segunda-feira, 12 de abril de 2010

Política Externa e Direitos Humanos



Conversei com um amigo que tem me ajudado no livro sobre os ditadores e comentei que o governo brasileiro tem se aproximado de todos os regimes autoritários que abordarei. Meu amigo sugeriu que eu dedique um capítulo para examinar criticamente os porquês dessas alianças diplomáticas. Ainda não sei se conseguirei fazê-lo, em razão das limitações de tamanho de uma publicação de bolso. Mas o assunto merece reflexão.

O Na Prática a Teoria é Outra (NPTO) tem feito um apanhado fantástico dos principais debates políticos brasileiros, e há alguns dias o tema foi política externa e direitos humanos. Aquele blog, como este, discorda das atuais posições diplomáticas do Brasil e advoga ações em defesa dos direitos humanos.

A região primordial da ação internacional humanitária brasileira deve ser a América Latina, onde o país tem interesses políticos e econômicos significativos, além da capacidade de influenciar positivamente as crises locais. Não importa muito o que o governo do Brasil diga de Mianmar ou da Arábia Saudita, mas são relevantes suas declarações sobre Cuba ou Colômbia.

O NPTO chama a atenção para o artigo de meu querido Idelber Avelar, que defende as posições do governo brasileiro com base em dois pontos principais: 1) a hipocrisia dos críticos, que atacam as violações de direitos humanos cometidas por regimes de esquerda, mas se calam diante de atrocidades mais sérias perpretadas pela direita; 2) Estados devem se pautar pela não-intervenção em outros países, e cuidar da proteção dos interesses de seus cidadãos.

O artigo do Idelber me impressionou pela virulência e agressividade, tão contrárias ao espírito fraterno e bem humorado do próprio autor. O ponto 1 é uma generalização injusta. Claro que há pessoas que só lembram dos direitos humanos na hora de criticar ideologias contrárias a sua, e isso tanto na direita quanto na esquerda. Mas há indivíduos e organizações que são coerentes em suas posições e atacam tanto a prisão de um dissidente em Cuba quanto um massacre realizado por paramilitares na Colômbia. Ou o fechamento de uma emissora oposicionista na Venezuela e a ocupação ilegal dos territórios palestinos por Israel.

O ponto 2 rende uma conversa mais interessante. A Constituição brasileira afirma que a política externa deve se pautar pelo princípio da não-intervenção, e, simultaneamente, pela prevalência dos direitos humanos e pelo fortalecimento da integração regional na América Latina. Tais diretrizes com frequência são contraditórias e costumam ser interpretadas da seguinte maneira: persuadir outros países a proteger direitos humanos e democracia, mediando crises e negociando pacificamente solução de conflitos, sem contudo agir unilateralmente ou forçar governos estrangeiros a atuar desta ou daquela maneira.



Nos fóruns internacionais, tradicionalmente o Brasil vota contra impor sanções a países que violem direitos humanos. Alguns estão entre seus maiores parceiros comerciais (China, Rússia, Venezuela) ou estão em áreas em que o governo brasileiro busca expandir influência política – África e Oriente Médio. Também pesa certo receio de que esses temas sejam usados para justificar intervenções contra o próprio Brasil. Por exemplo: questão indígena na Amazônia.

Contudo, as tradições não-intervencionistas do Brasil têm sido colocadas em xeque, e ocasionalmente modificadas, em função de transformações estruturais nas relações internacionais e na sociedade brasileira. Desde a Segunda Guerra Mundial e os traumas do totalitarismo e do Holocausto, o princípio da soberania absoluta dos Estados foi substituído por diversas abordagens que valorizam a segurança humana. As pessoas se tornaram sujeitos do direito internacional. Criaram-se sistemas de proteção dos direitos humanos que transcendem fronteiras. O da Organização dos Estados Americanos, da qual Colômbia e Venezuela são signatárias, é um dos exemplos mais sofisticados. A tendência se intensificou após a Guerra Fria, com os debates sobre Estados Falidos, crises humanitárias catastróficas (Congo, Ruanda, Sudão) e doutrinas polêmicas como a “responsabilidade de proteger”.



Embora o governo brasileiro tenha se mantido afastado das interpretações mais radicais, também abandonou suas posturas clássicas. No Haiti, por exemplo, o chanceler Celso Amorim fala em substituir a “não-intervenção” pela “não-indiferença”. Em conjunto com outros países latino-americanos, o Brasil ajudou a prevenir um golpe militar no Paraguai e reverter outro na Venezuela, tentando fazer o mesmo em Honduras. Tanto a Organização dos Estados Americanos quanto o Mercosul exigem a democracia como pré-condição para adesão.

