domingo, 31 de outubro de 2010
Comer, Rezar, Votar
Acabou. A disputa presidencial mais polarizada do Brasil desde 1989 chegou ao fim com a vitória de Dilma Rousseff. Pela primeira vez o país será governado por uma mulher, ex-presa política e vítima de tortura. É também inédito que um mesmo partido conquiste pela terceira vez consecutiva a Presidência da República. E não custa lembrar: desde a redemocratização, esta é a primeira disputa em que Lula não estava na cédula, embora a avaliação de seu governo fosse o centro da competição entre os candidatos.
Já escrevi por aqui sobre o primeiro turno. Vamos, pois, à análise do segundo. A oposição conseguiu pressionar o governo com a cartada religiosa, lançando o tema do aborto em discussão. Dilma também se complicou pelos escândalos de corrupção na Casa Civil. Sua campanha teve dificuldades de lidar com ambos os assuntos, mas encontrou uma estratégia bem-sucedida ao transformar a eleição numa espécie de plebiscito sobre se a população preferia a presidência de Lula à de Fernando Henrique Cardoso. A resposta das urnas: a vida melhorou. Condições materiais pesaram mais do que fatores religiosos, mesmo com a intervenção do papa nas eleições.
Para além do maior apoio do eleitorado ao governo petista, há outra diferença crucial: o PSDB tem eleitores. O PT, tem também militantes. O segundo turno e o crescimento de Serra fizeram os ativistas ir às ruas e soltar a criatividade. Numa campanha em que os marqueteiros profissionais cometeram erros primários (como a favela cenográfica de Serra), os amadores mostraram muito mais humor e dinamismo. Transformaram a foto da ficha policial de Dilma durante a ditadura num símbolo de patriotismo e resistência, fizeram um hilariante vídeo ironizando o elitismo que permeou parte do eleitorado de Serra e ainda um ótimo samba brincando com o infame episódio da bolinha de papel.
Infelizmente, o lado negativo da paixão foi uma campanha agressiva, de baixo nível, que atingiu seu ponto mais sombrio justamente na intimidação física a Serra. O candidato oposicionista exagerou na reação e virou alvo de ridículo, mas isso tampouco justifica a postura do presidente Lula, que ao invés de condenar atitudes violentas menosprezou o incidente como algo sem importância. Em grande medida, acredito que a virulência da disputa foi a responsável pelo alto índice de abstenções e voto nulo - um alerta para os principais partidos brasileiros do que os eleitores pensam de suas estratégias mais duras.
Trabalhei bastante como comentarista político durante a campanha, com entrevistas para rádios, jornais e TVs da América Latina, EUA e Europa. Me impressionou no convívio com a imprensa estrangeira o crescimento do respeito internacional pelo Brasil. A disputa presidencial no país foi encarada como um fato importante para a economia global e a estabilidade regional. Jornalistas que cobriram o mundo todo me contavam como estavam espantados com o otimismo e boa vontade dos brasileiros, que não se cansavam de dizer como estavam progredindo e esperando muito do futuro. Ressalto que conversei com as grandes cadeias da imprensa, não se trata de posições de publicações alternativas e radicais politicamente.
Meu momento favorito aconteceu numa entrevista que dei há pouco para a CNN. Após analisar a campanha, a equipe da emissora me disse, no ar, que o Brasil era considerado "a bola da vez" do crescimento global, onde tudo dá certo, e me perguntaram se eu concordava com a avaliação de que ser presidente do país era "a profissão mais fácil do mundo". Caí na gargalhada e respondi que o cargo é sempre muito difícil, mas que o Brasil de fato está em melhor em situação para enfrentar um mundo turbulento do que há 8 anos, quando Lula chegou ao Palácio do Planalto.
Dilma tem pela frente grandes desafios, como a demanda social para que o governo federal se envolva de maneira mais ativa em temas como educação e saúde básicas, e segurança. Precisará lidar também com as cobranças de sua coalizão partidária - PT e PMDB, mas também partidos de médio porte que cresceram bastante, como PSB (força significativa no Nordeste) e PDT. E terá que negociar sem o carisma e a força pessoal de Lula. Serão anos interessantes.
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Adeus a Kirchner
A morte inesperada de Néstor Kirchner não é simplesmente o falecimento de um ex-presidente, mas também a criação de um súbito vazio de poder na Argentina, com repercussões para as relações da presidente Cristina com o peronismo, com líderes sindicais importantes, como Hugo Moyano, e com seu vice-presidente oposicionista, Julio Cobos. A um ano das eleições presidenciais, o vácuo provavelmente resultará no benefício de Francisco de Narváez e de seus peronistas dissidentes. Aberta a temporada de caça pelo controle das diversas facções do partido.
Kirchner fez a maior parte de sua carreira política em cargos na pequena província de Santa Cruz, no extremo-sul argentino. Como um governador peronista contrário a Menem, ganhou popularidade no pós-crise e foi eleito presidente em 2003 com menos de ¼ dos votos – o menor índice da história do país. Seu governo foi marcado pela recuperação econômica, pela renegociação vantajosa da dívida externa e pela reabertura dos processos judiciais contra militares e policiais acusados de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar. Mas também se destacou negativamente, pelas acusações de corrupção, manipulação da inflação, crises de política externa (o longo e desgastante conflito com o Uruguai) e pela extrema concentração de poderes, que na América do Sul só é comparável àquela empreendida por Hugo Chávez.
