quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A Batalha por Nova York



O parque parecia destinado a grandes acontecimentos. Henry James e Cole Porter lhe dedicaram obras de arte. Jack Kerouac e Bob Dylan gostavam de perambular por seus bancos, matando o tempo e observando as crianças a brincar. A poucos passos da Quinta Avenida, o Washington Square Park também seria o estopim de um conflito que mudaria o urbanismo dos Estados Unidos, opondo o principal construtor de Nova York, Robert Moses, e a jornalista e ativista comunitária Jane Jacobs. A história dessa disputa – e das diferentes concepções de cidade que os dois representavam – está contada de maneira magnífica em “Wrestling with Moses”, do jornalista Anthony Flint.

Moses estava no auge do poder no início da década de 1960. Desde o New Deal ele era uma figura importante na política nova-iorquina, chegando a ocupar simultaneamente mais de 10 cargos nos governos municipal e estadual, quase todos ligados à realização de obras públicas. Ele construíra 17 parques, 13 pontes, 10 piscinas públicas gigantes, 2 túneis e mais de 1000 quilômetros de estradas. Mudou a face da cidade e se tornou o mais conhecido planejador urbano dos Estados Unidos.



Jacobs era uma jornalista respeitada nos círculos dedicados à arquitetura, mas ainda pouco conhecida. Ela migrara para Nova York vinda do cinturão do carvão e do aço na Pensilvânia e trabalhara como repórter para publicações diversas. Sua grande paixão era a própria cidade, em especial o bairro de Greenwich Village, onde morava com o marido arquiteto e três filhos pequenos.

Para Moses, Nova York era parte do problema. Superpovoada, com bairros repletos de ruas estreitas e prédios decadentes, e problemas de circulação sem fim. A solução: derrubar os cortiços e áreas pobres, recomeçando do zero para que a iniciativa privada pudesse construir prédios novos, como torres de apartamentos. Viadutos, vias expressas e pontes melhorariam o trânsito e aqueceriam combalida economia municipal, que sofria com a perda de sua base industrial. Escrevendo sobre arquitetura e planejamento urbano, Jacobs começou a criticar esse modelo, ressaltando a importância da vida comunitária, dos laços entre as pessoas nas vizinhanças tradicionais, de como o pequeno comércio era importante para dinamizar o cotidiano, fornecendo às pessoas mais do que produtos e serviços, mas também um espaço para conversar, encontrar amigos. A boa cidade não era feita do planejamento, mas fruto do convívio espontâneo e da recriação do dia a dia, de milhares de gestos simples.

Jacobs passeava com os filhos no Washington Square Park e ficou indignada com o plano de Moses de cortá-lo em dois com uma via expressa. Terminou como líder de um movimento comunitário que se opunha ao projeto, e que serviu de base para contestar toda a doutrina das grandes obras e enterrar a carreira de Moses. Como argumenta Flint, o embate prenunciou em alguns anos a turbulência dos Estados Unidos pós-1968, com os protestos contra o Vietnã e a desconfiança das autoridades após o escândalo de Watergate. Moses saiu do confronto criticado como autoritário, cheio de segredos e abrindo as portas para a corrupção (embora ele mesmo não tenha se aproveitado de dinheiro público).



O conflito serviu de estímulo para que Jacobs colocasse suas idéias em formato de livro, resultando em “Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas”, um clássico absoluto que mudou a maneira pela qual as pessoas pensam sobre urbanismo. Mas a luta foi dura e ao fim Jacobs e sua família trocaram Nova York por Toronto, no Canadá, onde seu marido foi construir hospitais, e seus filhos, escaparem do recrutamento obrigatório para o Vietnã.

9 comentários:

Igor Moreno Pessoa disse...

Maurício, é um grande prazer vê-lo comentar sobre planejamento urbano. Não esperava essa sua vontade de pensar a cidade, no entanto fico muito feliz, pois sei que suas análises serão excelentes. Acho que a experiência de Brasília realmente mexeu com você. Jane Jacobs possui um pensamento exatamente oposto ao ideal do "mainstream" modernista. Com certeza ela nunca conseguiria viver lá.
Abraços

Maurício Santoro disse...

