quinta-feira, 28 de maio de 2009
Cenouras, Chicotes e Bombas Nucleares
Nesta semana a Coréia do Norte testou uma bomba nuclear e mísseis balísticos. Os experimentos demonstraram notável aumento de sua capacidade militar e acrescentaram mais um capítulo às tensas e infrutíferas negociações de desarmamento que o país desenvolve desde a década de 1990 com EUA, Rússia, China, Japão e Coréia do Sul. Embora a ditadura comunista de Pyongyang pareça ter saído de um episódio de South Park, o padrão de comportamento do Estado é racional: a Coréia de Norte testa o recém-iniciado governo Obama, procurando extrair por meio de ameaças a ajuda que necessita para alimentar sua população e manter de pé sua combalida economia. Também pesam disputas políticas internas: a luta da família Kim para se manter no poder, no contexto da saúde falha do presidente Kim Jong-Il, que sofreu um derrame há poucos meses.
O programa armamentista da Coréia do Norte cresceu ao longo das décadas de 1990 e 2000, em função dos riscos de sobrevivência do regime comunista no contexto da dissolução da União Soviética. Pyongyang assinou um importante acordo com o governo Clinton para restringir suas pesquisas militares, mas o tratado nunca foi integralmente respeitado e o país prosseguiu com testes que assustaram os vizinhos, como o lançamento de mísseis que poderiam atingir o Japão, mas também houve a formação do grupo de seis nações que se engajaram nas negociações de desarmamento.
O governo Bush declarou que a Coréia do Norte fazia parte do Eixo do Mal, mas apesar da retórica o jogo continuou parecido com o de Clinton: oscilou entre ameaças de sanções e ofertas de ajuda, em troca da interrupção do programa. Não adiantou, e em 2006, Pyongyang detonou seu primeiro artefato nuclear, embora a baixa potência e as deficiências técnicas da bomba tenham deixado dúvidas sobre sua capacidade militar. Houve avanços nas negociações e Bush até retirou o país da lista dos apoiadores do terrorismo.
O contexto atual é ainda mais complicado para o diálogo internacional, porque tanto Kim Jong-Il quanto Obama enfrentam pressões internas que restringem sua capacidade de fazer concessões. A proposta inicial de um bloqueio naval à Coréia do Norte lembra, claro, a crise dos mísseis cubanos. A China tem endurecido suas posições com relação a Pyongyang e isso pode resultar em melhor articulação internacional, eventualmente por meio de ações do Conselho de Segurança da ONU, e por medidas como o congelamento de ativos financeiros do país.
quarta-feira, 27 de maio de 2009
Rock and Roll
Passei o último fim de semana no Rio de Janeiro e, entre outras atividades, fui ao teatro assistir a “Rock and Roll”, do dramaturgo tcheco (naturalizado inglês) Tom Stoppard. É uma peça fascinante que usa a música para debater os principais eventos relacionados aos conflitos e queda do comunismo, de 1968 aos tempos atuais, numa trama que oscila entre as duas pátrias do autor.
A ação é estimulada pelo embate entre os dois protagonistas, ambos acadêmicos. Jan é um jovem um tanto rebelde, que larga o doutorado em Cambridge para retornar à sua Tchecoslováquia natal e participar das reformas da Primavera de Praga, tragicamente abortadas pela invasão soviética. Max é seu antigo mentor, um professor universitário que se mantém leal ao partido comunista por seu papel em enfrentar os horrores da Segunda Guerra Mundial e do nazismo.
Embora gostem um do outro e se admirem mutuamente, Jan e Max se afastam em função das disputas políticas. Jan abandona a universidade, flerta com o jornalismo mas vive para a música, que idolatra. Ele se torna parte do grupo que gravita em torno da banda The Plastic People of the Universe e rejeita tanto a adesão ao comunismo quanto o que chama de “oposição oficial”, os dissidentes que criticam o partido-Estado.
À medida que a situação do país se agrava, Jan vê suas perspectivas profissionais se fecharem e acaba se aproximando dos ativistas de direitos humanos, como Václav Havel (amigo e guru do autor), fazendo parte do movimento da Carta 77. A aliança não se dá sem disputas entre os colegas de viagem: qual a natureza da liberdade, e dos direitos? Exigir do Estado a não-interferência em hábitos privados, como o estilo do cabelo ou o tipo de música que se escuta, é mais ou menos progressista do que escrever petições aos líderes políticos?
Enquanto isso, Max se torna uma espécie de curiosidade histórica – um dos últimos intelectuais que continuam filiados ao partido comunista – e lamenta o caminho escolhido por Jan. Mas o professor também se torna crítico do governo e dos oportunistas que constroem carreiras a partir da repressão política. As trajetórias dos dois amigos voltam a se encontrar após a Revolução de Veludo, que derruba o comunismo na Tchecoslováquia, e ambos conversam sobre as desilusões com o comunismo, os significados de 1968 e também com a democracia apática que parece predominar hoje em dia. E fica no ar a sugestão de que a amizade talvez seja a primeira utopia para ajudar a construir o século XXI...
Como era de se esperar pelo título da peça, a música tem destaque na narrativa, com canções e clipes ilustrando a passagem do tempo e os estados emocionais dos personagens. Dos Rolling Stones ao U2, passando pelos Beatles, é uma trilha sonora de impacto.
Max é um papel difícil – pode resvalar no clichê do comunista velha guarda – interpretado por maestria por Otávio Augusto. Thiago Fragoso, que eu só conhecia de atuações como galã na TV, também está ótimo como Jan, assim como Gisele Fróes, que interpreta a esposa de Max (e mais tarde faz o papel de sua filha, na maturidade). Foi um prazer assistir aos diálogos inteligentes, irônicos e emocionados da peça. E uma oportunidade – infelizmente, ainda rara – de presenciar os grandes temas políticos contemporâneos discutidos em português.
Se houver algum produtor teatral a ler este blog, minha sugestão (súplica?): por favor, monte “Democracia”, de Michael Frayn!
segunda-feira, 25 de maio de 2009
Cooperação Triangular
Na semana passada, fui a um excelente simpósio sobre cooperação triangular, no Ministério das Relações Exteriores. O conceito é relativamente recente, significa uma parceria que envolve um doador tradicional como EUA, União Europeia, Japão e uma grande nação em desenvolvimento (Brasil, China, Índia, México, África do Sul), para auxiliar um terceiro Estado. A ideia é reunir no mesmo formato os recursos financeiros dos sócios mais prósperos com a experiência política e cultural dos emergentes, mais próxima da realidade dos países mais pobres do mundo.
