exclusivo para assinantes, mas reproduzo os trechos mais relevantes:

Condoleezza introduziu o assunto dizendo a Dirceu que o Brasil precisava mandar uma "mensagem clara" para Chávez. Dirceu respondeu afirmando que Lula já aconselhara o líder venezuelano a moderar sua retórica, avisando Chávez que ele estava "brincando com uma arma carregada", segundo o informe.

(...)

Os documentos abrem uma fresta que ajuda a entender a evolução das relações do Brasil com os Estados Unidos e seus vizinhos nos primeiros anos após a chegada de Lula ao poder. Eles mostram que o presidente cortejou o apoio dos americanos desde o começo, apresentando-se como um parceiro confiável, que podia ajudá-los a manter a estabilidade na América Latina.

(...)

Conquistar a boa vontade dos americanos era crucial para o novo presidente naquela altura. "Sabíamos que íamos enfrentar uma situação muito difícil no primeiro ano de governo e manter uma relação normal com os Estados Unidos era muito importante", disse Dirceu ao Valor, numa entrevista recente. "Abrir uma frente externa que se transformasse num problema era a última coisa que precisávamos."


Durante boa parte do século XX, a elite brasileira acreditou (ou procurou) ter uma “relação especial” com os EUA, com base no comércio entre os dois países e nas características do Brasil como um gigante em território, população e, a partir dos anos 50, economia. Esse vínculos foram uma “aliança não-escrita” nos tempos do barão do Rio Branco, e depois se tornaram um pacto formal, quando tropas dos dois países lutaram juntas contra o nazi-fascismo no Atlântico Sul e na Europa.

Contudo, esse paradigma entrou em crise à medida que o desenvolvimento econômico brasileiro avançava e se colocavam ambições maiores para o país, que quase sempre se traduziram na busca de mais autonomia, de papéis de liderança na ONU, na África e no Oriente Médio, dos esforços para criar tecnologias próprias em áreas estratégicas (energia nuclear, aviação, telecomunicações, informática, indústria bélica) e em projetos de consolidação de influência na América do Sul, nunca bem-vistos pelos EUA. Mesmo no auge do neoliberalismo dos anos 90, eram Argentina e México que se aproximavam dos Estados Unidos, o Brasil mantinha certa distância e procurava que o Itamaraty chamava de “autonomia por integração”, isto é, a aposta em acordos internacionais multilaterais como uma certa margem de manobra com relação a Washington.

A política externa de Lula retomou pontos tradicionais da agenda diplomática mais autonomista. O curioso é que conseguiu compatibilizar essas posições com um alto nível de cooperação com os EUA. A meu ver, por duas razões: 1) No pós 11/09, os interesses primordiais de Washington estão na Ásia, e as crises na América Latina se tornaram aborrecimentos secundários. 2) A ascensão de governos latino-americanos à esquerda do PT fizeram Lula ser considerado bastião de estabilidade e confiança aos olhos da Casa Branca – algo reforçado, claro, pelas decisões do Planalto com relação à economia.

Dito de outro modo, o Brasil tem desempenhado na América Latina um papel de estabilização política e moderação de crises que os EUA não podem ou não querem ter, em função de suas turbulências no Iraque e no Afeganistão. A lista é longa: Haiti, Venezuela, Bolívia... Isso não significa que o Brasil seja um testa-de-ferro dos interesses de Washington, como às vezes é encarado no mundo hispano-americano. O país busca seus próprios interesses e age à sua maneira particular.

Relação deveras especial, e sempre interessante.

domingo, 4 de maio de 2008

Referendo em Santa Cruz



Certa vez eu estava em La Paz num almoço de trabalho com uma ONG local e perguntei a meus colegas qual o prato nacional do país, para experimentá-lo na refeição. Após uma discussão entre eles, me comunicaram que eu buscava uma quimera: "Aqui cada região tem seu prato próprio, não há um que seja representativo de toda Bolívia". Terminamos comendo num restaurante chinês, aliás excelente.

Evo Morales e a oposição a seu governo, infelizmente, não podem resolver suas diferenças com um simples frango xadrez. Hoje o departamento de Santa Cruz realizou referendo pela autonomia, que tudo indica ter terminado em vitória para os defensores dessa medida. O Estatuto aprovado pela votação dá ao governo local poderes ampliados sobre recursos naturais (gás, terra) e impostos.

Santa Cruz significa algo em torno de 25% da população, 30% do PIB e 40% da receita tributária da Bolívia. Se apenas esse departamento estivesse em conflito com o governo central, já seria um golpe duro para a estabilidade do país mais pobre da América do Sul. A situação é ainda mais grave pelo fato de que a Santa Cruz se juntam Beni, Pando e Tarija, que juntos formam a Media Luna, a porção oriental da Bolívia. Os três outros departamentos irão realizar seus referendos até o fim de junho.

O país havia votado um referendo nacional por autonomia, derrotado por pequena margem. Governo e oposição se comprometaram a discutir o tema na nova Constituição, que já está pronta mas ainda não entrou em vigor, porque depende da realização de mais um referendo. O problema é que a oposição não está de acordo com a nova Carta Magna e decidiu não aceitá-la. No que diz respeito à autonomia local, os críticos de Evo Morales consideram as normas constitucionais insuficientes, e acusam a Constituição de concentrar mais poderes nas mãos do governo central.

Pelas leis da Bolívia, os atuais referendos por autonomia são ilegais, e assim foram considerados pelos países vizinhos e pelas organizações internacionais, como a OEA. Há preocupações generalizadas entre as demais nações sul-americanas sobre as conseqüências de instabilidade política na Bolívia, ou mesmo da eclosão de um conflito violento. Argentina e Brasil temem a interrupção do fornecimento de gás e o surgimento de um fluxo de refugiados; o Chile, o retrocesso das promissoras negociações territoriais iniciadas com Morales; Peru e Equador, o impacto que a cartada da autonomia teria em suas próprias províncias; a Venezuela, o enfraquecimento do bloco político liderado por Chávez.

