quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A Ascensão de McCain


A vitória de John McCain nas primárias da Flórida o transforma no favorito a conseguir a indicação do Partido Republicano como candidato à presidência. É uma reviravolta impressionante para o senador, cuja campanha era considerada falida há poucos meses. Pelas regras, McCain ganhou todos os delegados da Flórida à convenção nacional, e obteve seu triunfo num estado em que só votam nas primárias eleitores registrados no partido, derrubando o mito de que só ia bem com os independentes. Também passou à frente de rivais que haviam investido muito mais tempo e dinheiro na região, como Mitty Romney e Rudolph Giuliani – este último provavelmente deixará a corrida de vez.

O senador McCain é um respeitado veterano do Vietnã, onde foi prisioneiro de guerra dos comunistas. Apóia a guerra do Iraque e a permanência de tropas americanas no país, mas tem posições centristas em diversos pontos. O cenário é que Romney e Mike Huckabee vão disputar o voto dos eleitores mais conservadores.

No Partido Democrata, a maré dos últimos dias beneficiou, e muito, Barack Obama. Idelber faz análise brilhante da vitória estrondosa do senador na Carolina do Sul, e de como a estratégia agressiva de Hilary Clinton tem alienado muitos eleitores em seu próprio partido. O fato de Bill Clinton cochilar na homenagem no Harlem a Martin Luther King Jr também não ajuda, convenhamos.



Hilary venceu na Flórida, o problema é que o estado está sob punição pelo Partido Democrata, devido à antecipação não-autorizada da data das primárias, e não enviará representantes à convenção nacional.

O fato mais significativo no campo democrata foi o apoio que a família Kennedy deu a Obama, em emocionante cerimônia, com a filha do ex-presidente afirmando que ele será “um presidente como meu pai”. David Brooks faz comparações muito interessantes entre os dois e ressalta o que vários observadores têm comentado: a intensa participação dos jovens na campanha de Obama. Na Carolina do Sul, nada menos do que 75% dos eleitores nessa faixa etária votaram nele.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

A Fragmentação das FARCs


O Correio Braziliense publicou há alguns dias reportagem muito boa a respeito da luta pelo poder dentro das FARCs. O líder histórico da guerrilha, Manuel Marulanda, estaria moribundo, com câncer. De fato, há cinco anos não se divulgam fotos suas, correm até rumores de que já teria morrido. Segundo o jornal, o grupo se dividiu entre diversas correntes, umas mais radicais, favoráveis à intensificação do conflito armado com o governo colombiano, e outras que defendem negociações – o rosto mais visível destas é Raúl Reyes (foto), um dos porta-vozes das FARCs para a comunidade internacional.

As disputas internas na guerrilha estariam dificultando ainda mais as negociações, uma vez que as facções em conflito com freqüência sabotariam as ações de suas rivais. Isso explicaria fiascos como o do menino Emmanuel e tragédias como o assassinato de 11 ex-deputados colombianos.

Em meio às lutas políticas, a retórica de Chávez contra Uribe atingiu níveis ainda mais elevados de estridência. Sergio Leo chama a atenção para um artigo precioso de Alfredo Rangel, ex-Conselheiro de Segurança Nacional da Colômbia, que minimiza os arroubos oratórios do presidente da Venezuela:

Pero, a pesar de su incontinencia verbal, Chávez es un político perspicaz, sabe para dónde va, cuáles son sus intereses y sus posibilidades, y no tiene vocación de perdedor. Chávez no va a amarrar su destino a las Farc. No va a arriesgar la estabilidad de Venezuela, ni el futuro de su proyecto bolivariano, ni las relaciones con otros gobiernos reconociendo a las Farc como beligerantes, recibiendo sus embajadores, dándoles apoyo militar masivo y enfrentándose a Colombia por cuenta de la guerrilla.

Os motivos apontados por Rangel dizem respeito, basicamente, aos custos internos que Chávez enfrentaria na Venezuela, caso se aproximasse ainda mais das guerrilhas e as considerasse como “beligerantes”. Ele calcula, a meu ver acertadamente, que um gesto desse nível causaria imensos problemas com o Exército, de cujo apoio o presidente depende para se manter no poder.