(Há outras definições de cooperação triangular que não levam em conta o intercâmbio Norte/Sul, mas foi este o conceito abordado no simpósio.)
O Brasil tem tradição considerável em cooperação internacional, certas ações empreendidas por Vargas na década de 1930 já podem ser consideradas nessa categoria. O padrão atual é de ações centradas em recursos humanos, como a ida de técnicos brasileiros para treinar especialistas em outros países. A maior parte das atividades acontece na América Latina e Caribe (por exemplo, Haiti) ou na África (em especial, claro, os países de língua portuguesa). Mas há pólos ocasionais na Ásia, como Timor Leste, Líbano e os territórios palestinos.
A participação brasileira na cooperação triangular tem sido muito solicitada, porque nas palavras de uma autoridade europeia, o país se consolidou como um “policy leader”, isto é, uma nação que se tornou referência em determinadas áreas de politicas públicas, como combate à fome, tratamento de AIDS, desenvolvimento agrícola, biocombustíveis etc. Infelizmente, a legislação nacional ainda não está adequada a estas novas necessidades, os especialistas na área se queixam das dificuldades burocráticas que praticamente impedem, por exemplo, a doação de equipamentos científicos.
Outro ponto importante, que já começa a ser analisado pelos pesquisadores universitários, é a a multiplicação dos atores governamentais envolvidos na diplomacia - a horizontalização da política externa, como dizem Cássio França e Michelle Sanchez, dois ótimos colegas com quem tive o prazer de trabalhar. De fato, há muitos órgãos públicos envolvidos na diplomacia: ministérios, Forças Armadas, empresas como BNDES, Embrapa e Caixa Econômica Federal (em desenvolvimento urbano e inclusão bancária), e organizações do sistema S, como o Sebrae, que faz um excelente trabalho com pequenas firmas. É uma bela agenda para acadêmicos em busca de temas originais e de relevância prática.
Um desafio igualmente importante é pensar a colaboração entre Estado e sociedade. Minha experiência de trabalho em ONGs envolvidas com cooperação na América Latina e na África foi muito enriquecedora, e meu trabalho mais recente como funcionário governamental tem me dado várias ideias. Inclusive a possibilidade de fazer a crítica de erros que cometi em projetos anteriores, como abordar muitos países e temas ao mesmo tempo.
A situação atual também pode ser o ponto de partida para um debate que se tornará mais importante para as políticas públicas brasileiras, e diz respeito ao conhecimento sobre as regiões onde se dará a cooperação. E aos objetivos das parcerias. Para além de questões óbvias, como aumentar a influência em áreas estratégicas para o país, e prestar ajuda humanitária em situações de crise, parcerias internacionais melhoraram a qualificação dos técnicos do Brasil, que ganham experiências novas e aprendem a lidar com outras culturas, climas, terrenos etc. Tudo isso reverte positivamente para o país. Aliás, o tradicional jogo de cintura nacional é uma belíssima característica para esse tipo de atividade.
sexta-feira, 22 de maio de 2009
John Lennon
“John Lennon: a vida”, é uma ótima biografia escrita pelo jornalista inglês Philip Norman, autor também de uma história dos Beatles. Conhecedor profundo da música das décadas de 1960/70, sua pesquisa dá voz a muitas pessoas que conviveram com Lennon, em particular sua família. O ponto forte do livro é mostrar como o cantor e compositor estava em sintonia com as mudanças que aconteciam no mundo - a liberação da sexualidade, as posturas mais relaxadas com relação às classes sociais, a ascensão da juventude como protagonista social e política. O fraco, a tomada de partido de Norman com relação a Yoko Ono, que recebe uma apologia mais adequada a um advogado de defesa do que a um biógrafo.
Norman é cronista atento e sensível da adolescência dos Beatles em Liverpool – incrível pensar que os quatro rapazes cresceram a poucos quarteirões uns dos outros, no que era então uma cidade ainda marcada pela guerra (Lennon nasceu na noite de um intenso bombardeio nazista) e pelo austero cotidiano britânico após o conflito. Ao contrário do que o próprio Lennon apregoava, sua condição não era a de operário, sua família era da baixa classe média, ansiosa por status e respeitabilidade, mas de modo algum em dificuldades financeiras.
Seus pais tiveram um casamento turbulento, e as constantes brigas e infidelidades culminaram no menino sendo abandonado por ambos, e criado por uma tia materna, uma mulher que lhe deu segurança e apoio, mas não calor afetivo. No fim da adolescência, John se aproximou da mãe, mas ela morreu atropelada quando o rapaz tinha apenas 17 anos. O pai sumiu de sua vida na infância e só reapareceu quando o filho se tornou um astro do rock.
Lennon cresceu rebelde, desconfiado, irônico, às vezes mascarando a timidez numa camada de agressividade e sarcasmo. Mas também inteligente, sensível e com grande capacidade criativa – na música, literatura, desenho e pintura, o que o levou até a cursar a faculdade de artes. Ponto curioso: mesmo antes da parceria com McCartney, John precisava ter sempre um cúmplice à mão, alguém que compensasse suas inseguranças e lhe estimulasse a criar. Nos anos universitários, a pessoa foi seu colega de turma Stuart Sutcliffe, que chegou a tocar brevemente com os Beatles, mas morreu muito jovem – talvez em decorrência de uma surra que levou de Lennon, durante uma bebedeira.
A trajetória dos Beatles é bastante conhecida, e está toda no livro. Os primeiros shows no circuito alternativo de Liverpool, a temporada passada na zona de Hamburgo (bem mais selvagens do que no visual arrumadinho com que estouraram na mídia) e o crucial encontro com Brian Epstein, que transformou o grupo numa equipe profissional e os catapultou para o mundo. Mais do que empresário, foi amigo e pai substituto que os protegeu de muitos percalços da fama meteórica. Sua morte precoce em 1967 os lançou em tantos problemas que chego a pensar que se tivesse permanecido vivo, a história poderia ser outra. Claro, havia também George Martin e seu talento como produtor musical.
