quarta-feira, 24 de março de 2010
A Reforma Obama na Saúde
As maiores expansões do Estado ocorrem em momentos de guerras ou de crise econômica. O contexto atual explica as bases da reforma do sistema de saúde que o presidente Obama conseguiu aprovar após longo e difícil processo - 14 meses de negociação, e uma sucessão de votações apertadas, que em no momento mais tenso foi por apenas 7 votos. É a mais importante legislação social nos EUA desde a "Grande Sociedade" de Lyndon Johnson, na década de 1960. Mas - sinal dos tempos - é de uma fragilidade enorme, muito mais restrita do que qualquer mecanismo semelhante existente na Europa Ocidental, e mostra o quanto o espaço público americano foi corroído por 30 anos de debates políticos radicalizados e amargos.
A idéia de que o Estado deve fornecer proteção social aos desvalidos começou a ser implementada na Europa a partir de fins do século XIX. Inicialmente, tratavam-se de benefícios como aposentadorias, pensões e seguro-desemprego, pagos àqueles trabalhadores que contribuíam, compulsoriamente, para os sistemas oficiais. Com a I Guerra Mundial, o tema da habitação entrou com força na agenda. E a II Guerra Mundial marcou o advento do Estado de Bem-Estar Social, com benefícios universais, concedidos a todos os cidadãos. O National Health System britânico é um exemplo célebre.
Theda Skocpol chama a atenção para o fato de que os EUA foram pioneiros no embrião de redes de proteção social - pensões concedidas aos veteranos da guerra civil. Mas depois ficaram para trás, por razões que até hoje são motivo de discussões para os especialistas. Pesam fatores como a maior influência do individualismo no país, a fragmentação dos trabalhadores em linhas raciais e culturais, dificultando ação política conjunta, um sistema eleitoral que tende ao bipartidarismo e complica a formação de partidos com agendas mais radicais etc. Talvez até a ausência dos traumas nacionais representados pela destruição bélica na Europa. Na década de 1930, o New Deal introduziu mecanismos importantes de seguridade social, como seguro-desemprego, mas não estendeu suas redes de proteção à saúde.
O máximo que os americanos conseguiram foram programas públicos de atendimento médico para grupos minoritários e de necessidades especiais - idosos, pessoas muito pobres e veteranos de guerra. Pelos números atuais, cerca de 2/3 da população dependem de planos de saúde financiados pelos empregadores - se forem demitidas, perdem o benefício. Outros 10% pagam planos privados, muito caros. É uma situação curiosamente semelhante àquela que vigorou no Brasil de Vargas e da ditadura militar, antes da criação do Sistema Único de Saúde, na Nova República.
O foco principal da reforma Obama são cerca de 32 milhões de americanos que não têm cobertura de saúde. Eles receberão auxílio governamental para comprarem planos privados, e serão obrigados a fazê-lo, no que é sem dúvida o ponto mais controverso da legislação. A lei também prevê regulação mais rígida para os planos de saúde, sobretudo no sentido de forçá-los a atender pessoas que já tinham doenças e problemas médicos antes de contratá-los. São arranjos muito inferiores aos existentes nos Estados de Bem-Estar Social europeus.
O sistema americano atual é caro e ineficiente. Os EUA gastam espantosos 15,3% do PIB com saúde, cerca do dobro da média européia, e ainda assim tem ampla parcela da população sem cobertura ou com atendimento inadequado. A previsão é que a reforma Obama atenda a cerca de 95% dos americanos, mas ainda ficarão de fora grupos significativos, como imigrantes ilegais e pessoas tão pobres que sequer têm as informações para procurar o auxílio governamental.
Mesmo essa reforma limitada foi obtida a alto custo pelo presidente. Os republicanos foram contra, em bloco, numa atitude polêmica que pode ter prejudicado bastante o partido - as próximas eleições legislativas dirão. É certo que boa parte da população teme as medidas mais controversas da reforma, e a eleição de um senador republicano no ultra-democrata Massachussets (para a vaga do apóstolo-mor da reforma, Ted Kennedy) indica isso. Mas há pontos bem mais consensuais na nova lei, que agradam até aos conservadores. Obama também precisou enfrentar os descontentes entre os democratas, em particular a linha anti-aborto, que extraiu dele concessões de que o financiamento público não seria usado para esse tipo de atividade.