Quem se interessa pelo processo de paz colombiano precisa acompanhar também as negociações com o Exército de Libertação Nacional (ELN). Esse grupo guerrilheiro é menor do que as FARCs e mais concentrado na questão da nacionalização do petróleo. Em 2004-2005 houve uma tentativa de acordo com o governo colombiano. O embaixador mexicano Andrés Valencia, que liderou os esforços de mediação internacional, faz relato exaustivo, mas muito rico, sobre as dificuldades que enfrentou.

O diplomata afirma que o ELN enfrentava "un creciente debilitamiento militar que obligaba al grupo insurgente a privilegiar la lucha política en aras de mantener un identidad propia frente a las FARCs" e que os guerrilheiros acreditavam que Uribe "requería de un proceso de diálogo con el ELN a fin de compensar ante la opinión pública nacional e internacional los Acuerdos de Santa Fé de Ralito" (isto é, com os paramilitares). Trata-se de um quadro complexo, em que Uribe, FARCs, ELN e os paramilitares avançam e recuam conforme a escalada de violência, derrotas ou vitórias bélicas, golpes de opinião pública e mudanças na conjuntura diplomática - a guerrilha rompeu o diálogo, entre outras razões, porque o México criticou a situação dos direitos humanos em Cuba.

Há esperança para a Colômbia? Penso que sim. Qualquer um que conviva com as pessoas daquele país fica impressionado com sua inteligência, dedicação, bom humor e capacidade de superar adversidades. Um colega colombiana do IUPERJ me convida a participar da mobilização mundial contra as FARCs, no próximo dia 4 de fevereiro. Serão protestos em várias cidades, que esperam reunir 1 milhão de pessoas. O movimento começou com um boca a boca pela Internet (Facebook) e tem conquistado adeptos muito rapidamente.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

As Guerras do Futuro



Para os militares americanos, as guerras que o país lutará nos próximos 15 anos serão conflitos de pequeno escopo, voltados para embates religiosos, étnicos ou operações de contra-terrorismo. A maioria ocorrerá numa área geográfica que vai da África do Norte à Ásia Central e que corresponde, em termos históricos, ao antigo califado islâmico. Boa parte delas será de caráter “híbrido”, misturando guerra convencional com contra-insurgência. Jovens pobres de países em desenvolvimento, concentrados em grandes cidades à beira-mar, são analisados com especial atenção como futuros antagonistas.

Este sumário é baseado em textos disponíveis no excelente site americano Small Wars Journal, que posta artigos e análises diárias a respeito das guerras em curso, em particular no Iraque e no Afeganistão. Os autores são jornalistas, acadêmicos e militares envolvidos no debate e na implementação das políticas de defesa dos Estados Unidos.

Em grande medida a discussão atual resume as experiências traumáticas dos últimos anos, sintetizadas no novo manual de contra-insurgência do Exército americano (a Força Aérea e os Fuzileiros Navais também têm publicado documentos a respeito). No blog que citei acima, John Donnelly examina o que mudou no pensamento militar:

Para o Exército, a nova doutrina significa um abalo cultural sísmico. Ele ainda terá canhões e blindados, mas também precisará de mais pessoas treinadas em línguas, relações públicas, desenvolvimento econômico e mesmo antropologia. Em vez de aceitar resmungando as tarefas de reconstrução nacional, como fez inicialmente no Iraque, o novo Exército precisará na maior parte dos casos abraçar a nova função. Desse modo, a “revolução nos assuntos militares” baseada em alta tecnologia e armas inteligentes, que cativou os estrategistas do Pentágono por décadas, está se tornando uma revolução para além dos assuntos militares.

Será? Me parece que essas análises seguem o famoso ditado de que os generais se prepararam sempre para a última guerra. Neste caso, projeta-se para o futuro o que os americanos enfrentam atualmente no Iraque e no Afeganistão, ou o que experimentaram de maneira breve na fracassada missão de paz na Somália. É um tanto questionável se as próximas guerras de fato seguirão esse padrão. Talvez os futuros governos dos Estados Unidos se mostrem bem mais relutantes em engajar suas tropas em aventuras militares na Ásia, após a constatação de que sair de um país ocupado pode ser mais difícil do que conquistá-lo.