As piores tendências de seu governo se agravaram desde que sua mulher assumiu a presidência. Mas Kirchner continuou a ser a figura de maior influência na Casa Rosada, além de tocar outros postos, como o comando do Partido Justicialista e da União das Nações Sul-Americanas. As crises políticas se sucederam: conflitos com o agronegócio, com os meios de comunicação (em especial a ruptura violenta com o Grupo Clarín), as disputas internas com o vice-presidente e com o Banco Central... Contraste curioso: o ótimo crescimento econômico e a baixa popularidade de Cristina Kirchner.
Uma das conseqüências da crise na Argentina foi o aumento da fragmentação dos partidos, com maior indefinição na vida política. O país completa 200 anos de vida independente com uma sensação de ansiedade e perplexidade, em oposição ao otimismo do Brasil e da Colômbia ou mesmo com relação à polarização entre projetos políticos na Venezuela. Quais são os modelos em disputa na corrida pela Casa Rosada?
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
A Corrupção e suas Percepções
Nesta semana houve o debate repleto de acusações mútuas entre os candidatos à presidência do Brasil. No mesmo dia, luminares do PT e do PSDB prestavam depoimento na Polícia Federal sobre o que fizeram no verão passado. E para completar, saiu a pesquisa da Transparência Internacional sobre percepções da corrupção. Logo depois, o Polvo Paul apareceu morto. Vamos falar sério: sei reconhecer uma queima de arquivo quando vejo uma.
Naturalmente, a polícia alemã irá alegar que foi morte natural, ou crime passional. Como não somos obrigados a acreditar nisso, vamos aos fatos. O Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional mostra como o problema é sério no mundo todo, atravessando as fronteiras de regimes políticos – democracias e ditaduras, direita e esquerda sofrem com o tema – religiões e regiões geográficas.
Os países que os cidadãos percebem como menos corruptos são as nações escandinavas, o Canadá, Austrália, Nova Zelândia e algumas nações da Europa Ocidental, como Islândia, Holanda e Suíça. No Velho Continente, as crises políticas e/ou econômicas da Itália e Grécia repercutiram mal, tais países estão classificados mais ou menos na faixa da América Latina e da África. Os EUA também experimentaram piora no índice.
A percepção elevada da corrupção não parece ser um obstáculo ao crescimento econômico. Os BRICs, a parcela mais dinâmica da economia global, apresentaram todos maus resultados. Naturalmente, podemos especular que seu desenvolvimento seria ainda maior se contassem com instituições transparentes. É possível, mas tenho minhas dúvidas no caso da China – leis de propriedade intelectual aplicadas com rigor provavelmente atrapalhariam a vida dos empreendedores chineses, ávidos em copiar e melhorar projetos alheios.
Na América Latina, os destaques positivos são Chile, Uruguai e Costa Rica, como é habitual nesse tipo de pesquisa. Países de governos moderados ou conservadores tenderam a se sair melhor do que os regimes bolivarianos. Cuba teve o mesmo desempenho que o Brasil, o que dificilmente é um elogio às práticas da Revolução. A África se saiu mal, mas com bons indicadores no Cone Sul do continente e em algumas nações reformistas, como Gana e Tunísia.
A pesquisa trata de percepções, ou seja, do que cidadãos, empresários e analistas pensam sobre as práticas e instituições de determinado país. Não necessariamente essas observações correspondem à realidade, as opiniões podem ser muito melhores ou piores do que aquilo que realmente ocorre. No entanto, minha experiência de trabalho em pesquisa semelhante – o Índice Latino-Americano de Transparência Orçamentária – me faz acreditar que as observações estão corretas, de maneira geral, embora precisem aqui e ali de ajustes na metodologia.
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Equipe de Rivais
A historiadora Doris Goodwin é hoje a mais respeitada autoridade americana nos presidentes do país. Escreveu ótimos estudos sobre Franklin Roosevelt e Abraham Lincoln e seu marido foi assessor de John Kennedy. Barack Obama declarou que o livro de Goodwin sobre Lincoln, “Team of Rivals”, é uma inspiração importante para seu governo. Em parte pela recomendação fui em busca da obra, que adorei: mistura história da guerra civil com biografia comparada do presidente e de seus principais ministros, que haviam sido seus rivais na disputa pela Casa Branca.
A ascensão de Lincoln ao poder é fascinante e surpreendente. Antes de ser presidente, ele só havia exercido cargos locais no estado de Illinois, e um mandato pouco expressivo como deputado. Tinha perdido eleições importantes, como duas corridas ao Senado. Como foi então que esse homem carismático, mas pouco conhecido fora do Meio Oeste, chegou à presidência?
A resposta está na profunda crise que os EUA atravessaram nas décadas de 1840/1850, pelas tensões em expandir ou não a escravidão para os novos territórios do Oeste. O Sul reagiu com ferocidade ao crescimento do movimento abolicionista, e conquistou no Congresso e na Suprema Corte leis rigorosas para perseguir escravos fugitivos. As tentativas de cercear livros e discursos abolicionistas apavoraram muitas pessoas no Norte, que temiam pela liberdade de expressão e acreditavam que os sulistas queriam impor seu modo de vida a todo o país. As disputas se tornaram violentas: no Kansas, colonos anti e pró-escravidão se enfrentaram em armas pelo controle do estado, na Virgínia, o abolicionista radical John Brown atacou um quartel militar e tentou libertar escravos.
