domingo, 31 de outubro de 2010
Comer, Rezar, Votar
Acabou. A disputa presidencial mais polarizada do Brasil desde 1989 chegou ao fim com a vitória de Dilma Rousseff. Pela primeira vez o país será governado por uma mulher, ex-presa política e vítima de tortura. É também inédito que um mesmo partido conquiste pela terceira vez consecutiva a Presidência da República. E não custa lembrar: desde a redemocratização, esta é a primeira disputa em que Lula não estava na cédula, embora a avaliação de seu governo fosse o centro da competição entre os candidatos.
Já escrevi por aqui sobre o primeiro turno. Vamos, pois, à análise do segundo. A oposição conseguiu pressionar o governo com a cartada religiosa, lançando o tema do aborto em discussão. Dilma também se complicou pelos escândalos de corrupção na Casa Civil. Sua campanha teve dificuldades de lidar com ambos os assuntos, mas encontrou uma estratégia bem-sucedida ao transformar a eleição numa espécie de plebiscito sobre se a população preferia a presidência de Lula à de Fernando Henrique Cardoso. A resposta das urnas: a vida melhorou. Condições materiais pesaram mais do que fatores religiosos, mesmo com a intervenção do papa nas eleições.
Para além do maior apoio do eleitorado ao governo petista, há outra diferença crucial: o PSDB tem eleitores. O PT, tem também militantes. O segundo turno e o crescimento de Serra fizeram os ativistas ir às ruas e soltar a criatividade. Numa campanha em que os marqueteiros profissionais cometeram erros primários (como a favela cenográfica de Serra), os amadores mostraram muito mais humor e dinamismo. Transformaram a foto da ficha policial de Dilma durante a ditadura num símbolo de patriotismo e resistência, fizeram um hilariante vídeo ironizando o elitismo que permeou parte do eleitorado de Serra e ainda um ótimo samba brincando com o infame episódio da bolinha de papel.
Infelizmente, o lado negativo da paixão foi uma campanha agressiva, de baixo nível, que atingiu seu ponto mais sombrio justamente na intimidação física a Serra. O candidato oposicionista exagerou na reação e virou alvo de ridículo, mas isso tampouco justifica a postura do presidente Lula, que ao invés de condenar atitudes violentas menosprezou o incidente como algo sem importância. Em grande medida, acredito que a virulência da disputa foi a responsável pelo alto índice de abstenções e voto nulo - um alerta para os principais partidos brasileiros do que os eleitores pensam de suas estratégias mais duras.
Trabalhei bastante como comentarista político durante a campanha, com entrevistas para rádios, jornais e TVs da América Latina, EUA e Europa. Me impressionou no convívio com a imprensa estrangeira o crescimento do respeito internacional pelo Brasil. A disputa presidencial no país foi encarada como um fato importante para a economia global e a estabilidade regional. Jornalistas que cobriram o mundo todo me contavam como estavam espantados com o otimismo e boa vontade dos brasileiros, que não se cansavam de dizer como estavam progredindo e esperando muito do futuro. Ressalto que conversei com as grandes cadeias da imprensa, não se trata de posições de publicações alternativas e radicais politicamente.
Meu momento favorito aconteceu numa entrevista que dei há pouco para a CNN. Após analisar a campanha, a equipe da emissora me disse, no ar, que o Brasil era considerado "a bola da vez" do crescimento global, onde tudo dá certo, e me perguntaram se eu concordava com a avaliação de que ser presidente do país era "a profissão mais fácil do mundo". Caí na gargalhada e respondi que o cargo é sempre muito difícil, mas que o Brasil de fato está em melhor em situação para enfrentar um mundo turbulento do que há 8 anos, quando Lula chegou ao Palácio do Planalto.
Dilma tem pela frente grandes desafios, como a demanda social para que o governo federal se envolva de maneira mais ativa em temas como educação e saúde básicas, e segurança. Precisará lidar também com as cobranças de sua coalizão partidária - PT e PMDB, mas também partidos de médio porte que cresceram bastante, como PSB (força significativa no Nordeste) e PDT. E terá que negociar sem o carisma e a força pessoal de Lula. Serão anos interessantes.