A democratização da sociedade brasileira modificou bastante a agenda diplomática, incorporando temas ou mudando posições internacionais do Brasil em questões como combate ao racismo, defesa do meio ambiente e cooperação em políticas sociais. Ao longo da década de 1990, o governo brasileiro aderiu a quase todos os tratados globais de proteção dos direitos humanos, que incluem a prestação de contas das autoridades locais às organizações multilaterais. Até ditaduras como o Chile de Pinochet e a Cuba dos Castro ratificaram tais acordos, provavelmente porque não os levavam muito a sério.

Contudo, essas novidades positivas ainda não se consolidaram na política externa, em grande medida porque a atual geração de líderes de esquerda no Brasil ainda é muito marcada pela radicalização da Guerra Fria e pelo ideário terceiro-mundista que colocam temas como democracia e direitos humanos em segundo ou terceiro plano diante de valores como autonomia internacional e oposição às elites tradicionais.

O interesse nacional brasileiro é uma América Latina democrática, próspera e estável. Uma ditadura na Venezuela ou o terrorismo na Colômbia contrariam esses objetivos e criam todo tipo de problema: refugiados, risco de guerra civil, enfraquecimento do Estado, oportunidades de ação ao crime organizado e um ambiente de polarização que favorece a intervenção de potências extra-regionais.

5 comentários:

Patrick disse...

Devemos pautar nossa relação com este país em função de seu histórico de direitos humanos? E com este outro? Ou a pauta é seletiva?

Rondinelly disse...

Bem, pelo que entendi a posição idea é a esquecida receita do "diga sim, se for sim; diga não, se for não", com um único peso e uma única medida, seja para os governos com texto ideológico aproximado, seja para os muito diferentes, o que pode causar constrangimentos ou algum desconforto. Não creio que isso possa conviver com o pragmatismo político vigente, porém não deixa de ser a postura mais adequada para povos que se autodenominam civilizados.

Luis Henrique disse...

Prefiro mil vezes o ideário terceiro-mundista ao bom-mocismo diplomático. De boas intenções o inferno está cheio.

Visto que do Itamaraty só é exigido a cobrança aos direitos humanos quando este se relaciona com países cujos interesses contrariam de alguma forma os dos EUA, não acredito que o Idelber faz uma 'generalização injusta', muito pelo contrário, ele tem toda a razão quando critica a credibilidade das agências e organizações multi-laterais de direitos humanos. Sinto muito, mas a OEA é uma piada de mal-gosto.

Artur Perrusi disse...

Grande debate.

A posição de Idelber, na minha opinião, é "leninista". Ele é coerente, nesse sentido.

Contudo, se os direitos humanos fazem, de alguma forma, a mediação entre Estado, interesses e valores, a velha separação maquiavélica entre política e moral precisa ser ou revisitada ou, simplesmente, detonada. Acho, inclusive, que seriam esses os desdobramentos lógicos da posição de Santoro.

Mas minha dúvida é a seguinte: um Estado que incorpore os direitos humanos como interesse e valor é um novo tipo de "Estado Moral"? Pessoalmente, acho concebível um "estado moral" (com muito cuidado para evitar "desvios hegelianos"), mesmo no cenário de um estado democrático de direito. Se ísso é factível, só consigo pensar esse "estado moral" numa comunidade internacional de estados democráticos de direito (a ONU é o princípio dessa comundiade). E se isso é factível, precisaríamos de uma teoria política (pelo menos, no campo da esquerda) que vá bem além do leninismo.

Em suma, para além da separação entre moral e política, a questão moral ou dos valores seria um problema político por excelencia. Aliás, já o é, inclusive, com evidentes repercussões eleitorais, como foi nos states.

Maurício Santoro disse...

Caro Patrick,

Penso que no que toca às grandes potências - EUA, China, União Européia, Japão, Rússia e Índia - o Brasil nada tem a ganhar em adotar posturas agressivas na agenda de DH, embora possa e deva levantar questões nos fóruns internacionais e no que toca às ações desses países na América Latina.

Luiz,

Tem havido muita cobrança aos EUA por violações de direitos humanos, como nos repetidos escândalos no Iraque, no Afeganistão, em Guantanamo. Muitas dessas denúncias foram feitas pelas organizações humanitárias criticadas pelo Idelber.

Salve, Artur.

Diria que temos que revisitar o velho Maquiavel, mas não anulá-lo. Os interesses dos Estados não se limitam a temas econômicos, e incluem a defesa de valores e idéias que lhes são caros.

Abraços