As disputas sobre a reforma não acabaram. Diversos estados americanos iniciaram ações judiciais para alegar a inconstitucionalidade da reforma. E o Senado ainda deve votar a chamada "reconciliation bill", uma versão amenizada da reforma, costurada pelo Congresso para tentar diminuir as tensões provocadas pelo debate.
A especulação atual é se a vitória de Obama na reforma da saúde irá ajudá-lo a aprovar seus próximos projetos legislativos, como a reforma do sistema financeiro e das leis de enfrentamento da mudança climática. A ver.
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9 comentários:
A meu ver a vitória da Speaker Pelosi que empurrou a reforma, jogando pesado para garantir a unidade dos democratas. E ainda peitou e venceu o poderoso Emmanuel.
Todo mundo saiu chamuscado com as ambiguidades éticas como a "compra da lousiana". Que representa tudo que Obama falou que não ia ser..
É, as análises mais céticas sobre Obama argumentam que o impacto negativo do rolo compressor que ele passou no Congresso acabará por dificultar a aprovação de novas leis.
A política americana está tão instável que tenho dificuldade de fazer quaisquer previsões...
abraços
Meu caro:
Não conhecia os detalhes da reforma. Sob a proporção alta sob o PBI (também medida em dólares per capita) tenho lido num texto dos '80 acusações de que a inversão dos EUA é menos focalizada na atenção primária do que na Europa. Digamos, os européus compram vacunas e os norteamericanos remédios. Ainda é assim?
Abraços
Patricio Iglesias
Salve, Patricio.
Pelo que conheço, você tem razão. Como os custos de atendimento médico nos EUA são muito altos, as pessoas tendem a só procurar ajuda quando estão doentes, o tratamento preventivo é deixado em segundo plano.
Abraços
"If you think health care is expensive now, wait until you see what it costs when it's free." (P.J. O´Rourke)
E mais e mais impostos. A reforma vai pesar muito no bolso do trabalhador americano. Estamos vendo mais uma tentativa do governo em controlar a economia e a vida do seu povo, como uma espécie de tutela. Quando vão perceber que o homem é o único capaz de decidir o que é melhor para ele.
Obrigar alguém a adotar um plano e pagar uma multa caso não faça É UM GOLPE seríssimo as liberdades individuais da população. O livre mercado entre os planos de saúde regulam os preços de forma natural, o estado não tem nada a ver com isso.
Ayn Rand realmente deve estar se contorcendo no túmulo.
Salve, Flavio.
O custo da reforma está sendo estimado em quase US$1 trilhão, o que é muito dinheiro em qualquer lugar, em particular num país com um déficit público tão grande quanto os EUA.
O governo Obama alega que ao fim a reforma traria benefícios fiscais, mas não consegui encontrar os fatos que embasam o argumento, me soou apenas retórica de campanha.
O ponto mais frágil da reforma é justamente obrigar as pessoas a fazer um seguro de saúde privado. O mais comum é que isso ocorra no setor público, na medida em que os cidadãos são forçados a pagar impostos.
Mas essa medida, aplicada aos planos particulares, abre espaço para muitos conluios e negociatas, e a qualidade da regulação pública nos EUA tem deixado muito a desejar, como no caso da crise financeira.
Abraços
[semi-OFF]
Há quem aponte que essa falha de regulação deve-se menos aos regulamentos e mais a baixa atratividade dos cargos nas agências que naquele país pagam muito menos que a iniciativa privada. Semana passada teve uma boa matéria sobre isso na FT.
Salve, Mário.
É uma possibilidade, afinal o mesmo problema ocorreu no Brasil até recentemente, as agências atraíam boas pessoas, mas não conseguiam retê-las, por causa dos salários.
Outra dificuldade é a própria sofisticação do mercado de serviços nos EUA, com tantos produtos novos e complexos que o Estado não consegue dar conta de regulá-los de maneira eficaz.
abraços
acho que um sistema de educação coorporativa continuo, como existe em alguns setores no Brasil (tipo MRE) é uma boa para dotar os reguladores de capacidade de preservar o interesse público que também deve ser bem definido por que depender de discricionaridade de funcionários do Estado, qualquer estado, é temerário.
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