segunda-feira, 26 de maio de 2008

Unasul


Desde o início da década de 1990, a política externa brasileira tem sido marcada por iniciativas que buscam abarcar toda a América do Sul e aumentar a coordenação política do continente para posicionamentos comuns em temas da agenda internacional. De lá para cá foram assinados tratados de livre comércio entre o Mercosul e os países da Comunidade Andina, lançados projetos para integração da infra-estrutura e para a cooperação na região amazônica. São muitas ações, às vezes dispersas e que pouco dialogam entre si. Dessa perspectiva, faz todo o sentido para o Brasil a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, em dezembro de 2004, que em 2007 foi rebatizada como União das Nações Sul-Americanas (Unasul). Na última sexta, os presidentes dos países da região se reuniram em Brasília e assinaram o tratado que formaliza a Unasul. Michelle Bachelet foi escolhida como a primeira presidente da instituição, depois que Álvaro Uribe recusou o convite.

Ainda não está claro para mim qual o papel efetivo que a Unasul poderá desempenhar na articulação das posições sul-americanas em fóruns multilaterais como ONU e OMC. Há clivagens na região em torno de assuntos controversos como a assinatura de tratados de livre comércio com os Estados Unidos e o conflito armado na Colômbia. Ao mesmo tempo, os últimos anos mostraram convergências expressivas nos diálogos sobre integração, com o intercâmbio econômico entre os países da região aumentando muito, na esteira da alta dos preços das commodities de exportação. As nações do continente têm crescido a taxas altas, entre 5% e 10% ao ano, e com certeza podem se beneficiar de diálogos de melhor qualidade em áreas como energia e finanças, nas quais a integração deu poucos passos. No mais, é a concretização sul-americana de tendências rumo ao aprofundamento do regionalismo, como se observa na União Européia, na União Africana e mesmo na Ásia (Apec, Asean).

A imprensa deu destaque, a meu ver exagerado, ao Conselho de Defesa não ter sido criado no encontro de sexta-feira. O tema tem seu próprio ritmo, ditado em grande medida pelo desenrolar da situação colombiana e de seus impactos na Venezuela e no Equador. De uma perspectiva otimista, é o campo onde a ação concertada da América do Sul mais pode trazer benefícios imediatos, colocando algodão entre os delicados cristais andinos.Cito a coluna desta segunda de mestre Segio Leo:

Para garantir a presença maciça, Lula mobilizou até aviões da FAB (e o Orçamento federal), que buscou os presidentes da Guiana, Suriname e Peru. Evitou que o equatoriano Rafael Correa cumprisse a ameaça de contestar o acordo; em um café da manhã, alertou a Correa, a Chávez e ao boliviano Evo Morales do risco de isolar o colombiano Álvaro Uribe. Se não evitou troca de farpas entre Uribe e Corrêa, patrocinou até um espantoso aperto de mãos entre os presidentes da Venezuela e da Colômbia, que, até a véspera, trocavam insultos. Abre-se, com a Unasul, um espaço, ainda que acidentado, para prevenir ou amenizar as crises políticas no continente.

Mas o ministro da Defesa, Nelson Jobim, neófito na diplomacia, criou a expectativa de que se assinaria, durante o encontro, a criação do polêmico Conselho de Defesa Sul-Americano. O tema estava fora da agenda, e, ao entrar, deu à reunião um tom - falso - de fiasco diplomático.


De um ponto de vista puramente acadêmico, acompanhar o desempenho do Brasil na Unasul será interessante para avaliar os custos e benefícios da liderança diplomática do país. As teorias de Charles Kindleberger, Robert Keohane e Robert Gilpin nos dizem que um dos papéis de maior relevância dos líderes é criar instituições que gerem bens públicos - paz, segurança, prosperidade - para todos os membros envolvidos. Esses autores pensam nos EUA após a Segunda Guerra Mundial, mas suas idéias podem ser adaptadas ao Brasil no contexto da América do Sul.

Acredito que o país terá dois desafios principais na Unasul. Primeiro, ter a maturidade para perceber que a organização se destina à melhoria do diálogo na região, e que seria um erro transformá-la em plataforma para confrontar-se com os Estados Unidos numa espécie de jogo de soma zero, em que aproximar-se do Brasil significaria afastar-se dos EUA. Já ouvi muito diplomata veterano colocando as coisas nesses termos e costumo citar Joaquim Nabuco, que chamava a atenção justamente para esse risco. Segundo, o Itamaraty precisará de mais capacidade de ouvir a sociedade, para convencer a opinião pública da importância do projeto regional para os interesses nacionais brasileiros.

7 comentários:

Sergio Leo disse...