Há boas informações na biografia sobre a gênese das canções, e emociona ler como cenas e personagens cotidianos de Liverpool renderam pérolas como Penny Lane, In My Life, Strawberry Fields Forever, Eleanor Rigby. Curiosamente, a música mais executada dos Beatles (e de todos os tempos), Yesterday, é de autoria somente de McCartney, embora Lennon também a tenha assinado.
A vida pós-Beatles de Lennon é marcada por seu relacionamento com Yoko Ono, e não gostei do modo como Norman a retratou na biografia. Por ironia, ela desaprovou o livro. Em todo caso, mesmo discordando da interpretação que Norman dá ao relacionamento do casal, é possível fazer outras leituras, em que se destaca à descida de Lennon a um inferno pessoal marcado por drogas, mas o período de crises também resultou no enfrentamento de seus demônios e em canções magistrais que passam a limpo a complicada história com a família e com os Beatles, como “God”, “Mother” e “How?”.
A estupidez de seu assassinato é ainda mais ressaltada por ter ocorrido na época em que parecia, finalmente, ter encontrado a paz, curtindo cuidar do segundo filho, Sean. Felizmente, ele continua a inspirar.
quarta-feira, 20 de maio de 2009
A Parceria Estratégica entre Brasil e UE
Nas últimas semanas o trabalho me levou a cursos e oficinas sobre as relações entre União Européia e Brasil. Há processos interessantes em andamento que exemplificam o papel protagonista que o país começa a exercer na política internacional.
Durante a década de 1990, o diálogo entre Brasil e Europa se deu sobretudo por meio dos blocos regionais, isto é, MERCOSUL e UE. Foi assinado um acordo-quadro que serviu de base para as negociações entre uma futura área de livre comércio. No entanto, esse processo estagnou em meio aos impasses em campos sensíveis, como agricultura e telecomunicações, e buscou-se um novo enfoque.
Ele veio em 2007 na elevação do status internacional do Brasil a “parceiro estratégico” da União Européia, categoria que compartilha com um grupo seleto de países – EUA, Canadá, Japão e os demais BRICs. A posição facilita ao Brasil o recebimento de cooperação e está centrada em temas da agenda global na qual o país se tornou interlocutor privilegiado: segurança, meio ambiente, biocombustíveis e políticas sociais.
No fim de 2008, Brasil e UE estabeleceram um Plano de Ação conjunto que delimita os pontos de diálogo para cada tema. Por exemplo, na questão da segurança internacional se destacam os entendimentos no sistema ONU (Assembléia Geral, Conselho de Segurança etc). A cooperação também se estabelece na política pública doméstica, como entre o Ministério da Integração Nacional e os fundos europeus de combate às desigualdades regionais.
Ênfase recente, e muito interessante, é a experiência brasileira na reconstrução de países destruídos por conflitos, como o Haiti. Aspectos inovadores da ação do Exército e da diplomacia do Brasil têm chamado a atenção da comunidade internacional, que pretende aplicar tais métodos em outras regiões, em particular na África. Isso tem se refletido na demanda pela chamada “cooperação trilateral”, na qual dois países agem juntos para auxiliar uma terceira nação.
O Plano de Ação também prevê o diálogo regional, entre América Latina/Caribe e União Européia. Sem dúvida, a liderança continental exercida pelo Brasil é parte importante na parceria estratégica com a UE. Contudo, chama a atenção o quanto a agenda européia para a hispano-américa (centrada em temas culturais, como a celebração dos bicentenários das independências, ou em auxílio humanitário) distancia-se do diálogo com o governo brasileiro, tratado como potência emergente.
No primeiro semestre de 2010 a presidência da União Européia será exercida pela Espanha, tradicionalmente a principal impulsionadora do aprofundamento das relações entre o Velho e o Novo Mundo. Acredito que veremos novidades na agenda.
terça-feira, 19 de maio de 2009
Valsa com Bashir
Texto escrito com Bruno Borges.
Às vezes os melhores documentários são feitos de imagens falsas. “Valsa com Bashir”, animação do cineasta israelense Ari Folman é um mergulho nas relações entre história, memória e culpa, a partir da experiência do diretor no Exército de Israel, durante a trágica guerra entre esse país e o Líbano, em 1982. Folman propõe uma reflexão pessoal e coletiva sobre as responsabilidades nas atrocidades contra civis ocorridas no conflito, sobretudo o massacre nos campos de refugiados de Sabra e Shatila.
O filme começa com um amigo do cineasta-narrador o procurando para relatar um pesadelo recorrente, no qual é perseguido por dezenas de cachorros que matou numa aldeia libanesa. Ele então indaga ao diretor sobre seus próprios traumas de guerra e Folman responde que não lembra de nada. Mas naquele mesmo dia ele é assaltado por uma memória misteriosa, de três rapazes observando uma paisagem urbana devastada. Em busca do significado daquelas imagens, ele parte atrás de seus antigos colegas de Exército, e de psicológos especializados em estresse pós-traumático, em busca sobre o que ocorreu de fato no Líbano. O resultado é uma viagem dolorosa, mas de autodescoberta, que mudará a imagem que o cineasta tem de si mesmo.
O Contexto Histórico da Guerra
A invasão israelense do Líbano em junho de 1982 foi fruto de duas circunstâncias, uma interna e outra externa. A primeira delas foi uma progressiva radicalização da luta política libanesa entre cristãos maronitas (os falangistas) e os árabes liderados pela OLP de Yasser Arafat. Essa polarização – que refletia alinhamentos baseados também no contexto da Guerra Fria – deixou o Líbano refém de uma luta que transbordava suas fronteiras. A segunda circunstância foi o cálculo político do Primeiro-Ministro Menachem Begin e do então Ministro da Defesa israelense Ariel Sharon de que Israel poderia se beneficiar duplamente da situação no Líbano: ao apoiar os falangistas, Israel tentaria eliminar fisicamente a ameaça da OLP e ocupar o sul do Líbano, garantindo uma zona "tampão" contra qualquer ataque às suas cidades fronteiriças por forças remanescentes da OLP ou de uma atuação maior da Síria.