O sistema partidário dos EUA entrou em colapso, pois as principais siglas do país não conseguiam lidar com o tema. Os democratas, sólidos no sul, se aferravam à defesa dos “direitos dos estados” – eufemismo para manter a escravidão. Os Whig se dividiram com relação ao assunto. Surgiram pequenos partidos e movimentos – Solo Livre, Liberdade, Sabe-Nada – de forte teor abolicionista. O Partido Republicano foi criado como um amálgama de coalizões instáveis, baseado sobretudo nos Whigs contrários à escravidão.
Lincoln era oriundo desse grupo e percebeu melhor do que colegas mais poderosos e influentes (como Stephen Douglas, seu rival vitorioso na disputa ao Senado) para onde caminhava a opinião pública. Sua mistura de forte convicção moral e pragmatismo político conquistou grandes apoios entre aqueles que reagiam à ofensiva do sul mas queriam evitar a guerra civil.
Não foi assim, evidentemente. Mas Lincoln teve um gabinete ministerial excepcional: Salmon Chase, do Tesouro, manteve as finanças públicas em ordem por meio do venda habilidosa dos títulos da dívida pública; William Seward, que como Secretário de Estado conseguiu que as principais potências da época, Grã-Bretanha e França, não reconhecessem a Confederação, apesar dos fortes vínculos econômicos de grande importadores de algodão; Edwin Stanton, talentoso titular da pasta da Guerra, responsável pela reorganização do Exército.
Os desafios foram gigantescos. O Exército americano era muito pequeno à época, e estava concentrado no Oeste para lutar contra os índios. Para piorar, os melhores oficiais eram sulistas, como Robert Lee, que recusou o convite para comandar a União e liderou de forma brilhante as tropas da Confederação, quase tomando Washington duas vezes. Lincoln exonerou meia dúzia de comandantes incompetentes, até encontrar seus líderes ideais em dois veteranos do Oeste, Ulysses Grant e William Sherman. Ao ser avisado que Grant bebia demais, o presidente retrucou: “Gostaria de saber a marca do uísque, para distribuir aos outros generais”.
Doris Goodwin reconta a história de modo magistral, de um modo que nos faz simpatizar com Lincoln – um autodidata que superou uma história de pobreza extrema e parece ter sido um sujeito agradabilíssimo, grande contador de casos curiosos. Mas que enfrentou – e venceu – a crise mais séria que seu país enfrentou. Talvez Obama devesse lê-lo com mais atenção.
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
América Latina: a estrela da economia do desenvolvimento?
Nesta semana o ótimo blog de Chris Blattman (professor de Economia e Ciência Política em Yale) publicou um dado interessante, reproduzido na imagem que abre este texto: é uma projeção sobre os países mais abordados nos artigos do Journal of Development Economics, um dos principais periódicos acadêmicos nos estudos sobre desenvolvimento. Como se observa, China e Índia dominam os debates, mas o que chamou a atenção de Blattman é a “sobrerepresentação” da América Latina. A quantidade de pesquisas a respeito da região é bem maior do que se poderia esperar em função de seu peso econômico. Ele e outro blogueiro célebre, Tyler Cowen, perguntam o porquê do interesse tão grande pelo continente em detrimento de áreas mais pobres, como a África. Listam várias hipóteses como proximidade geográfica e semelhança cultural com EUA e Europa, onde estão a maioria dos pesquisadores. É possível, mas acrescentei minha própria resposta.
A disciplina de “economia do desenvolvimento” teve seu surgimento e auge no pós-Segunda Guerra Mundial, entre as décadas de 1940 e 1970. Basicamente, ela procurava ferramentas para aplicar nos países pobres e em rápido processo de industrialização as medidas bem-sucedidas do New Deal americano e da construção dos Estados de Bem-Estar Social na Europa. Naquele período histórico, Ásia e África eram ainda paupérrimas, e a América Latina dominava os debates sobre teoria e prática do desenvolvimento.
Aqueles eram os tempos nos quais a Comissão Econômica da ONU para América Latina e Caribe (CEPAL) influenciava líderes políticos e acadêmicos em todos os países em desenvolvimento, com suas defesas da industrialização planejada pelo Estado, da integração regional e seu apelo de que era possível superar a pobreza e a dependência da exportação de produtos agrícolas e minerais. Politicamente, era o momento em que os EUA buscavam uma alternativa reformista à Revolução Cubana (como a Aliança para o Progresso, do presidente John Kennedy) e apostavam em vertentes como a teoria da modernização em contraponto ao marxismo.
Foi um período raro, no qual acadêmicos latino-americanos de alto gabarito – Raúl Prebisch, Celso Furtado, Aníbal Pinto, Oswaldo Sunkel - dialogavam e influenciavam pesquisadores dos EUA e da Europa, como Albert Hirschman e Albert Fishlow.
A história tem um peso – “path dependence” como dizem os acadêmicos. Como a América Latina foi muito importante no início dos estudos sobre o desenvolvimento, muitos acadêmicos posteriores também se dedicaram à região, dando continuidade e/ou refutando estudos clássicos a respeito do continente. Isso ocorreu apesar das políticas mais promissoras em prol do desenvolvimento virem dos Tigres Asiáticos, como Coréia do Sul, Taiwan e Hong Kong, ou da África ter sido o palco de desastres humanitários muito mais sérios.
Com o ótimo desempenho econômico da América Latina em anos recentes, e as muitas inovações políticas que a região experimenta (por exemplo, o movimento indígena andino) acredito que a tendência irá se fortalecer e que o continente ganhará destaque nos estudos sobre desenvolvimento.