A nova estratégia esbarra num problema sério nos EUA: a falta de pessoal qualificado para as Forças Armadas. Em torno de metade dos cadetes formados pela academia de West Point está abandonando a carreira militar após cumprir os cinco anos de serviço obrigatório. O Exército vem tentando lidar com o problema oferecendo bônus financeiros e melhores possibilidades dos oficiais escolherem bases perto de suas cidades natais, mas não tem adiantado.

Outro ponto - as pessoas mais adequadas para a nova tarefa necessitam de muita empatia e capacidade de compreender culturas estrangeiras, o que não são exatamente características da política externa de nenhuma grande potência. Já citei o caso do tenente-coronel John Nagl, o promissor especialista do Exército em contra-insurgência, que deixou a instituição para se tornar pesquisador acadêmico. Também impressiona a história de John Rushing, que era capitão dos fuzileiros navais, encarregado das relações com a imprensa durante a Guerra do Iraque. Rushing questionou muito do que viu no conflito e agora é repórter da TV Al-Jazeera.

Pessoas e instituições aprendem com os erros, e mudam. Em última instância, essa é a esperança da humanidade.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Justiça Transicional



Recebi há poucos dias o exemplar mais recente da “Sur – Revista Internacional de Direitos Humanos”. A publicação circula em três línguas em mais de 60 países e é excelente leitura para acadêmicos, ativistas e funcionários de governos e organizações políticas. A edição atual é dedicada ao tema da justiça transicional – os processos pelos quais democracias recém-implementadas procuram lidar com os crimes cometidos em seu passado autoritário, buscando mecanismos de conciliação e reincorporação social. Esse tipo de prática tem se tornado razoavelmente comum, implementado em países onde houve ditaduras (América Latina, África do Sul), guerras civis (Uganda, Serra Leoa, Afeganistão) ou mesmo genocídio (Ruanda, Camboja, a ex-Iugoslávia).

A revista traz uma série de artigos muito interessantes discutindo os métodos locais em cada país, uma vez que as circunstâncias variam enormemente e é preciso adaptar os princípios à conjuntura política, história e tradições. Há também uma ótima entrevista com o advogado argentino Juan Méndez, que preside o Centro Internacional para Justiça Transicional, e tem ampla experiência que vai da ditadura em seu próprio país até trabalhos para a ONU na prevenção ao genocídio.

Os mecanismos da Justiça Transicional quase sempre incluem a criação de Comissões de Verdade, Justiça e Reconciliação – a mais conhecida é a da África do Sul, que foi presidida pelo arcebispo Desmond Tutu. Essas iniciativas costumam funcionar com base na concessão de anistia (total ou parcial) em troca de depoimentos e informações. Pode ser frustrante para quem espera a punição dos culpados, mas não é pouca coisa. Já comentei no blog o caso da Comissão peruana, cujo levantamento foi tão rico que se constituiu numa fonte preciosa de história oral sobre a trajetória recente daquele país.

O tema está tornando bastante estudado internacionalmente. O Banco de Dados montado pela Universidade de Winsconsin lista mais de dois mil trabalhos acadêmicos sobre justiça transicional.

E o Brasil? Por aqui, a transição da ditadura para a democracia foi negociada com base em anistia ampla e sem qualquer tipo de comissão da verdade. A idéia era esquecer e jogar sujeira para baixo do tapete. Contudo, há sinais interessantes de mudança, oriundos principalmente da pressão externa. Em 1995, os parentes dos guerrilheiros mortos no Araguaia apresentaram petição contra o governo brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, parte da Organização dos Estados Americanos. A Comissão pediu informações às autoridades brasileiras e o caso se arrasta há longos anos. Basicamente, o governo alega que as leis de anistia (1979) e dos desaparecidos (1995) encerraram a questão, e que as Forças Armadas não possuem documentos sobre a repressão à guerrilha.

A Comissão não aceitou as respostas das autoridades brasileiras e a repercussão internacional do caso foi grande, levando a justiça brasileira a uma decisão sem precedentes, ordenando o governo a localizar os corpos dos guerrilheiros e informar as famílias sobre as circunstâncias de sua morte, mesmo que tais dados não constem dos arquivos militares. O governo recorreu. Em 2007, o STJ confirmou a sentença e o prazo de 120 dias dado às autoridades se esgota em algumas semanas.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Dois Séculos de Soberania



Nesta semana completaram-se 200 anos da chegada ao Rio de Janeiro da família real e da Corte portuguesa. Mais de 20 livros sobre a época foram publicados para celebrar a data, algo incomum num país de pouco hábito de leitura, como o Brasil. Ainda na graduação, li o excelente “D. João VI no Brasil”, de Oliveira Lima, que matou minha curiosidade pelo período. Contudo, vale aproveitar a ocasião para refletir um pouco sobre o que significou a transferência da Corte para nosso país.