A ocupação tornou-se longa e custosa para Israel. O objetivo declarado, o fim dos terroristas, não se concretizou assim como a Síria passou a ocupar o vácuo político aberto pelo enfraquecimento da OLP. O que era vendido à opinião pública como uma guerra justa de proteção passou a envolver a presença de jovens soldados israelenses durante 18 anos em uma zona empobrecida e destruída pelos combates diários entre facções. A participação direta norte-americana no conflito a partir de 1983 ajudou a complicar ainda mais uma situação politicamente delicada. Durante esse período, os árabes libaneses passaram também por uma transformação importante: de "esquerdistas" seculares do início da OLP, os anos subseqüentes mostraram uma radicalização religiosa e de sua atuação tática.
A Desconstrução dos Mitos Heróicos
Os protagonistas de “Valsa com Bashir” são muito diferentes dos heróis dos filmes de guerra tradicionais. São rapazes bastante jovens, adolescentes em transição para a vida adulta. Assustados, pressionados pela sociedade e com frequência assombrados por memórias familiares do Holocausto, sentem que precisam fazer algo pelo país. Para alguns, vestir a farda e portar armas é a prova de fogo para suas dúvidas sobre masculinidade. À medida que se embrenham no Líbano, as fragilidades juvenis se manifestam em atos de covardia, em crueldades contra civis (por vezes praticadas por combinação de medo e imprudência) e na perplexidade diante de uma guerra estranha, cujas batalhas se dão em ruas residenciais, com moradores que observam o espetáculo da varanda – como na extraordinária sequência que dá título ao filme, na qual uma tropa israelense é encurralada por guerrilheiros da OLP.
A invasão do Líbano também diferiu bastante das guerras anteriores de Israel, em particular a dos Seis Dias (1967) e a do Yom Kippur (1973) – eventos que mobilizaram toda a sociedade e envolveram a própria sobrevivência do Estado. Os soldados de “Valsa com Bashir” viveram outra experiência, a de lutar num país estrangeiro, que embora vizinho, parece muito distante. Numa passagem, o narrador volta a Israel de folga e vê com surpresa que o cotidiano segue normalmente, sem que ninguém se dê conta dos sofrimentos e sacrifícios pelos quais ele e seus colegas passam no Líbano.
O Debate Contemporâneo em Israel e nos EUA
Apesar de envolvida em conflitos desde a fundação de seu Estado, sempre houve uma discussão política bastante aberta e vigorosa dentro da sociedade israelense sobre seus rumos e suas práticas. O Israel de hoje é cada vez mais complexo: uma sociedade com economia bastante desenvolvida e com população cada vez mais diversa, e o debate se torna cada vez mais individualista sobre o futuro.
Apesar da forte guinada para a direita nas últimas eleições, a controvérsia sobre o papel do uso da força em Israel é bem mais rico e plural do que é nos EUA, por exemplo. Apesar de possuírem uma voz e influência importantes para o debate interno de Israel, ouvir argumentos da esquerda isralense nos Estados Unidos seria praticamente um tabu. O lobby dos judeus norte-americanos tem sido criticado por especialistas por preconizar uma política externa agressiva no Oriente Médio, dificultando as relações de Washington com os países muçulmanos da região.
segunda-feira, 18 de maio de 2009
O Homem de Obama para a América Latina
Foi bem-recebida a nomeação do cientista político Arturo Valenzuela para ser o mais graduado diplomata americano no que toca à América Latina. Nascido no Chile, Valenzuela vive nos EUA desde os 16 anos e escreveu dez livros sobre o continente, com ênfase nas questões ligadas à democracia – sua destruição ou reconstrução. Ele lecionava na Universidade Georgetown, e no governo Clinton havia exercido cargos elevados no Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional.
Gosto de seu trabalho acadêmico, em particular de suas análises do colapso da democracia no Chile e da ênfase que ele dá à importância de partidos de centro, que possam mediar os principais debates políticos. A América Latina precisa de mais diálogo com os Estados Unidos. Em particular com a Venezuela, e não acho impossível que as coisas melhorem entre Chávez e Obama.
Valenzuela criticou a política externa de Bush para a América Latina, afirmando que a região tinha caído no esquecimento para os líderes políticos em Washington. É o tipo de frase que soa bem num palanque, mas se examinarmos a história da diplomacia dos EUA, desde a Segunda Guerra Mundial os temas latino-americanos estiveram em segundo ou terceiro plano, salvo poucas exceções, como a Revolução Cubana e as guerras civis na América Central.
Não me parece que essa situação vá passar por uma reviravolta. As questões centrais para a política externa dos Estados Unidos estão nos campos de batalha do Afeganistão, Paquistão e Iraque, na ascensão da China como superpotência, nas negociações com os aliados europeus para enfrentar a crise econômica mundial e nas tentativas de lidar com o Irã e o conflito árabe-israelense.
Contudo, há uma série de temas importantes na agenda de Obama com a América Latina: imigração (em particular do México e América Central); combate às drogas (sobretudo México e América Andina), o degelo nas relações com Cuba e, acredito, a redefinição do diálogo com o Brasil. A tendência é enxergar o governo brasileiro cada vez mais como um interlocutor nos grandes temas globais (Rodada Doha da OMC, G20 financeiro, mudança climática, biocombustíveis), para além do papel de mediador de crises regionais que o país tem desempenhado ao longo da última década, na região andina e no Haiti. Nem que seja porque o presidente brasileiro é, nas palavras de Obama, “o cara”, o político mais popular do planeta.
Há até uma especulação muito interessante lançada pela Foreign Policy, de que o próximo presidente do Banco Mundial poderia ser.... Lula! Explicação: os EUA estudam nomear pela primeira vez um não-americano para a função, e o mandatário brasileiro é visto como um forte candidato, pela capacidade de construir pontes entre os países ricos e as nações em desenvolvimento.
sexta-feira, 15 de maio de 2009
Algo de Novo no Front
Há alguns dias o governo Obama substituiu o oficial que comanda a guerra no Afeganistão, sinalizando a mudança de estratégia naquele se tornou o principal front das operações militares americanas. Saiu o general David D. McKiernan, de carreira tradicional, especializado em blindados, e entrou Stanley McChrystal (foto), cujo currículo está mais ligado às forças especiais, operações de inteligência e atividades de contra-insurgência. Nessa qualidade, ele chefiou ações que levaram à captura de Saddam Hussein e de líderes importantes da Al-Qaeda. A troca de comando vem no momento em que os Estados Unidos se preparam para enviar mais 21 mil soldados ao Afeganistão, e diante das crescentes dificuldades que enfrentam na fronteira desse país com o Paquistão, com a ofensiva no vale do Swat que provocou a fuga de cerca de um milhão de pessoas e muitas mortes a civis, em função de bombardeios e erros militares.