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
AK-47
De todas as armas no vasto arsenal soviético, nada era mais lucrativo do que o modelo Avtomat Kalashnikova de 1947, mais comumente conhecido como AK-47 ou Kalashnikov. É o fuzil de assalto mais popular do mundo, uma arma que todos os combatentes amam. Um amálgama elegante de três quilos e meio de aço e madeira compensada, que não quebra, emperra ou superaquece. Irá disparar mesmo que esteja coberto de lama ou repleto de areia. É tão fácil de usar que até uma criança é capaz de manejá-lo, e elas com frequência o fazem. Os soviéticos o puseram numa moeda, Moçambique o colocou em sua bandeira. Desde o fim da Guerra Fria, o Kalashnikov se tornou a maior exportação do povo russo. Depois disso vem a vodca e os romancistas suicidas. Uma coisa é certa: ninguém estava fazendo fila para comprar os carros deles...
Do filme, “O Senhor das Armas”
A pior arma de destruição de massa existente não é nenhum aparato atômico, químico ou biológico, mas sim o fuzil AK-47. Ele foi projetado pelo militar soviético Mikhail Kalashnikov, a partir de adaptações dos modelos alemães que ele havia observado nas batalhas da Segunda Guerra Mundial. Era uma arma de pobres: simples, fácil e barata de usar e manter. A princípio, os Estados Unidos não se preocuparam com ela. Só notaram sua importância quando se depararam com guerrilheiros vietnamitas que a usavam em combate. E então os americanos perceberam que o AK-47 era muito melhor do que seu próprio M-14.
Em linhas gerais, esse é o conteúdo da excelente entrevista que a revista Foreign Policy fez com C. J. Chivers. Ex-fuzileiro naval, jornalista e historiador premiado com o Pulitzer, ele lançou um livro sobre o AK-47. Ao traçar a história da arma, procura iluminar alguns fatos ainda obscuros envolvendo o velho Kalashnikov (foto que abre o post, posando com sua famosa criatura). Por exemplo, alguns de seus principais colaboradores terminaram presos pela polícia política de Stalin, e aparentemente o gênio de Kalashnikov foi menos em inventar e mais em sintetizar e aperfeiçoar inovações técnicas de outras pessoas.
Nenhuma outra arma ficou tão associada com guerrilhas e movimentos de libertação nacional quanto o AK-47 - líderes como Robert Mugabe (Zimbábue), Saddam Hussein (Iraque) e Osama Bin Laden posaram para fotos com ele, justamente para explorar o simbolismo de rebeldia, e anti-Ocidente, da arma. Mas seus usos iniciais foram na repressão aos movimentos libertários da Europa Oriental, como a revolta dos trabalhadores na Alemanha Oriental (1953) e a Revolução Húngara (1956). A URSS fabricou dezenas de milhões de unidades que se espalharam não só por seus Estados-clientes, mas para todo o tipo de grupo armado.
Chivers afirma que a situação se tornou ainda mais grave no pós-Guerra Fria, com o colapso do bloco comunista na Europa Oriental resultando na disseminação dos AK-47 por diversas zonas de combate, no mundo todo, e que a durabilidade da arma é um fator que ajuda a prolongar a vida de guerrilhas e rebeliões.
Uma série de brilhantes historiadores militares, como John Keegan e Martin van Creveld, nos chamam a atenção para o fato de que a guerra não é simplesmente a continuação da política por outros meios, mas um elemento fundamental da cultura e da afirmação da identidade. Creveld, em particular, tem um ótimo livro no qual discorre sobre o fascínio que as armas sempre despertaram nas pessoas, e como em todas as épocas os guerreiros as decoram com jóias, inscrições, enfeites etc. Penso que muito do glamour perverso do AK-47 vem não do simbolismo político, mas da beleza pura e simples do seu design. Ele não tem nada em excesso. É como uma ave de rapina, um predador selvagem. Um reflexo para o que temos de violento, a “natureza, vermelha com garras e dentes”, da qual falou o poeta Tennyson.
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
A Força da Tradição: os mineiros do Chile
Algumas vezes, sobreviver pode ser melhor do que viver.
Fala final do filme italiano "Caros F.. Amigos", de Mario Monicelli
Quando servi no Conselho Nacional de Juventude, conheci uma colega que havia vivido exilada no Chile, nos anos 60, na época do governo do democrata-cristão Eduardo Frei. Ela e o marido haviam fugido da ditadura brasileira e ainda estavam assustados, quando o porteiro do prédio em que moravam foi conversar com os dois. Trazia nas mãos o rascunho de um artigo sobre marxismo no qual o marido trabalhava, e que havia jogado fora. "Isso é de vocês?", ele perguntou. Ambos ficaram um pouco embaraçados, mas o medo se dissipou com o comentário seguinte do porteiro: "É porque não entendi por que você citou Lênin nesta passagem. Há um trecho de Trotski que funcionaria muito melhor." Sempre me lembro da história quando penso na força do movimento trabalhista chileno - uma tradição que vem pelo menos da Frente Popular da década de 1930, sobreviveu aos quase 20 anos da ditadura Pinochet e que se manifestou com intensidade no drama dos mineiros recém-resgatados após mais de dois meses soterrados.
Em condições quase impossíveis de sobrevivência, os 33 mineiros conseguiram se organizar, eleger líder, porta-voz, guia espiritual, dividir comida, remédios e suprimentos, manter a moral e o bom humor em alta e até preparar um fundo para gerir os recursos que começaram a vir com a fama repentina. Seus familiares montaram um aparato impressionante e eficiente para ajudar a imprensa e as equipes de resgate. Para além dos méritos individuais de cada integrante do grupo, um desempenho tão alto não teria sido obtido sem a tradição de mobilização trabalhista desse grupo profissional - sem dúvida, uma das mais ricas da América Latina.
