sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Teatro de Guerra



Ainda o Festival do Rio. O melhor filme a que vi no evento foi “Teatro de Guerra”, um documentário sobre a montagem da peça “Mãe Coragem e Seus Filhos”, de Bertold Brecht, no Central Park de Nova York, em 2006. Ou seja, simultânea aos conflitos no Afeganistão, Iraque e Líbano, que demonstraram a lamentável atualidade da obra-prima de Brecht.

A equipe envolvida na peça foi espetacular. Meryl Streep interpretou o papel-título e seus depoimentos no filme são reveladores de como essa fantástica atriz pensa a arte de representar. Kevin Kline viveu o principal personagem masculino, mas ele pouco fala no documentário. A tradução foi do premiado dramaturgo Tony Kushner (de Angels in America) e entre os consultores da montagem estava um ex-assistente de Brecht, Carl Weber.



Brecht escreveu “Mãe Coragem” quando estava exilado nos Estados Unidos, fugido do nazismo. O enredo é simples e conta a história de uma comerciante que arrasta sua carroça pelos campos de batalha da Guerra dos Trinta Anos, o selvagem conflito entre católicos e protestantes que devastou a Alemaha do século XVII. A protagonista é ao mesmo tempo aproveitadora e vítima do furor bélico: ela vende para todos os exércitos, negocia no mercado clandestino e lucra (pouco) com a situação. Mas vê seus três filhos serem tragados pelo confronto, e nem toda sua argúcia consegue impedir a destruição de sua familia.

A mensagem da peça é universal, não se limita a um conflito específico, e em geral os diretores gostam de incluir elementos visuais de diversas guerras. A versão do Central Park, por exemplo, colocou de unformes atuais a lenços do Vietnã, o que provoca um excelente efeito de desconforto no público. Posso apenas imaginar como foi a primeira encenação da peça, literalmente em meio às ruínas de Berlim, logo após a queda do III Reich.

Mãe Coragem é uma personagem dificílima de ser interpretada, por misturar de modo tão inseparável crueldade, ganância, dor e compaixão. A versão que vi da peça, com Louise Cardoso como a protagonista, não conseguiu capturar essa complexidade. A atriz era por demais bonachona e gentil. Meryl Streep é outra história e dá um show. Algumas cenas são de arrepiar, como o momento em que ela precisa fingir não reconhecer o cadáver de um dos filhos, para salvar o resto da família. Uma aula de teatro.

Outra lição inesquecível mostrada pelo filme é o depoimento de Brecht ao Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso dos Estados Unidos. O dramaturgo alemão foi interrogado por sua militância comunista e em função disso resolveu sair do país. Mas transformou sua sessão numa atuação impagável, criando o personagem de um imigrante que tropeçava no inglês e era politicamente ingênuo. Na vida real, Brecht dominou o idioma ao ponto de escrever boa poesia nele, e a força política de sua obra sobreviveu aos cataclismas do século XX, pois para além de seu ativismo partidário, expressa questionamentos profundos sobre guerra, injustiças sociais e o modo como as relações de poder e dominação pervertem a sociedade.

Pena apenas que o filme não mostre a reação do público ao espetáculo. Será que os Estados Unidos estão prontos para o tipo de (auto)crítica despertado pela obra de Brecht? Para perceber que, tal como Mãe Coragem, são ao mesmo tempo aproveitadores e vítimas das guerras?

2 comentários:

Mário Machado disse...

E há entre os estudantes das relações internacionais àqueles que por lerem demais sobre guerras e conflitos a ponto de esquecer o peso humano disso. E ficam irresponsavelmente advogando soluções bélicas.

Quem sabe a arte lhes devolva o "juízo"...

Maurício Santoro disse...

"A arte pode nos fazer descansar da verdade", já dizia Nietzsche.

Nada mal.

Abraços