Obama sempre foi crítico da guerra do Iraque, afirmando que desviava os esforços americanos do combate mais sério no Afeganistão, onde era necessário destruir a Al-Qaeda e a estrutura de apoio ao terrorismo que resultou nos atentados de 11 de setembro. Suas ações como presidente são condizentes com o discurso, uma vez que anunciou o cronograma para retirada das tropas do front iraquiano, e o aumento das forças em território afegão.
O general que implementa essa estratégia é David Petraeus, o mais célebre oficial americano na ativa. Ele se tornou mundialmente conhecido por sua bem-sucedida atuação no Iraque, conhecida como o “surto”, que resultou em condições estáveis o suficiente para que os EUA pudessem começar a negociar a saída do país. Petraeus foi promovido para a responsabilidade de gerenciar as duas guerras na Ásia, na esperança de que possa repetir no Afeganistão o bom desempenho de sua missão anterior.
Ele havia sido subordinado de McKiernan no Iraque e os dois não se deram bem com a inversão de posições hierárquicas. McKiernan permaneceu apenas 11 meses como comandante no Afeganistão, menos da metade do período habitual, e em geral sua liderança foi considerada como correta, embora não excepcional. Causou certa consternação no Exército o modo brusco pelo qual foi afastado.
É a primeira vez que o governo americano afasta um general-comandante em tempos de guerra, desde os tempos em que Truman demitiu MacArthur na Coréia, na década de 1950. Isso mostra o nível de determinação do Pentágono e da Casa Branca em virar o jogo no Afeganistão, e o grau de cobrança que os oficiais superiores devem esperar. Agora, como diria aquele estrategista-mor, Garrincha, falta somente combinar com o inimigo, que não mostra sinais de esmorecer.
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Dez Filmes sobre Relações Internacionais
Há duas semanas há um debate nos sites das revistas Foreign Policy e Slate sobre filmes a respeito de relações internacionais. Começou com uma lista de produções que tratam do tema, preparada por Stephen Walt. Ela levou a reações de Fred Kaplan e Daniel Drezner, cada um com suas próprias sugestões. Amigos me encaminharam a discussão e pediram meus palpites.
Aí vão. Limitados a 10 filmes – poderiam ser 100. Meu critério é que a produção precisa estimular a reflexão e não ser simplesmente um enredo ambientado em determinado conflito/período histórico. Quem também quiser brincar, poste suas listas nos comentários. Se a conversa for boa, depois escrevo uma sobre obras literárias:
10. Jogos do Poder (Charlie´s Wilson War)
Aaron Sorkin, o criador da cultuada série de TV “The West Wing”, escreveu este pequeno e interessantíssimo filme sobre o deputado americano mulherengo e fanfarrão que foi um dos principais formuladores da guerra secreta que a CIA travou contra a URSS no Afeganistão. Bem-humorado e inteligente debate sobre como um tema de política externa entra e sai da agenda governamental.
9. O Americano Tranqüilo
Adaptação contemporânea, pós-11 de setembro, do romance que Graham Greene escreveu na década de 1950 sobre o início do envolvimento americano no Vietnã. A história corre como um triângulo amoroso entre uma dançarina vietnamita, um idealista funcionário da assistência humanitária e dos EUA e um veterano e desiludido jornalista inglês, que descobrirá que a ingenuidade pode ser mais perigosa do que a maldade, e que às vezes para se manter humano é preciso tomar partido.
8. A Batalha de Argel
O drama de Gillo Pontecorvo sobre a guerra de Independência da Argélia ganhou súbita relevância após o 11 de setembro, mostrando sua atualidade como um olhar sobre terrorismo, contra-insurgência, guerras assimétricas e outros temas da agenda contemporânea – mesmo que a visão política do diretor seja muito distante daquela de Washington.
7. Sob a Névoa da Guerra
Estupendo documentário-entrevista com o ex-secretário de Defesa dos EUA, Robert MacNamara, no qual ele rememora com notável autocrítica sua participação em grandes acontecimentos históricos, como a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, a crise dos mísseis cubanos e o Vietnã. E alerta: a racionalidade, sozinha, não irá nos salvar.
6. Valsa com Bashir
Devo a vocês uma resenha (para breve) desta animação israelense sobre os traumas e esquecimentos de um homem que, quando jovem, participou da invasão de seu país ao Líbano e se esforçou para esquecer seu papel pouco heróico nos massacres daquele conflito.
5. O Leopardo
Luchino Visconti adapta o romance do príncipe de Lampedusa numa reflexão irônica sobre os impasses e contradições das guerras de unificação da Itália e da decadência da aristocracia num mundo em que algo precisa mudar para que tudo permaneça o mesmo. Vale complementar com outra maravilha do diretor, “Senso” (Sedução da Carne), que trata do mesmo tema pela ótica do amor de uma condessa italiana por um militar austríaco.
4. Diários de Motocicleta
Se você é um jovem latino-americano que acredita que as fronteiras do continente são uma mera artificialidade e que é preciso o esforço para superar as limitações de classe social e os preconceitos culturais... Este é seu filme. Esqueça o fato do protagonista ser um Che Guevara ainda imberbe, na verdade os personagens somos todos nós, ou pelo menos os nossos sonhos.
3. Apocalipse Now
Francis Ford Coppola adaptou para o contexto da Guerra do Vietnã a novela de Joseph Conrad sobre “O Coração das Trevas” do colonialismo europeu no Congo. O resultado é um filme assustador sobre a loucura bélica que habita o coração humano e os lugares escuros da História.
2. Lawrence da Arábia
Inesquecível épico de David Lean sobre o oficial britânico que estimulou a rebelião dos árabes contra o Império Otomano, durante a I Guerra Mundial, lançando uma ousada guerrilha que mudou a região – mas viu seus ideais de liberdade naufragarem na realidade da partilha neo-colonial do Oriente Médio, quando Grã-Bretanha e França dividiram os espólios da potência derrotada.