A mineração é uma das principais atividades econômicas do Chile desde o século XIX. A maior parte das minas se concentra nas regiões desérticas ao norte do país, uma área inóspita, que às vezes parece uma paisagem de outro planeta. A concentração de trabalhadores em grandes instalações propiciou o ambiente para um sindicalismo combativo, o norte chileno foi um bastião da esquerda, sobretudo dos comunistas.
O drama dos mineiros soterrados ilustrou vários pontos das dificuldades do setor, como a falta de condições adequadas de segurança, o risco do desemprego e a instabilidade econômica decorrente da oscilação do preço internacional dos minérios. Os tons de pele e as feições dos protagonistas também serviram para lembrar o quanto o Chile é um país de grande população indígena e mestiça, ainda que seu imaginário nacional por vezes não goste disso - uma amiga brasileira perguntou a um taxista em Santiago com qual povo latino-americano os chilenos mais se identificavam e a resposta, após uma pausa pensativa, foi: "Com os ingleses."
Bem, os mineiros ingleses travaram sua última grande batalha na década de 1980, contra Margareth Thatcher, e o sindicalismo europeu enfrenta uma nova onda de protestos e greves gerais, na difícil conjuntura da crise atual. Talvez possam se inspirar nos chilenos. Ao menos o nível do humor melhoraria bastante.
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Construindo Raça e Nação
Preparo um curso sobre democracia nos Estados Unidos e por conta disso tenho lido muito sobre a história do país. Um dos livros mais interessantes que encontrei foi “Making Race and Nation: a comparison of South Africa, the United States and Brazil”, de Anthony Marx. O argumento central: nos EUA e na África do Sul, os conflitos violentos entre as elites brancas levaram à segregação formal dos negros, ao passo que no Brasil, um maior nível de unidade foi a base para um sistema de discriminação informal, sem as leis rígidas das outras duas nações. Mas isso dificultou a mobilização política negra com base na identidade étnica.
Tanto os Estados Unidos quanto a África do Sul passaram por guerras ferozes entre os brancos no século XIX. No primeiro país, o conflito que dividiu norte e sul (1861-1865) por conta das tensões relativas à escravidão, sobretudo sua expansão ou não para os novos territórios do oeste. No segundo, a guerra dos bôeres (1899-1902), na qual o império britânico incorporou as pequenas e ricas repúblicas africâners, produtoras de ouro e diamantes.
Todos os lados envolvidos nessas disputas usaram os serviços militares dos negros, em geral como forças auxiliares (cozinheiros, carregadores, operários etc), com exceção das tropas americanas da União, que chegaram a incluir quase 200 mil negros, muitos em funções de combate. Mas ao fim dos conflitos, as promessas de reformas que beneficiassem os aliados de pele escura foram abandonadas em nome dos interesses em apaziguar as populações brancas rebeldes. Mesmo que no caso dos EUA, os anos da Reconstrução (1865-1877), tenham sido marcados por avanços sociais para os negros que só seriam alcançados novamente na década de 1960.
O Brasil é o ponto fora da reta. Me parece que Anthony Marx subestimou a importância das rebeliões durante a Regência, que pelo menos no caso da Cabanagem (1835-1840) envolveram um componente de guerra étnica importante. As revoltas escravas brasileiras, do quilombo dos Palmares à insurreição dos Malês, também foram maiores do que suas similares nas outras duas nações, esse deve ter sido um elemento significativo na construção da solidariedade de brancos e mulatos. Mas é certo que as elites brasileiras mostraram um grau maior de unidade e capacidade de resolução pacífica de seus conflitos do que suas contrapartes nos EUA e na África do Sul.
Marx também estuda os esforços dos negros, nos três países, em reagir ao racismo e propor alternativas políticas. Havia, claro, muitos contatos e referências internacionais – as forças anti-apartheid se inspiraram em Martin Luther King Jr. e Malcom X, e nos EUA e na África do Sul os progressistas tendiam a idealizar o Brasil como uma “democracia racial”. O livro foi publicado no fim da década de 1990 e muita água correu debaixo da ponte, desde então: a eleição de Obama, os conflitos xenofóbicos entre negros na África do Sul e a ascensão das políticas de ação afirmativa no Brasil. Dito de outro modo, raça e nação ainda estão em construção nos três países e temos ainda outras possibilidades comparativas muito interessantes, como o movimento indígena na Bolívia.
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Tropa de Elite 2: a guerra agora é na esfera pública
"Tropa de Elite 2" é melhor, mais maduro e sombrio do que o primeiro filme da série. O agora coronel Nascimento descobre que combater a corrupção na polícia - e sua ramificação, as milícias - é muito pior do que enfrentar traficantes em favelas, e que suas batalhas decisivas não são travadas com armas, mas na esfera pública, no Legislativo e por meio da imprensa, a um alto custo pessoal.
"Tropa de Elite" transformou o capitão Nascimento em herói nacional, um tanto a contragosto da equipe do filme, que o havia imaginado como um personagem problemático, à beira de um colapso nervoso. A verdadeira jornada heróica do primeiro filme era a de André Matias, o jovem e idealista aspirante que aprendia, ao longo da história, como se tornar um policial implacável, e eficiente no combate. Seu rito de transição terminava com ele assassinando o traficante que matara seu melhor amigo. Mas a vingança não era redentora, apenas simbolizava o que André perdera ao longo do caminho, como o rompimento com a namorada e o estranhamento com os colegas de turma na faculdade de Direito.
