segunda-feira, 1 de março de 2010

Vidas Novas



Ingo Schulze (foto) é um escritor alemão que criou o mais original e instigante romance sobre a reunificação de seu país: “Vidas Novas” conta essa História no formato de uma série de cartas escritas por um anti-herói, Enrico Türmer, um homem de teatro que se torna um empresário jornalístico bem-sucedido e fraudulento nos anos turbulentos que se seguem à queda do muro. O próprio Schulze apresenta-se apenas como “organizador” da correspondência de Türmer, e diverte-se apontando as incoerências do “autor” em notas de rodapé. O tradutor da edição brasileira, Marcelo Backes, também se juntou à brincadeira com suas observações pessoais, resultando numa polifonia perfeitamente sintonizada com a confusão biográfica do protagonista.

As cartas de “Vidas Novas” foram escritas de janeiro a julho de 1990, um período crucial na história da Alemanha – o Muro caiu em novembro de 1989 e a união monetária entre os lados Ocidental e Oriental foi implementada oito meses depois. Os textos são todos de autoria de Türmer e seus destinatários são a irmã, um amigo de juventude e uma mulher ocidental que ele conhece na época e com que posteriormente se casa.



A correspondência para os dois primeiros interlocutores cobre os acontecimentos de 1990, as cartas para a futura esposa contam sua infância e juventude em cidades de província na Alemanha Oriental, com seus sonhos vagos e incoerentes de viver experiências sofridas para se tornar escritor e dissidente. De maneira inquieta, ele termina por servir o Exército no período tenso de Lei Marcial na vizinha Polônia, cursa a universidade e se torna diretor artístico de um teatro na pequena Altenburg, na qual vai morar com uma atriz e seu filho adolescente. O furacão político de 1989 o surpreende e ele toma parte do crescente movimento pelos direitos civis, mas sem nunca definir com certeza qual seu papel.

Após a queda do Muro, Türmer entra no turbilhão com seus compatriotas, experimentando as viagens de fim de semana às capitais ocidentais – retomando, de certo modo, a herança européia que lhe fora negada pelo regime comunista – e desfrutando de maneira atrapalhada dos novos benefícios do consumo. Ele conhece um empresário algo suspeito, Clemens von Barrista, com quem faz uma espécie de pacto fáustico (nenhum povo é tão obcecado pelo diabo quanto os alemães, já dizia Thomas Mann, que aliás também sofria da sina) que o leva a embarcar na aventura de fundar um jornal.

O formato epistolar adotado por Schulze é um golpe de mestre, pelo qual nunca temos o panorama objetivo do que realmente aconteceu com Türmer, e sim uma multiplicação de perspectivas, marcadas por engodos, trapaças, pequenas e grandes traições. A metáfora perfeita para a Alemanha Oriental - há um clima um tanto semelhante ao da personagem materna do filme “Adeus, Lênin”, cuja vida havia sido uma mentira tão grande quanto a fachada pela qual o regime autoritário do país buscava legitimidade. O ponto, diz Türmer, é que a reunificação não trouxe algo tão diferente, e talvez tenha apenas aumentado o repertório de maneiras pelas quais os seres humanos podem esconder coisas uns dos outros.

“Vidas Novas” é um romance de fôlego, de 750 páginas, e que consagra Schulze como um autor no qual precisamos ficar de olho. Ele veio ao Brasil para o lançamento do livro e se embrenhou na Amazônia em companhia de seu tradutor. Parece trama de ficção e quem sabe seja isso mesmo, pois Schulze anunciou que planeja escrever sobre a floresta. A conferir.

2 comentários:

Milton Ribeiro disse...

Conheço Backes. Sou seu amigo pessoal e te conto uma coisa para a qual não me foi pedido segredo.

Schulze considera que nunca mais terá em mãos outra história tão notável e relevante como foi a da unificação alemã. Nem que a inventasse. Ou seja, aos 50 anos, acredita já ter escrito sua obra mais importante. Então, procura um novo tema. E parece tê-lo encontrado na Amazônia. Porém aqui acho melhor calar-me, pois se ouvi a primeira parte publicamente da boca de Backes, a outra talvez tenha sido dita privadamente.

Abraço.

Maurício Santoro disse...

Salve, Milton.

Eu sei, li seus comentários sobre o Backes no seu blog, e fiquei impressionado com a iniciativa do Instituto Goethe em promover um debate com o tradutor. Justíssimo reconhecimento a um trabalho que deve ter sido muito difícil.

Aguardemos o livro do Schulze sobre a Amazônia.

Abraços