1. A Grande Ilusão
Obra-prima pacifista de Jean Renoir, ambientada na I Guerra Mundial, na qual um grupo de aviadores franceses tenta escapar de uma prisão alemã. Belíssima discussão sobre nacionalismos, classes sociais, solidariedade e os outros fatores que levam à guerra e à paz.
terça-feira, 12 de maio de 2009
O Papa em Israel
A visita de Bento XVI ao Oriente Médio é uma bem-sucedida operação diplomática. Com sua condenação ao antissemitismo e defesa de um Estado palestino, o papa apaziguou ânimos que andavam agitados nos dois lados do conflito árabe-israelense, em razão de atos recentes da Igreja Católica.
A relação do Vaticano com Israel é bastante complexa, mas melhorou imensamente a partir da década de 1990, quando a Igreja finalmente reconheceu o Estado judeu. Até então, o gesto havia sido evitado pelo medo de represálias aos cristãos que vivem em países muçulmanos. A preocupação do Vaticano também se estende aos palestinos que seguem o cristianismo – cerca de 9% do total – e aos cristãos que vivem nos territórios ocupados por Israel na Cisjordânia. Muitos deles têm abandonado locais sagrados, como Belém, em função do recrudescimento da violência.
Outro tema tenso é a relação da Igreja com o Holocausto. Bento XVI defendeu a beatificação do papa Pio XII, cuja atuação diante do nazismo é frequentemente criticada como apática e frágil, e muitos em Israel se ressentem do prestígio do qual ele desfruta na Igreja. A situação só piorou quando o atual papa reinstalou um bispo que nega o genocídio e autorizou que um apelo em latim pela conversão dos judeus ao catolicismo voltasse a ser rezado como parte de uma oração de Páscoa.
Nesse aspecto, há um contraste marcante entre Bento XVI e seu predecessor. João Paulo II presenciou a brutalidade nazista na Polônia e fez muito pela aproximação entre católicos e judeus, incluindo uma pungente reflexão sobre o Holocausto.
Em meio aos problemas, surge a notícia de que Barack Obama deverá propor uma grande conferência de paz no Oriente Médio, provavelmente no discurso que fará no Egito no próximo dia 4. Será que teremos um acordo abrangente, nos moldes dos que Carter e Clinton intermediaram?
segunda-feira, 11 de maio de 2009
Pós-Guerra
Quer saber o que François Mitterand dizia de Margareth Thatcher, com esse olhar de canastrão com péssimas intenções? Tem curiosidade em entender como a Alemanha lidou com o trauma do nazismo e de que modo foi capaz de empreender a impressionante modernização econômica a partir da década de 1950? Ou você busca compreender as razões que levaram diversos Estados do bloco soviético a entrar em conflito com a URSS? Por que a União Europeia despende tantos recursos numa ineficiente política agrícola comum? Como se deu a transição do autoritarismo para a democracia na Espanha, Grécia e Portugal? Então o livro que você procura é o monumental “Pós-Guerra: uma história da Europa desde 1945”, do historiador inglês Tony Judt.
Judt cumpre o que promete no título, com ênfase nas transformações políticas e sociais (o livro é um tanto menos abrangente no que toca à economia e à cultura), abarcando tanto os países ocidentais quanto o antigo bloco comunista – incluindo diversas análises de repúblicas soviéticas, como as nações bálticas, a Ucrânia e a Rússia. Seu trabalho é uma obra-prima escrita em linguagem clara, objetiva e elegante. A tese principal: o período 1945-1989 foi o longo epílogo à era da “guerra civil europeia” (1914-1945), o congelamento dos problemas criados por ela, que só caminharam para a resolução após a queda do Muro de Berlim.
Tais dificuldades não eram pequenas. O que fazer com a Alemanha dividida, cujos esforços por hegemonia haviam provocado os dois conflitos mundiais anteriores? Como lidar com a área de influência que os soviéticos construíram no rastro da vitória contra o nazismo? Como recuperar um continente destruído, e que via sua influência internacional desmoronar diante do fim de seus impérios coloniais e da ascensão de duas superpotências?
Hoje sabemos quais foram as respostas: intenso processo de integração regional política e econômica, que vinculou a Alemanha Ocidental a seus vizinhos do Oeste, a proteção militar dos EUA, a aceitação, de facto, do direito de intervenção soviético em seus satélites da Europa Oriental e a construção de pactos políticos que criaram grande estabilidade por meio de Estados de Bem-Estar Social e mecanismos de divisão de poderes, recursos e cargos aos principais partidos e grupos políticos em cada país.
A perspectiva de Judt é a de um progressista sintonizado com a agenda de direitos individuais clássicos, talvez um tanto cético diante de novas demandas. Digamos que mais na linha de liberais como Raymond Aron e Isaiah Berlin do que as leituras de esquerda feitas por Eric Hobsbawm ou Mark Mazower. Por exemplo, sua análise dos movimentos sociais da década de 1960 é um pouco rabugenta e injusta e eu gostaria que ele tivesse se aprofundado na discussão sobre o terrorismo na Alemanha e na Itália (embora as escassas páginas que dedique ao tema sejam excelentes).
Como bom britânico, Judt é bastante crítico da União Europeia e de todo o processo, que merece um olhar mais afetuoso, e quem sabe uma organização diferente, com um capítulo só dedicado ao tema - no formato atual, a análise sobre integração está dispersa em vários trechos. Mas ele é preciso ao examinar como "a ideia de Europa" foi importante na transição democrática dos regimes autoritários do continente, de Portugal, Espanha e Grécia aos países do bloco soviético.
Em suma, grande livro. Vale muitas conversas em volta de um bom café.
sexta-feira, 8 de maio de 2009
A China Chegou
A China se tornou o principal comprador dos produtos brasileiros, superando os Estados Unidos e a Argentina. O crescimento do comércio com os chineses vinha crescendo há alguns anos, mas a crise econômica internacional deu um empurrão na tendência. Embora as exportações do Brasil tenham caído 19% (com decréscimo, em particular, nas vendas para a América Latina), seguem aumentando para o gigante asiático.
Naturalmente, a China também sofre com a crise e seu índice de crescimento do PIB caiu pela primeira vez em vários anos para um dígito, mas é uma excelente comparação com os EUA e os países da zona do euro, cujas economias estão despencando.
O governo chinês reagiu às dificuldades lançando um ambicioso pacote de aquecimento do consumo, que injetou US$600 bilhões na economia, com ênfase na construção civil e na agricultura. As medidas oficiais beneficiam o Brasil. A pauta de exportação para a China está concentrada em soja, celulose, minério de ferro e petróleo, produtos cujas vendem crescem – em contraste com os manufaturados, que têm diminuído em quase 30%, no caso brasileiro.
