quarta-feira, 19 de setembro de 2007
Filhos da Meia-Noite
Há cerca de um mês dei aulas sobre a ascensão da Índia na política internacional e falei um pouco sobre as transformações no país desde sua independência em 1947. Dias depois uma aluna (obrigado, Débora!) me mostrou reportagem do Le Monde Diplomatique sobre a (re)descoberta da literatura indiana, mencionando os diversos movimentos artísticos que afloraram naquela imensa nação no período pós-colonial. Os deuses benevolentes fizeram que eu encontrasse dois dos principais romances citados no texto à venda na feira do livro do Largo da Carioca, num esquema R$10 por três livros.
Comecei por Midnight´s Children, de Salman Rushdie, considerado o maior clássico contemporâneo da Índia. Eu o conhecia somente pelas ameaças de morte que sofreu por parte dos aiatolás iranianos e da Al-Qaeda, e fiquei maravilhado pelo livro: é um épico irônico e trágico sobre os destinos do subcontinente indiano após a independência.
O narrador-protagonista do romance é Saleem Sinai, o filho de uma família muçulmana de alta classe média. Os avós são originários da Cachemira e nunca se sentiram muito à vontade nem na Índia, nem no Paquistão – sua região natal era administrada como um principado semi-autônomo durante a colonização britânica e tem sido brutalmente disputada pelos dois países desde 1947. A ação do romance acompanha a família Sinai e atravessa Índia, Paquistão e Bangladesh durante seis décadas.
Saleem nasceu junto com a independência da Índia, à meia-noite do dia 15 de agosto de 1947, e desde cedo viu sua vida como interligada ao destino do seu país. Egocêntrico, mentiroso, trapaceiro e incrivelmente irônico, ele vai manipulando todos à sua volta, mas também sendo vítima de atos irracionais e loucos que abarcam das excentricidades de seus parentes às guerras fratricidas entre Índia e Paquistão.
O estilo de Rushdie é um fantástico amálgama de praticamente todas as formas de ficção que se possa imaginar, de paródias de relatos religiosos aos cinemas de Hollywood e de Bollywood (o coração da indústria de filmes indiana, a maior do planeta, onde trabalham os tios do protagonista), passando por homenagens às lendas das mil e uma noites e até ensaios de ficção científica. É preciso um mestre da arte de contar histórias para lidar com tantos estilos, e Rushdie tece essa trama de narrativas com um talento que encontra poucas comparações. Entre os latino-americanos, se parece mais a Gabriel García Márquez, embora Cem Anos de Solidão tenha sido publicado depois de Midnight´s Children.
O subcontinente indiano tem mais povos do que todos os episódios de Jornada nas Estrelas e estão todos no romance de Rushdie: os dilemas dos muçulmanos em permanecer na Índia ou migrar para o Paquistão, as perseguições religiosas, os conflitos entre as diversas línguas, o cotidiano nos vales da Cachemira e nas cidades de Agra, Mumbai, Karachi, a morte de Gandhi, as maquinações de Nehru e sua dinastia, as guerras da Índia contra Paquistão e China, a ocupação de Goa... Ufa! Está tudo lá! Um liquidificador em alta velocidade de uma época extraordinária.
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6 comentários:
òtima resenha, fiquei com vontade de ler o Rushdie. Porém, nessa foto ele tá igual ao Zé do Caixão.
Abs
Paulo
Ha ha ha! Mas ele é a cara do Zé do Caixão, com quem também compartilha o gosto por horários macabros e histórias de fantasmas. Falando sério, as fotos do Rushdie com sua última esposa, uma modelo indiana muito magra e alta, parecem stills da obra do Coffin Joe.
Abraços
O livro de Tariq Ali, confronto de fundamentalismo, aborda por diversas vezes as questões relacionadas com as subdivisões do continente indiano.
Dez reais por três livros? Eu comprei e vergonhosamente ainda não li Os filhos da meia-noite há um ano por 50 reais, se não me engano. Dá o endereço exato desta banca. hehe
:)
Olá, Patrick.
Puxa, eu estava pensando nos livros do Tariq Ali hoje mesmo... Mas pelo que sei a série dele cobre vários países.
Salve, Larissa.
R$10 por três livros, edições paperback, em inglês, de clássicos da literatura dos EUA, Inglaterra e Índia. Aliás, esse tipo de oferta é bem comum nas feirinhas do livro, acho que são livros que simplesmente sobram nos estoques dos sebos.
Abraços
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