Em Tropa 2, os anos de violência cobraram um preço caro tanto para Matias quanto para Nascimento. O filme começa com os dois liderando uma invasão do BOPE a um presídio onde ocorre uma rebelião liderada por uma facção de traficantes. A operação terá um desfecho inesperado, que alterará a vida dos protagonistas: Nascimento vira subsecretário de Segurança, responsável pela inteligência, Matias começará um período de ostracismo na polícia, e o outro envolvido, o ativista de direitos humanos Diogo Fraga, é eleito deputado estadual com a agenda de denunciar os abusos cometidos por policiais.
O primeiro filme era maniqueísta e apresentava os ativistas de DH como inocentes úteis nas mãos dos bandidos. Diretor e roteirista aprenderam com as críticas: Fraga é um dos heróis do segundo longa, e aos poucos ganha o respeito de um relutante Nascimento, inclusive por razões pessoais - Fraga se casou com sua ex-esposa, e de certo modo fez a cabeça do filho adolescente do coronel, que tem problemas em se entender com o pai. Na Secretaria de Segurança, ele aplica suas idéias para transformar o BOPE numa excelente máquina de guerra. Mas à medida que mata ou expulsa traficantes de favelas, vê o vazio de poder ser preenchido pelas milícias, grupos do crime organizado com fortes ramificações na polícia, na Assembléia Legislativa e que funcionam como cabos eleitorais para a elite do estado.
Nesse aspecto, Tropa 2 é quase um roman à clef: todos os protagonistas são inspirados em figuras públicas do Rio. Fraga, no deputado estadual Marcelo Freixo, que presidiu a CPI das Milícias (e que faz uma pequena ponta como figurante, ao lado do sociológo Michel Misse). Nascimento e Matias, nos policiais Rodrigo Pimentel e André Batista.
Os vilões são facilmente reconhecíveis para aqueles familarizados com a crônica fluminense: são amálgamas de ex-secretários de Segurança, apresentadores de TV, deputados estaduais e federais. O Sistema, como diz Nascimento. Alguns dos episódios do filme, como a captura de uma equipe de jornalistas pela milícia, também foram inspirados em fatos recentes. Não é o padrão de Hollywood. Heróis morrem, coisas más acontecem a pessoas boas, e nem sempre os maus são punidos. Bem-vindos ao Rio de Janeiro.
"A única coisa que o Sistema respeita é a mídia", desabafa Nascimento. Os jornalistas estão por toda a parte em Tropa 2, e exercendo várias funções: fiscais das autoridades, manipuladores da opinão pública, ou simplesmente à busca de suas ambições pessoais, seja ganhar a manchete principal, seja usar sua fama para obter cargos públicos.
Tropa 2 talvez incomode aos fãs mais ardorosos do primeiro filme, pois mostra o quanto a ânsia da sociedade por vingança contra os criminosos é explorada e manipulada pela elite política corrupta que muitas vezes ganha legitimidade ao atender a esses anseios. O mal-estar será excelente, pois estamos diante de um filme altíssima qualidade, inteligente, provocador, tecnicamente impecável. Que venham mais e melhores deste quilate, pois a esfera pública brasileira também é feita pelo cinema.
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
As Guerras do Câmbio
A inflação aleija, mas o câmbio mata.
Mario Henrique Simonsen, ex-ministro da Fazenda do Brasil
O dólar é nosso, o problema é de vocês.
Do secretário do Tesouro de Nixon para seus homólogos europeus.
Nas últimas semanas, nas conversas com jornalistas estrangeiros sobre o Brasil, um tema que surgiu com força foi a questão do câmbio, em particular as declarações do ministro da Fazenda, Guido Mantega, de que o mundo vive uma “guerra monetária”, na medida em que diversos países agem para defender suas moedas diante da apreciação exagerada diante do dólar e do Yuan chinês subvalorizado, o que prejudica a competitividade internacional de muitas nações.
Uma das repórteres com quem conversei estava curiosa em por que o tema não era mais destacado na campanha presidencial. A pergunta é boa, afinal nos últimos meses o real se valorizou cerca de 40% com relação ao dólar, sobretudo em função de duas causas: 1) A combinação brasileira entre baixo risco-país e altas taxas de juros; 2) O processo de capitalização da Petrobras. Combinadas, significam a entrada de grandes volumes de recursos estrangeiros no país, apreciando a moeda.
O governo tenta lidar com o problema. O Imposto sobre Operações Financeiras cobrado do investimento externo aumentou de 2% para 4%, e o Tesouro foi autorizado a comprar maiores volumes de dólares, numa tentativa de conter a valorização do real. Me parece que a melhor análise do tema veio do ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga: a maneira de enfrentar a questão é a melhoria da situação fiscal, de modo a permitir a redução dos juros.
Disse à jornalista que o tema cambial não era tão discutido na campanha porque o real sobrevalorizado prejudica os exportadores, mas é uma visão do paraíso para a classe média. Tenho tantos alunos passando férias na Europa ou nos EUA que minhas salas de aula chegam a apresentar grandes espaços vazios! Quanto a mim, tenho comprado tantos livros na Amazon que devo ser o responsável por boa parte dos problemas da balança comercial brasileira. Que meus amigos e ex-colegas no MDIC me perdoem!