Naturalmente, a crise tem elementos passageiros, e este deve ser um deles. Minha dúvida é em que medida ela marcará a consolidação da China como principal destino das exportações brasileiras. Será que a posição irá se manter? Ou é temporária, em função das dificuldades nos mercados tradiconais nos EUA, Europa e América Latina?
quarta-feira, 6 de maio de 2009
Ahmadinejad e os Brasileiros
O cancelamento da visita ao Brasil do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, privou a sociedade de boa oportunidade para debater as possibilidades de política externa nas relações brasileiras com a República Islâmica e as objeções que distintos grupos políticos nacionais fazem ao regime instaurado pela Revolução de 1979.
As guerras no Iraque, no Líbano e no Afeganistão transformaram o Irã na principal potência regional do Oriente Médio. Estados Unidos e União Européia têm cortejado Teerã para diversas tarefas cruciais, como checar a acordos com os Talibãs e oferecer fonte de gás natural alternativa à Rússia. A maior parte dos analistas da política internacional destaca o Irã como um Estado-pivô no mundo muçulmano. Na América Latina, o Irã estabeleceu acordos comerciais e energéticos com os países andinos, sobretudo Venezuela e Equador.
Isso não significa, necessariamente, o relaxamento das tensões internacionais com o país. As monarquias conservadoras do Golfo temem a exportação do radicalismo xiita iraniano, bem como a ação do Hamas e do Hezbolá. Israel e os EUA preocupam-se com a iminente capacidade nuclear de Teerã. E grupos de direitos humanos por toda parte – inclusive no Brasil - criticam o governo iraniano por sua repressão a dissidentes, homossexuais, feministas. Há suas declarações sobre o Holocausto, é certo e também a perseguição à minoria religiosa dos Bahá´í.
Não são questões pequenas e a ascensão de Ahmadinejad reforçou as controvérsias em torno delas. Em excelente ensaio para a New Yorker, John Lee Anderson traça um perfil aprofundado do presidente iraniano, mostrando como ele cresceu em poder como um outsider à elite do país, forjando uma aliança com os aiatolás conservadores contra os tecnocratas que implementaram as limitadas reformas da década de 1990. Evidentemente, o clima polarizador da guerra e do terrorismo após 2001 não contribuiu para o sucesso das posições moderadas.
Ahmadinejad está em plena campanha presidencial – as eleições serão em junho – e é provável que vença a disputa.
Os interesses econômicos e políticos do Brasil cada vez mais se direcionam para a Ásia, nesse sentido é fundamental estabelecer diálogos de alto nível com um país tão importante na região como o Irã. Ao mesmo tempo, a política externa brasileira precisa responder aos anseios de setores sociais importantes da população, e defender princípios caros à atuação diplomática nacional. Dialogar também significa dizer “não” aos parceiros, quando os interesses e valores são divergentes. A controversa participação de Ahmadinejad na revisão da conferência de Durban, sobre racismo, intolerância e xenofobia, é um exemplo de temas onde os dois países se distanciam.
segunda-feira, 4 de maio de 2009
Obama e Cuba: um novo começo?
Há algumas semanas o IBASE me convidou para escrever uma coluna sobre temas ligados à América Latina. O primeiro texto da série é este, que trata das relações entre Estados Unidos e Cuba.
***
Barack Obama venceu as eleições presidenciais dos Estados Unidos com promessas de mudança e, na política externa, com o compromisso de retomar o diálogo com inimigos históricos como Irã e Cuba.
No que diz respeito à ilha caribenha, tais expectativas tiveram suas primeiras expressões no discurso em que Obama propôs “um novo começo” na relação diplomática, em conjunto com a implementação de medidas que facilitam às famílias cubanas residentes em território estadunidense visitar Cuba e enviar dinheiro para seus parentes que vivem por lá. Apesar do início promissor, permanecem dúvidas sobre se haverá disposição ou condições para terminar com o embargo econômico à ilha e reintegrar Cuba à Organização dos Estados Americanos, da qual está suspensa desde 1962.
Para além das novas ideias trazidas por Obama, as mudanças na diplomacia estadunidense são explicadas por diversas razões: as transformações recentes na economia cubana, a vitória da esquerda em diversos países da América Latina e as mudanças na própria comunidade cubano-americana. Esse conjunto de fatores têm tornado as posições dos Estados Unidos em relação à ilha cada vez mais isoladas e de difícil permanência diante de atores internacionais mais ágeis, como União Europeia, China e Canadá.
O “Período Especial” do Pós-Guerra Fria
Quando a União Soviética e os regime socialistas da Europa Oriental entraram em colapso, entre 1989 e 1991, muitas pessoas acreditaram que o mesmo aconteceria em Cuba. Afinal, o país dependia desses aliados para vender sua produção de açúcar e tabaco a preços mais elevados do que os do mercado, e para importar produtos industriais e combustível a custo reduzido.
O fim do bloco soviético lançou a economia cubana numa séria crise, conhecida como “período especial em tempos de paz”, que durou, oficialmente, de 1991 a 2005. Durante essa época, o PIB da ilha caiu 36%, as exportações, 47% e as importações, 70%. Pobreza e desemprego, de taxas irrisórias, saltaram para 20% e 10%, respectivamente.
O governo reagiu com um pacote de austeridade, racionando gêneros básicos e abrindo a economia à iniciativa privada, tanto cubana quanto estrangeira. Contudo, a liderança da ilha havia aprendido com os erros da União Soviética e optou por reformas mais moderadas e controladas, à semelhança daquelas implementadas pela China e pelo Vietnã. As empresas estrangeiras foram convidadas a se instalar em Cuba, mas sempre em joint-ventures com o Estado – cada sócio responsável por 50% do empreendimento. As autoridades também decidiram abandonar setores em que não era mais possível competir com os rivais estrangeiros, como na tradicional indústria do açúcar, que havia ficado defasada diante das inovações tecnológicas do agronegócio brasileiro e fora prejudicada pelo protecionismo agrícola da União Europeia.