Salve, Igor.

Bem, se prepare, porque este é apenas o primeiro post de uma série de novos textos sobre o tema. O marcador "arquitetura e urbanismo" vai bombar no blog.

Estou lendo agora outro livro muito interessante sobre a cidade de El Alto, na Bolívia, que deve render um comentário aqui na próxima semana.

Outros volumes na cabeceira incluem um estudo sobre Paris e o livro do Peter Hall sobre a história do planejamento urbano.

Vou precisar das suas preciosas dicas e sugestões de leituras! Enriquecidas, claro, por sua experiência em Genebra.

Abraços

carlos disse...

salve santoro,

começou cedo, hein? parabéns! me lembrou o velho ditado: meu nome é trabalho, apelido batalha.

gaiatices à parte, ouso lhe indicar a obra do americano mike davis "planeta favela" (planet of slums), publicada em 2006 pela boitampo editorial, com posfácio da urbanista emília maricata. se li? não. está na prateleira, aguardando a oportunidade. no entanto, pelos artigos que encontrei na blogosfera, o livro tem a sua importância no olhar urbanístico atual. se o professor já leu o livro, por favor, desconsidere a dica.

por fim, a batalha por nova york nos enche de otimismo ao mostrar como o jornalismo cidadão tem a capacidade de mudar uma metrópole. que sirva de exemplo.

abçs

Maurício Santoro disse...

Caro Carlos,

Na realidade, escrevo os posts com certa antecedência - em geral na véspera de sua publicação - mas programo o blog para colocá-los no ar cedo, para que os leitores possam lê-los no início da manhã.

Li "O Planeta Favela" e o resenhei aqui no blog há cerca de dois anos:

http://todososfogos.blogspot.com/2007/08/o-choque-de-civilizaes-no-planeta.html

Por coincidência, comprei hoje outro livro do Mike Davis, "Cidade de Quartzo", sobre Los Angeles. Parece muito bom.

Abraços

luizgusmao disse...

algo me diz q vc vai se interessar mto pela proposta do paul romer de contruir cidades planejadas [charter cities]. vale a pena acompanhar o debate [q acabou d começar] entre ele e o chris blattman:

http://chrisblattman.com/2009/10/06/romer-responds/

luizgusmao disse...

ainda sobre paul romer e suas charter cities - bill easterly tb fez uma longa entrevista com ele:

http://blogs.nyu.edu/fas/dri/aidwatch/2009/10/six_questions_for_paul_romer.html

Maurício Santoro disse...

Salve, Luiz.

Obrigado. Sou um grande fã do blog do Blattman, mas nestes últimos dias não tive tempo de lê-lo com calma, por causa das providências da mudança para o Rio. Mas checarei as referências, valeu pela dica.

Abraços

Patricio Iglesias disse...

Meu Caro:
Me fez lembrar à política de planejamento urbano do Proceso na Argentina. "Plazas secas" sem árbores (nem siquer terra), autopistas por todos lados (e mal desenhadas), falta de integraçäo, todo uniforme, sem vida. Qué bom é pensar que o Rio va ter um tecnocrata que tem em conta idéias muito mas amplas.
Saludos!

Patricio Iglesias

Maurício Santoro disse...

Patricio, meu caro.

Quando morei em Buenos Aires, comprei um livro excelente chamado "La Plaza de Mayo: una cronica", da antropóloga Silvia Sigal. Ela discute de modo interessantíssimo as transformações da praça e suas relações com a política, da época colonial à redemocratização.

Aliás, a construção da Avenida de Maio despertou muitos ciúmes no Brasil, vários projetos daqui foram feitos para rivalizar com essa obra. Incrível o nível de bobagem que pode atingir nossos governantes, não é?

Abraços