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12 comentários:
Muito bom Mauricio! Parabéns pela analise. O país escolheu pela continuidade. Que Dilma alcance os objetivos propostos por sua coligação e tenha margem para governar sem excessos de negociatas.
Mauricio, preciso fazer um convite a você. Qual o teu e-mail?
Forte abraço
Nunca o Brasil pareceu tanto como a “bola da vez”. O Brasil é o darling da comunidade internacional, assim como a Argentina foi nos anos 90 e o Leste Europeu era até outro dia.
Salve, Marcio.
Me escreva no mauriciosantoro1978@gmail.com.
Anônimo,
Às vezes penso o mesmo. É preciso cautela diante dos entusiasmos internacionais e de problemas como o alto nível de endividamento familiar no Brasil, que em conjunto com juros altos pode render uma tremenda bolha.
abraços
Dr. Maurício, já te disse no Curso de Formação EPPGG em Brasília, em 2009, e repito: sou seu fã! Parabéns pelo equilíbrio e sensatez do artigo. Abs., Cadu
Sem dúvida, serão anos interessantes. Dilma sempre me pareceu um fantoche para um mandato-tampão. Vamos ver como se sairá agora. Parabéns pelas entrevistas, amigo.
Grande Cadu,
Sabe que andei pensando muito por estes dias naquele curso que fizemos sobre economia brasileira... Lembro da aula sobre os planos de combate à inflação, e de como ficamos rindo lembrando dos absurdos a que sobrevivemos... Enfim, Dilma está bem servida de gestores! Toquem a Corte! :=)
Querida,
Fiquei surpreso em como a Dilma cresceu durante a campanha, ela segurou barras pesadas e no fim se saiu melhor do que um político como Serra, com 50 anos de vida pública. Oxalá ela tenha um desempenho tão bom quanto presidente.
Abraços
Sem muito a dizer sobre a análise sempre lúcida ainda que com pressupostos distintos dos meus vou me permitir uma brincadeira com o título que pra meu gosto melhor que comer, rezar e votar (uma sacada genial por sinal) é beber, cair e levantar.
Abs,
"Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima", como dizia o sambista.
No Facebook, postei no dia da eleição o vídeo de We Shall Overcome. Eleitores de Dilma podem interpretar como a esperança de que ela supere alguns dos problemas do país. Os de Serra, como a expectativa de que 4 anos passem rápido.
abraços
Estando longe do Brasil toda a campanha se viu com uma perspectiva diferente, atraves dos olhos da midia, que nem de longe sao a melhor referencia.
Foi dificil encontrar um debate saudavel, e como voce mesmo disse, era um plebiscito sobre quem tinha sido melhor no passado, e pouco ou quase nada de projetos futuros.
Falam de campanha agressiva, mas me lembro de ver ao vivo o fatidico depoimento de Miriam Cordeiro, que tirou de Lula sua primeira eleiçao. Como teria sido diferente nossa historia.... Mas tivemos que passar por isso. Engolir o Collor, derrotar o monstro da inflaçao, e começar a erradicar a pobreza. Parece pouco, mas olhando com perspectiva, fizemos o trabalho de um seculo em 16 anos.
Mas ainda falta tanto... EDUCAÇAO e JUSTIÇA sao minhas bandeiras, e quem sabe um dia eu possa pensar em voltar pro Brasil.
Salve, Glaucia.
Houve momentos nesta campanha em que me senti de volta a 1989. Mas acho que o país melhorou bastante desde aquele tempo, inclusive na construção de meios de comunicação alternativos (via Internet, movimentos sociais etc) à grande imprensa.
abraços
Meu caro:
Sempre os comentarios mais ilustrativos pelo brasileiro e pelo estrangeiro!
Abraços
Patricio Iglesias
Gracias, dom Patricio.
Ainda preciso falar mais sobre a Argentina, tenho muito a ler sobre os desdobramentos da morte de Kirchner.
Abraços
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