Produções populares para cinema e TV consolidaram no imaginário brasileiro a idéia de D. João como um débil mental governando uma sociedade corrupta e decadente, e retrataram sua fuga de Lisboa como um episódio patético e inesperado. A realidade é mais matizada e interessante. Desde a Restauração de 1640, quando Portugal libertou-se do jugo da Espanha, o país tornou-se dependente da aliança com a Inglaterra para defender sua precária segurança e seu império marítimo ainda mais frágil. Já naquela época o padre Antônio Vieira propôs a mudança da capital, e no século XVIII o influente diplomata d. Luís da Cunha reforçou a idéia.

D. Luís havia representado Portugal em Londres, Paris e Madri e estava consciente do atraso lusitano diante da França e da Inglaterra, e assustado diante dos riscos militares nas crises do antigo regime, em particular a Guerra de Sucessão Espanhola. Os terremotos da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas apenas agravaram as circunstâncias, colocando Portugal na situação insustentável de escolher entre enfrentar a coligação França-Espanha ou romper a aliança inglesa.



Não conheço outro império colonial que tenha sido governado de uma de suas colônias, embora algo assim tenha sido discutido na França quando o país foi invadido pela Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. D. João foi mais sábio do que o marechal Pétain, preservou a monarquia e expandiu seus domínios para territórios americanos (os atuais Uruguai e Guiana Francesa) pertencentes a seus inimigos europeus. E pelo de Rio de Janeiro foi ficando, aqui foi aclamado rei e talvez por cá tivesse morrido, não fosse a Revolução Liberal do Porto e a indignação de seus súditos portugueses a exigir o retorno do soberano.

O principal legado da estada da Corte no Brasil foi ter lançado as bases para a construção do Estado nacional, com estadistas de primeiro porte, como d. Rodrigo de Sousa Coutinho, criando os primeiros estabelecimentos de ensino superior, eliminando o monopólio metropolitano do comércio exterior, estimulando a ciência e trazendo para o Rio de Janeiro a célebre “biblioteca dos reis”, que hoje conhecemos por Biblioteca Nacional. Tesouro tão importante que rendeu enormes disputas quando da independência brasileira, menores apenas do que as negociações da dívida externa.

Um olhar mais crítico veria que as bases desse Estado eram terríveis: patrimonialismo, nepotismo, escravidão, atraso econômico. Em grande medida, representavam o que havia de pior na Europa Ocidental naquele momento. Concordo. É destes cacos que estamos tentando construir um país.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Crise e Capitalismo de Estado



Em momentos de crise, a participação do Estado na economia ganha destaque. Mas ela sempre está presente como componente fundamental da estratégia de desenvolvimento de qualquer país.

Os fundos de riqueza soberana movimentam atualmente algo em torno de US$3 trilhões. Foram criados por governos que enriqueceram com o boom de exportações de petróleo ou minérios. Numa situação desse tipo, o afluxo de dólares acaba por provocar a chamada “doença holandesa”, a apreciação perversa da taxa de câmbio, o que torna a vida muito mais difícil para quem exporta outros produtos, como a indústria. Uma das maneiras de lidar com o problema é o Estado criar fundos desse tipo, que canalizam esses recursos para investimentos no exterior.



Os maiores fundos de riqueza soberana estão listados na tabela acima e como se pode ver, a maioria vêm de nações asiáticas, exportadoras de petróleo. Embora acumulem menos recursos que outros gigantes do mercado financeiro, como fundos de pensão, nesses tempos de vacas magras e petróleo em alta, os fundos de riqueza soberana estão injetando capital precioso, urgente mesmo, em diversos bancos e empresas americanos.

