domingo, 4 de maio de 2008
Referendo em Santa Cruz
Certa vez eu estava em La Paz num almoço de trabalho com uma ONG local e perguntei a meus colegas qual o prato nacional do país, para experimentá-lo na refeição. Após uma discussão entre eles, me comunicaram que eu buscava uma quimera: "Aqui cada região tem seu prato próprio, não há um que seja representativo de toda Bolívia". Terminamos comendo num restaurante chinês, aliás excelente.
Evo Morales e a oposição a seu governo, infelizmente, não podem resolver suas diferenças com um simples frango xadrez. Hoje o departamento de Santa Cruz realizou referendo pela autonomia, que tudo indica ter terminado em vitória para os defensores dessa medida. O Estatuto aprovado pela votação dá ao governo local poderes ampliados sobre recursos naturais (gás, terra) e impostos.
Santa Cruz significa algo em torno de 25% da população, 30% do PIB e 40% da receita tributária da Bolívia. Se apenas esse departamento estivesse em conflito com o governo central, já seria um golpe duro para a estabilidade do país mais pobre da América do Sul. A situação é ainda mais grave pelo fato de que a Santa Cruz se juntam Beni, Pando e Tarija, que juntos formam a Media Luna, a porção oriental da Bolívia. Os três outros departamentos irão realizar seus referendos até o fim de junho.
O país havia votado um referendo nacional por autonomia, derrotado por pequena margem. Governo e oposição se comprometaram a discutir o tema na nova Constituição, que já está pronta mas ainda não entrou em vigor, porque depende da realização de mais um referendo. O problema é que a oposição não está de acordo com a nova Carta Magna e decidiu não aceitá-la. No que diz respeito à autonomia local, os críticos de Evo Morales consideram as normas constitucionais insuficientes, e acusam a Constituição de concentrar mais poderes nas mãos do governo central.
Pelas leis da Bolívia, os atuais referendos por autonomia são ilegais, e assim foram considerados pelos países vizinhos e pelas organizações internacionais, como a OEA. Há preocupações generalizadas entre as demais nações sul-americanas sobre as conseqüências de instabilidade política na Bolívia, ou mesmo da eclosão de um conflito violento. Argentina e Brasil temem a interrupção do fornecimento de gás e o surgimento de um fluxo de refugiados; o Chile, o retrocesso das promissoras negociações territoriais iniciadas com Morales; Peru e Equador, o impacto que a cartada da autonomia teria em suas próprias províncias; a Venezuela, o enfraquecimento do bloco político liderado por Chávez.
Cenário muito diverso daquele do período autoritário, quando o general Augusto Pinochet sonhava em criar a "nação camba" em Santa Cruz, fragmentando a Bolívia que lhe aborrecia pelas disputas de fronteiras.
Via de regra, os países sul-americanos apresentam grande desigualdade não só entre classes sociais e grupos étnicos, mas também entre regiões. Conflitos do tipo foram intensos na Bolívia do século XIX, mas diziam respeito ao declínio da elite baseada na mineração da prata (concentrada em Sucre e Potosí) e a ascensão da oligarquia do estanho (centrada em La Paz). O desenvolvimento acelerado do oriente boliviano, em particular Santa Cruz, é recente: data da segunda metade do século XX.
Há um certo discurso localista em Santa Cruz que pinta a região como lar de empresários dinâmicos, que carregam o peso de um Estado corrupto e ineficiente. Parece até um determinado ente da República Federativa do Brasil... Essa retórica optou por ignorar o papel decisivo do Estado central no desenvolvimento cruceño, com investimentos pesados em infra-estrutura e estímulo à agricultura, sobretudo na ditadura militar de Hugo Banzer, nos anos 70.
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