Os problemas enfrentados pelo Brasil são comuns a muitos outros países, às voltas com acontecimentos fora de seu controle – um dólar declinante e a relutância chinesa em apreciar sua moeda. O que se pode fazer, à falta de maior cooperação monetária internacional, são medidas locais para amenizar as dificuldades. A persistir a crise global, imagino que em breve serão necessárias medidas mais rigorosas das instituições multilaterais. Mas como conseguir o consenso, se mesmo a tão integrada União Européia esbarra na cautela alemã em desvalorizar o euro, em detrimento do equilíbrio comercial dos parceiros mais pobres, como a Grécia? Afinal, ao contrário do auge do sistema de Bretton Woods (1944-1971), não temos um país hegemônico capaz de impor as regras que garantam a boa governança mundial.
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Ao Mestre, com Carinho: Nobel para Vargas Llosa
No mês passado, dei de presente a uma amiga o romance “Travessuras da Menina Má”, de Mario Vargas Llosa, pouco antes de que ela viajasse ao Peru. Almoçamos há poucos dias e ela me contava da sua fascinação pelo escritor, que é um dos meus favoritos. E eis que agora o Prêmio Nobel de Literatura finalmente é concedido a Vargas Llosa. Mais do que justo para aquele que é, ao lado de Gabriel García Márquez e Carlos Fuentes, um dos grandes autores latino-americanos vivos, expoente da geração do boom literário da década de 1960.
“O romance é a vida privada das nações”. A frase de Balzac, que Vargas Llosa usa como epígrafe em sua obra-prima, “Conversa na Catedral”, bem pode sintetizar sua produção artística. Seus mais de 30 livros passam em revista a história peruana – e o fluxo mais amplo da América Latina - no século XX. O autoritarismo das ditaduras militares (Conversa, Festa do Bode), as ilusões da luta armada (História de Mayta, Travessuras da Menina Má), a tragédia do Sendero Luminoso (Lituma nos Andes), as dificuldades de profissionalização dos escritores (Tia Júlia e o Escrevinhador), as utopias do passado, pelo olhar terno e algo cético do presente (O Paraíso na Outra Esquina), as hipocrisias e contradições de sociedades ainda muito tradicionais, mas desafiadas pelos ventos de mudança (A Cidade e os Cachorros, Pantaleão e as Visitadoras). Fora suas incursões pela história de outros países, como sua visita aos sertões brasileiros de Antônio Conselheiro (A Guerra do Fim do Mundo).
A política é essencial na obra e na vida de Vargas Llosa. Militante de esquerda nos anos 60 e 60, seu entusiasmo pela Revolução Cubana o levou a trabalhar na Prensa Latina, a agência de notícias criada pelo governo da ilha como uma tentativa de contraponto às grandes cadeias dos EUA e da Europa. Vargas Llosa se desgostou com a perseguição aos artistas cubanos e acabou rompendo com a Revolução, tornando-se politicamente um homem de direita. Concorreu à presidência do Peru nos anos 90, com uma plataforma liberal, mas foi derrotado por Alberto Fujimori, que manteve sua agenda econômica mas não seu compromisso democrático, e com o autogolpe de 1992 implementou um governo autoritário por 8 anos.
A obra ensaística/jornalística/política de Vargas Llosa não é, a meu ver, do mesmo altíssimo patamar de qualidade de seus textos literários. Mas a boa nova é que ele segue com seus romances. O mais recente é “O Sonho do Celta”, sobre um diplomata irlandês que denunciou as violações de direitos humanos no Congo, e terminou enforcado pelos britânicos, como traidor do Império (clique no link para ler as primeiras páginas).
No Brasil, os livros de Vargas Llosa estão sendo republicados pela Editora Alfaguara.
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
Levanta-te, Simon!
A notícia foi anunciada pelo Twitter, numa série de postagens que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, publicou de madrugada por meio de seu telefone celular: “Confesso que choramos... Digo-lhes: tem que ser Bolívar este esqueleto glorioso, pois pode-se sentir sua labareda... Meu Deus, meu Deus, meu Deus... Meu Cristo, nosso Cristo, enquanto eu rezava em silêncio vendo aqueles ossos, pensei em Ti! E como quis que chegasses e ordenasses como para Lázaro: ´Levanta-te, Simón, que não é tempo de morrer.´ De imediato recordei que Bolívar vive!!”
(...)
Embora o apreço de Chávez por Bolívar seja considerado com freqüência como um exótico culto à personalidade, a construção desse discurso político ilustra muitos dos dilemas do chavismo, em particular a dificuldade do presidente em lidar com os movimentos sociais da esquerda venezuelana – uma relação mais difícil e complexa do que parece à primeira vista.
Este é o início do meu artigo “Levanta-te, Simon: uma revisita a Chávez, Bolívar e o ´socialismo do século XXI´. O texto completo está disponível no site da revista Insight/Inteligência.
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
As Eleições Presidenciais no Brasil
Os surpreendentes resultados do primeiro turno nas eleições presidenciais do Brasil são um recado claro para o presidente Lula e para sua candidata: a população apóia suas políticas sociais e a condução da economia, mas quer que o combate à corrupção seja levado a sério, e deseja também conhecer melhor as posições de Dilma Rousseff sobre os temas mais importantes da agenda pública. O segundo turno será uma disputa acirrada, dura, com muitos ataques pessoais e manobras questionáveis. Mas talvez seja igualmente a oportunidade para sair do pretenso consenso dos últimos meses e abrir outras possibilidades de debate sobre as opções do Brasil.