O problema é que são controlados por Estados que podem ter objetivos políticos bastante diferentes daqueles defendidos pelo governo dos EUA. Naturalmente, há temores em Washington sobre as implicações diplomáticas da ascensão desses instrumentos de capitalismo de Estado, inclusive o veto à operações desenvolvidas por empresas/fundos da China e do Oriente Médio, que quiseram entrar em negócios considerados pelo governo americano como de segurança nacional, como petróleo e portos.

O Financial Times traz um interessante debate entre especialistas e os leitores do jornal, discutindo os casos da China e da Rússia, dois países em que a prosperidade econômica tem sido acompanhada pelo fortalecimento de Estados autoritários, com agendas políticas próprias que têm entrado em conflito com as dos EUA e da União Européia – sobretudo com relação à Rússia no Cáucaso e na Ucrânia.

A discussão promovida pelo jornal é muito interessante. Meu ponto favorito é o comentário de um leitor se que define como um chinês educado no Ocidente, e pergunta até quando os ocidentais continuarão a acreditar, de maneira arrogante, que seu modelo político-econômico é universal e deve ser aplicado da mesma maneira a todos os países. O editor de internacional do Financial Times responde: “Até quando pudermos nos safar com isso”.

O Brasil deve criar seu próprio fundo soberano ainda em 2008, mas o capitalismo de Estado se manifesta de maneira muito intensa em nosso país com relação à participação governamental em áreas estratégicas como petróleo, mineração e telefonia. Não preciso comentar muito sobre a primeira, dada a importância da Petrobras, inclusive como dinamizadora de diversas economias regionais, em especial aqui na minha província do Rio de Janeiro.

Na mineração, a Vale foi privatizada – mas cerca de 60% de seu capital é controlado por fundos de pensão ligados ao BNDES e ao Banco do Brasil, além do governo ter golden share, ações com poder de veto em decisões cruciais da empresa. As autoridades brasileiras querem que a Vale invista mais em siderurgia, para gerar empregos no país, e pressionam para que ela desista da idéia de comprar a mineradora anglo-suíça Xstrata. Segundo o Valor, o governo acha o negócio de US$90 bilhões caro e arriscado demais.

Outro exemplo do capitalismo de Estado brasileiro são as manobras das autoridades federais para permitir que a Oi compre a Brasil Telecom, formando assim uma gigante de telecomunicações. A princípio seria para impedir que o mercado fosse dominado por empresas estrangeiras da Espanha e do México, e criar um ator brasileiro com capacidade de operar internacionalmente nesse campo. Os problemas: as leis impedem tamanha concentração de poder no setor, algo parecido foi tentado nas bebidas e fracassou (a mega-fusão da AmBev, ao fim comprada por belgas) e há ligações íntimas e perigosas entre os candidatos a barões das telecomunicações e a cúpula governamental.

As operações brasileiras não são exceção à regra. Foram feitas com sucesso por diversos países na Ásia, em especial Japão e Coréia do Sul, que assim formaram suas multinacionais locais, os zaibatsus e chaebols. Também ocorre de maneira semelhante nos EUA, com o papel desempenhado pelas gigantescas compras governamentais na área de segurança, e na França com as fusões impulsionadas pelas autoridades – inclusive pelo ex-ministro das Finanças Sarkozy.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Tensão nas Fronteiras Sul-Americanas


Há tensão nas fronteiras sul-americanas nesta semana, com conflitos envolvendo Colômbia, Venezuela, Chile e Peru. Houve de tudo: remoção de embaixadores, deslocamento de tropas, negociações e processos em tribunais internacionais.

Comecemos pela novela entre Chávez e Uribe. O presidente venezuelano chamou seu embaixador em Bogotá para consultas e enviou policiais e militares para a fronteira com a Colômbia, alegando que defendia a soberania alimentar da Venezuela. Como os alimentos são subsidiados no país, há intenso contrabando para o lado colombiano. Enquanto isso, autoridades americanas do Pentágono e da DEA visitaram Bogotá e acusaram Chávez de facilitar o narcotráfico e promover corrida armamentista na região. O presidente venezuelano respondeu chamando seu colega colombiano de “chefe mafioso”.