As medidas do governo cubano foram bem recebidas internacionalmente e diversas firmas se interessaram em fazer negócios na ilha. Os conglomerados turísticos espanhóis investiram em hotéis de luxo, as mineradoras canadenses, na extração de níquel, as estatais chinesas multiplicaram por seis a produção de petróleo cubano. A economia voltou a crescer, com o turismo superando o setor açucareiro como o mais importante. Novos segmentos, como a biotecnologia, também prosperaram.
Os Estados Unidos perderam a oportunidade de dialogar com as mudanças. A comunidade cubano-americana se negou a entrar em entendimentos com Fidel Castro e suas pressões foram ouvidas em Washington. Esse importante segmento populacional está concentrado na Flórida – um dos maiores colégios eleitorais estadunidenses, e ainda por cima um “swing state”, isto é, estado que ora vota com republicanos, ora com democratas, sendo cortejado por ambos os partidos.
Tal atenção resultou nas leis Torricelli e Helms-Burton, ainda mais duras e restritivas para regular as relações com Cuba. O caso Elián, no qual um menino sequestrado pela mãe cubana (que tentou emigrar para os EUA e morreu na travessia) foi devolvido ao pai, que vive na ilha, tensionou ainda mais a agenda entre os dois países.
Cuba no novo cenário latino-americano
A partir do fim da década de 1990, partidos e movimentos de esquerda começaram a vencer as eleições em diversos países da América Latina. O resultado foi uma onda eleitoral progressista que deu a Cuba o cenário regional mais favorável desde a Revolução. A relação mais importante é com a Venezuela de Hugo Chávez, com a qual a ilha estabeleceu acordos que garantem segurança energética em troca de serviços sociais, sobretudo ajuda médica.
Melhor disposição política favoreceu os negócios e, atualmente, cerca de 40% do comércio exterior cubano se dá com os demais países latino-americanos, recorde histórico e ruptura para um país cujas exportações tradicionalmente se destinavam aos mercados de fora do hemisfério. Os novos aliados e clientes regionais querem Cuba de volta à Organização dos Estados Americanos, ao Grupo do Rio, à Cúpula das Américas e às outras instituições do sistema interamericano.
Enfim, as mudanças também chegaram à Flórida. Está em curso uma alteração geracional na liderança da comunidade cubano-americana. Os homens e mulheres mais velhos, que haviam vivido na Cuba pré-revolucionária, morreram ou se afastaram da política, sendo substituídos por uma ala jovem mais pragmática, sem memórias diretas da ilha antes de Fidel, de agenda focada nas oportunidades de negócios perdidas para a União Europeia, China e América Latina por conta do anacrônico embargo econômico que herdaram da Guerra Fria. Eis a base eleitoral que impulsiona o discurso renovador de Obama.
A ironia da história é que Cuba nunca precisou tão pouco dos Estados Unidos. Com suas reformas econômicas e novos aliados internacionais, a ilha recuperou a prosperidade. Raúl Castro afastou a assessoria tecnocrática que havia realizado as mudanças para o irmão, e colocou em seu lugar oficiais militares mais confiáveis politicamente, embora menos propensos a transformações ousadas. É questionável que essa liderança política mostre entusiasmo por negociações arriscadas com os Estados Unidos, contra o qual pesam longas décadas de desconfianças e inimizades.
sábado, 2 de maio de 2009
Anna Akhmátova
Há algum tempo venho fuçando histórias culturais da Rússia e foi por meio delas que me interessei pel poesia de Anna Akhmátova, certamente uma das mais talentosas artistas do século XX, e das mais importantes testemunhas dos horrores do totalitarismo soviético. Foi então uma bela supresa descobrir, por acaso, uma Antologia Poética de sua obra, publicada em edição de bolso pela L&PM. O organizador, Lauro Machado Coelho, também escreveu uma elogiada biografia da poeta.
Akhmátova começou a escrever na década de 1910, às vésperas da Primeira Guerra Mundial e da Revolução que destruíram a velha Rússia. Ela foi uma destacada representante da geração conhecida como Idade de Prata, a excelente vanguarda artística daqueles anos turbulentos. Sua própria obra poética é marcada pela busca de linguagem cotidiana, da clareza da expressão e de uma riqueza psicológica nos personagens de seus versos que muitos críticos relacionam à tradição literária da prosa russa do século XIX. ´
Como tantos de seus contemporâneos, Akhmátova sofreu com a perseguição do período soviético, em particular sob Stálin: um de seus maridos foi executado e seu filho ficou anos preso. A poeta, embora admiradíssima pela população e pelos seus colegas, foi com frequencia desprezada pela crítica oficial, por não se enquadrar na camisa-de-força do realismo socialista.
Seus dois livros mais importantes são “Réquiem: um ciclo de poemas” e “Poema Sem Herói”. O primeiro trata do terror stalinista, e Akhmátova descreve as mulheres que esperam na porta das prisões de Leningrado por notícias de seus maridos e filhos. Uma, ao reconhecê-la, pergunta se ela é capaz de descrever a cena. Ao ouvir a resposta afirmativa, “uma coisa parecida com um sorriso surgiu naquilo que um dia tinha sido seu rosto”. E, de fato, os versos são de arrepiar, fazendo analogias entre a tragédia da década de 1930 e outros períodos de perseguição política na sombria história russa. Mas os sentimentos que expressa são universais, como os da Pietà, da mãe que sofre pelo filho:
Há dezessete meses choro
chamando-te de volta para casa.
Já me atirei aos pés de teu carrasco.
És meu filho e meu terror.
As coisas se confundem para sempre
E não consigo mais distinguir, agora,
Quem a fera, quem o homem,
e quanto terei que esperar até sua execução
Só o que me resta são flores empoeiradas.
Já “Poema Sem Herói” é um panorama histórico abrangente, que começa nos salões literários da São Petersburgo em 1913 (“e o tempo da loucura se aproxima... enquanto pelos legendários cais/o autêntico – não o do calendário/Século XX avança) e atravessa o terror stalinista e o terrível cerco da cidade – já rebatizada de Leningrado – pelo exército nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.
Pergunte a meus contemporâneos -
condenados, cento-e-vinte-cinco, prisioneiros -
e te contaremos como vivíamos
cheias de medo inconsciente,
como criávamos os nossos filhos para o carrasco,
Para a prisão e a câmara de tortura.
Akhmátova sobreviveu a tudo, embora muitos de seus poemas só fossem publicados na Rússia com as reformas de Mikhail Gorbatchev.
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