Passei a noite da eleição com a equipe da CNN no Rio de Janeiro, acompanhando os dados da apuração, discutindo os resultados com as jornalistas, entrando ao vivo com as análises do momento e gravando outras participações. Eu esperava comentar sobretudo as perspectivas do futuro governo Dilma, mas é claro que os temas principais foram o crescimento do voto oposicionista, em particular a rápida ascensão da senadora Marina Silva.
Embora Marina tenha sua trajetória política identificada com a questão ambiental, não avalio que sua expressiva votação tenha sido obtida majoritariamente por conta do maior interesse dos eleitores nos assuntos ecológicos. A meu ver, a motivação principal foi o apoio daqueles que a valorizam por sua vinculação ao presidente Lula e às causas sociais, mas sem ter tido escândalos de corrupção em sua equipe, como ocorreu com Dilma. Contou muito também seu desempenho na campanha, e sua figura pública amena e serena, no ambiente de polarização das últimas semanas.
Sua votação a consolida como uma estrela de primeira grandeza na política brasileira e, naturalmente, um apoio que será cortejado por governo e oposição neste segundo turno. Contudo, tenho dúvidas sobre como os eleitores de Marina irão se comportar. Provavelmente muitos terão perfil mais independente e não necessariamente seguirão as diretrizes da senadora ou do Partido Verde.
José Serra não fez boa campanha, mas o PSDB se saiu melhor do que muitos esperavam, em particular em São Paulo, onde Geraldo Alckmin foi reeleito governador e Aloysio Nunes Ferreira, ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso, surpreendeu como senador mais votado. A questão para Serra é como aproveitar o presente que a “onda verde” de Marina lhe deu, e elaborar uma estratégia que lhe permita se opor a Lula e Dilma sem afastar os eleitores satisfeitos com o bom desempenho do governo – a tabela acima, retirada da última edição da Economist, mostra que não será fácil construir esse discurso. Talvez precise mudar o candidato a vice, uma vez que Índio da Costa se mostrou uma escolha problemática, frequentemente envolvendo o titular da chapa em polêmicas radicais e estéreis.
Apesar dos resultados de Dilma terem sido muito abaixo das expectativas do governo, a votação para o Congresso beneficiou a coligação oficial. PMDB e PT fizeram as maiores bancadas no Senado, melhorando muito seu desempenho com relação à última eleição (de 25 para 33 parlamentares). Na Câmara dos Deputados, o PT cresceu levemente (de 83 para 88), o PMDB diminuiu um pouco (de 89 para 79), mas o que mais impressionou foi o declínio do PSDB e do DEM, que passaram de 131 para 96 membros.
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Crise no Equador
Escrevo sem saber ainda do desfecho da crise política no Equador. Pelas informações iniciais parece uma espécie de “greve armada” entre os militares, que pode ser aproveitada de maneira explosiva pelo ex-presidente e coronel do Exército Lucio Gutierrez, que não por acaso se tornou um líder nacional ao comandar uma rebelião semelhante, em 2000, que culminou na renúncia do presidente Jamil Mahuad. Ele foi sucedido por Gutierrez, que por sua vez deixou o cargo em meio a protestos similares, em 2005.
Rafael Correa, o atual presidente, teve uma ascensão meteórica exatamente por conta dessa sucessão de crises. Era um tecnocrata econômico que assessorava o vice de Gutierrez, e foi promovido a ministro da Fazenda quando seu chefe assumiu a presidência. Acabaram por brigar, mas então Correa já era um nome famoso nacionalmente por sua defesa do nacionalismo, num país de economia frágil que chegou a adotar o dólar como moeda para tentar obter um pouco de estabilidade.
Na esteira do boom de hidrocarbonetos da década passada, Correa usou os recursos do petróleo para implementar um projeto de reforma social que fica a meio termo entre Bolívia e Venezuela. Como os bolivianos, os equatorianos têm fortes movimentos sociais e partidos indígenas, que são atores importantes no nível local, embora não tenham conseguido se tornar uma alternativa de poder nacional, como o MAS de Evo Morales. Com o mandatário venezuelano, Correa compartilha idéias políticas, mas com a desvantagem de não ter uma base de poder comparável a que Chávez desfruta entre as Forças Armadas da Venezuela.
Um amigo jornalista que entrevistou Correa em Quito saiu mal impressionado da experiência e o descreveu como “um Collor da esquerda”, um aventureiro sem um partido sólido de apoio e sem um projeto político definido. Pode ser uma boa análise, mas ela não conta a história toda – ninguém no Equador hoje tem um partido de apoio viável para conquistar a presidência e manter a estabilidade no governo.
É uma particularidade curiosa do Equador (e em menor escala, do Peru), porque ao contrário do que muitos pensam, a região andina da América Latina tem sido caracterizada por partidos fortes, sobretudo na Colômbia (liberais, conservadores) e na Venezuela (AD, Copei), mas até certo ponto mesmo na Bolívia do MNR e, agora, do MAS. Infelizmente, equatorianos e peruanos nunca lograram construir sistemas fortes que superassem as clivagens étnicas e regionais entre litoral, serra e Amazônia.
O estopim da crise atual no Equador são cortes nos gastos públicos para se adequar às turbulências econômicas internacionais. Medidas restritivas que afetam de maneira negativa a polícia e as Forças Armadas. Resta ver se as autoridades serão capazes de resolver o problema sem que ele vire uma ameaça para a democracia.
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