Agradeço a generosidade; o título indevido, atribuo à amizade, caro mestre. Compartilho suas dúvidas, e, agora que li, suas opiniões sobre o futuro da Unasul. Dependendo do que for feito dela, pode ser uma grande sacada para a liderança brasileira; ou mais um fantasma no purgatório das instituições sem importãncia que povoam a história da região....

Nicole disse...

Mestre, fui ver Persepolis no cinema este fim de semana e achei a sua cara. Não sei se já saiu por aí, mas se tiver a chance de assistir, faça-o!

Anônimo disse...

Maurício,

A incorporação da sociedade civial à agenda diplomática tem-se mostrado como uma evolução natural nesse campo da política internacional.

A idéia é consonante com vários discursos do Celso Amorim, que sempre aponta a necessidade de a política externa contar a colaboração de outros setores, que não o Itamaraty.

Resta saber em que base se dará tal integração. Acho que o fim do caminho já está claro, contudo, os meios de percorrer esta estrada ainda estão meio sombrios..

Maurício Santoro disse...

Salve, Sergio.

Sou um otimista no médio prazo, mas acho que ainda há muito o que acertar nos rumos da Unasul. Aproveitando o comentário, Igor, é difícil me entusiasmar com o ritmo que o Itamaraty promove a participação da sociedade, vivendo na pele as dificuldades e as experiências bem mais positivas que vejo na Secretaria-Geral da Presidência e no Exército.

Nica, querida. Há tempos não apareces por aqui, seja bem-vinda, sempre. Vi Persepólis logo no início do ano, adorei, e até escrevi a respeito aqui no blog.

abraços

SAM disse...

Tenho ouvido falar da Unisul há algum tempo, mas a minha dúvida surge na sua relação com a Mercosul. Na Europa as várias instituições continentais foram substituindo uma à outra, num processo natural e orgânico até chegar à sua atual forma sob égide de um Conselho, um Parlamento e uma Comissão da dita "União Europeia". Agora, com o tratado de Lisboa, o antigo tratado de Roma de há uns 51 anos é renovado e a Europa assume nova força. O que acontece nesse espaço que já existe a Comunidade Andina, a Mercosul e ainda outro eixo comercial (cujo nome não me recordo) de relações que incluem a América do Norte? Há espaço para tantas entidades supranacionais?

Outra questão que me faz pensar é que na Europa o que havia era uma necessidade de unir povos. Os líderes, depois de séculos de conflitos, pensaram na sobrevivência dos povos e, conseguimos, pela primeira vez, ter pelo menos meio século sem conflitos armados (bem...). Nas américas parece-me que os povos é que estão preocupados com os conflitos entre os seus líderes. Não é um pouco isso? Uribe, Chavez, Morales, Lula representariam os seus povos, mas parece os seus "países" (essa figura que quase se assume como uma metáfora do poder de cada um deles) é que são o meio para eles debaterem: eles representam aos seus países ou os seus países são o pretexto para eles lá estarem? (não sei se fui suficientemente claro nesta segunda explicação).

Maurício Santoro disse...

Olá, Sam.

Foi claríssimo, não se preocupe. Sim, você apontou bem as ressalvas à integração sul-americana: o principal problema é que ela é uma colcha de retalhos entre vários processos, acordos, tratados e negociações e é muito difícil conciliar tudo.

Além disso, não há nesta região o imperativo de segurança que guiou a integração da Europa, e nem o recurso à supranacionalidade que prevaleceu no Velho Mundo. Por aqui, tudo se resolve (ou não se resolve) com base em negociações entre presidentes.

Cada continente tem seu ritmo e suas condições históricos e seria um erro esperar que a América do Sul replique a condição da Europa. O que eu gostaria é de alguns avanços com relação a criar uma tecnocracia regional, que pudesse por força própria impulsionar projetos e garantir certa estabilidade à integração.

Abraços

SAM disse...

Creio, Maurício, que existam dois tipos de erros: a réplica exata (e aí concordo sem tirar nem pôr que copiar o modelo europeu seria um erro) e a inobservância quase teimosa do que aconteceu no único exemplo aparantemente funcional do movimento de continentalização global (o que tampouco me parece que estja ocorrendo).

Tenho lido que a Unasul estaria para ser uma espécie de NATO da América do Sul, ou uma espécie de "umbrella" sob a qual estaria a Mercosul como entidade financeira. Por isso, deixei a minha primeira pergunta. Como será a concertação entre tão distintas e vastas entidades coexistindo em simultâneo? Não seria mais viável fortalecer uma delas? Elas irão convergir-se? Ou concorrer? Ou simplesmente nada irá mudar e teremos mais cargos e órgãos a serem pagos pelo dinheiro público, sem que esse público entenda o que se passa, confundindo-se com mais e mais estruturas pesadas no sistema?

O maior problema europeu é esse: a distância entre os europeus e os políticos europeístas. Qual é o futuro das Américas com tantas entidades?

Um abraço.