Cenário muito diverso daquele do período autoritário, quando o general Augusto Pinochet sonhava em criar a "nação camba" em Santa Cruz, fragmentando a Bolívia que lhe aborrecia pelas disputas de fronteiras.

Via de regra, os países sul-americanos apresentam grande desigualdade não só entre classes sociais e grupos étnicos, mas também entre regiões. Conflitos do tipo foram intensos na Bolívia do século XIX, mas diziam respeito ao declínio da elite baseada na mineração da prata (concentrada em Sucre e Potosí) e a ascensão da oligarquia do estanho (centrada em La Paz). O desenvolvimento acelerado do oriente boliviano, em particular Santa Cruz, é recente: data da segunda metade do século XX.

Há um certo discurso localista em Santa Cruz que pinta a região como lar de empresários dinâmicos, que carregam o peso de um Estado corrupto e ineficiente. Parece até um determinado ente da República Federativa do Brasil... Essa retórica optou por ignorar o papel decisivo do Estado central no desenvolvimento cruceño, com investimentos pesados em infra-estrutura e estímulo à agricultura, sobretudo na ditadura militar de Hugo Banzer, nos anos 70.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Na Conferência Nacional de Juventude



Passei os últimos dias em Brasília, como delegado na I Conferência Nacional de Juventude. Esse tipo de evento é característico da redemocratização brasileira e reúne representantes da sociedade civil e do poder público para debater algum tema setorial da ação do Estado. Em áreas como saúde e proteção à criança, a tradição já tem 20 anos, em direitos humanos a duração chega a dez. Outras, como segurança pública e juventude, experimentam seus primeiros passos. O que acontece numa conferência assim? E como é o trabalho de um funcionário de ONG no processo? Conto minha experiência, com a ressalva de que ela é atípica, bastante particular.

A Conferência Nacional foi a etapa final de longo percurso iniciado ano passado, que mobilizou cerca de 400 mil jovens em dezenas de conferências prévias, nos estados e municípios, sendo que as primeiras elegeram delegados para o encontro em Brasília. Houve também as chamadas “conferências livres” que foram organizadas exclusivamente pela sociedade civil e não tiraram delegados oficiais, apenas debateram idéias. Participei de uma no Rio de Janeiro e gostei bastante.

Fui para a nacional na condição de “delegado nato”, em função de ser integrante do Conselho Nacional de Juventude. O cargo significou que tive muitos afazeres na conferência, ajudando a organização do evento e funcionando em diversas ocasiões como um intermediário entre a sociedade civil e a comissão organizadora, principalmente no sentido de esclarecer dúvidas e receber queixas.

O Conselho está vinculado à Secretaria-Geral da Presidência da República e a pedido dos colegas nesse órgão acompanhei de perto os convidados internacionais à Conferência. Tivemos uma grande delegação dos países africanos de língua portuguesa e de Portugal, pois uma das prioridades governamentais é a cooperação no âmbito de políticas de juventude na Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Aprendi muito nas conversas com os amigos d´a lém de mar, em particular com os portugueses e moçambicanos, que tem tradição rica e interessante no campo juvenil.

Outra das minhas tarefas foi conversar com os representantes da Organização Ibero-Americana de Juventude, instituição criada na década de 1990, por iniciativa da Espanha, e na qual o Brasil se filiou recentemente. No âmbito da OIJ foi assinada a Convenção Ibero-americana dos Direitos da Juventude. O governo brasileiro firmou o tratado, e agora quer que o Congresso o ratifique para que ele possa entrar em vigor. Há uma avaliação positiva do acordo entre a sociedade civil, mas temos dúvidas se seria bom aprová-lo neste momento, pois muitos de nós pensam que seria melhor que o Legislativo resolvesse primeiro o marco legal das políticas de juventude – a proposta de emenda constitucional 138/03, o Estatuto e o Plano Nacional.

Destes, a prioridade da conferência foi sem dúvida a proposta de mudar a Constituição para incluir a expressão “jovem”, como marco de direitos específicos, à exemplo do que já existe com crianças e idosos. Aprovamos resolução pedindo urgência ao Congresso na aprovação da medida e participei da comissão que foi entregar a solicitação ao presidente da Câmara dos Deputados, bem como a demanda pela ratificação da covenção da ONU sobre direitos dos deficientes. Fomos recebidos com cordialidade, mas também ficou claro para nós que a pauta do Legislativo está difícil, obstruída há sete meses pela combinação da crise da CPMF com o excesso de medidas provisórias. E todos sabemos que o segundo semestre será complicado, por causa dos deputados e senadores que serão candidatos nas eleições municipais. Ainda assim, vamos pensar em maneiras de trabalhar com o parlamento, talvez pela realização de seminários e audiências públicas sobre o tema da juventude.

Em suma, tratou-se de uma semana de trabalho duro, mas gratificante e de muito aprendizado. Como acadêmico, o que mais me chamou a atenção foi como a fronteira entre política social e política externa está mais fluida, e de difícil definição. A experiência do diálogo sobre a convenção da OIJ me mostrou que negociar um tratado internacional de direitos humanos envolve afinar as posições da sociedade civil, de diversos órgãos do Executivo (no caso, Secretaria Nacional de Juventude e Ministério das Relações Exteriores), discutir a pauta do Legislativo e as conseqüências para o direito constitucional, pois desde a emenda 45 de 2004, se o acordo for ratificado com mais de 3/5 dos votos, ganha status constitucional, em vez de lei ordinária, como era anteriormente.