Uribe passa a semana na Europa, visitando autoridades francesas, espanholas e da União Européia. Ele conseguiu que todas reafirmassem a classificação das guerrilhas colombianas como organizações terroristas, recusando o pedido de Chávez para que fossem consideradas como “grupos beligerantes”. Contudo, o mais importante é o avanço na proposta lançada pela Igreja Católica e apoiada por França, Espanha e Suíça: criar uma “zona de encontro” para que governo e FARCs possam negociar a libertação de reféns mantidos pela guerrilha. Foi a melhor sugestão a surgir no processo de diálogo até agora.



Peru e Chile têm disputa envolvendo direitos de pesca em seu litoral. O Peru promulgou uma lei no fim do governo Alejandro Toledo alterando a fronteira marítima entre os dois países, dando aos peruanos mais 35 mil km2. O Chile afirma que a iniciativa viola os tratados de limite da década de 1950. Nesta semana os dois países convocaram seus embaixadores e levaram o caso à Corte Internacional de Justiça, em Haia, que pode demorar até 5 anos para resolver a questão. Ou nem isso. A crise das papeleras entre Argentina e Uruguai se arrasta há quase tanto tempo e as decisões da Corte foram tão ambíguas que cada lado as interpretou como quis.

O conflito chileno-peruano é agravado pelas más práticas do passado. Primeiro, o Chile conquistou território desse país e da Bolívia na Guerra do Pacífico, no fim do século XIX, o que resultou numa situação de tensões até hoje não resolvidas. Para piorar, surgiram denúncias de que os militares chilenos contrabandearam armas para o Equador, durante o recente conflito desse país com o Peru, e tudo isso enquanto vigorava um embargo internacional (a Argentina, diga-se de passagem, fez o mesmo).

Com freqüência se trata da América do Sul como um continente onde as guerras foram poucas e tiveram importância reduzida. É um erro de avaliação que deve ser corrigido. Rivalidades militares e disputas nacionalistas são relevantes para o estudo da região. É preciso conhecer como surgiram, quais suas dinâmicas, que grupos ganham e perdem com elas. O notável é que as mais acirradas entre elas – Brasil x Argentina e Argentina x Chile – tenham dado lugar a cooperação política e econômica bastante intensa.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Vieira de Mello no Iraque


Quando eu crescer, quero ser Samantha Power.

A moça é uma das melhores jornalistas do planeta, leciona em Harvard, é assessora de Barack Obama e acaba de escrever mais um livro, “Chasing the Flame: Sérgio Vieira de Mello and the fight to save the world”, que será lançado em fevereiro.

A New Yorker traz uma prévia: seu artigo sobre a trágica experiência de Vieira de Mello como representante da ONU no Iraque, que culminou com seu assassinato em agosto de 2003.

O texto é jornalismo de primeira qualidade. Samantha Power situa o contexto político quase impossível no qual Vieira de Mello teve que operar. Logo após a invasão do Iraque, o Conselho de Segurança aprovou a resolução 1483, que legitimou a ocupação americana do país e deu vaga cobertura para ação da ONU. Kofi Annan acreditou que era melhor do que nada e que se tratava de oportunidade urgente para lidar com a crise de credibilidade da organização.

Vieira de Mello acabara de tomar posse como Alto Comissário de Direitos Humanos e era a escolha óbvia, talvez única, para a missão. Ele tinha vastíssima experiência em lidar com crises humanitárias, refugiados e reconstrução nacional, tendo trabalhado em tarefas assim por 30 anos, em países como Moçambique, Bangladesh, Camboja, Chipre, Sérvia, Timor Leste. E nutria ambições de suceder Annan como secretário-geral. Ainda assim, não quis aceitar: preferia ficar em Genebra com a nova namorada. Annan o convenceu a assumir o cargo por apenas quatro meses e ele acabou concordando a contragosto.

Sua tarefa no Iraque era ser “algodão entre cristais” entre as forças de ocupação e a população local, ajudando na mediação para a formação de um governo provisório e eventuais eleições. Nas palavras de Annan para Vieira de Mello: “Temos que servir como um ponte para a Coalizão [os EUA e seus aliados] mas também teremos que nos distanciar da Coalizão”.

O brasileiro era famoso por seu carisma e foi descrito por um de seus amigos como “um homem que não sabe como fazer inimigos”. Alguns de seus colegas da ONU eram mais críticos e achavam que seu desejo de sempre agradar o levava a compromissos difíceis, segundo Samantha Power havia quem nas Nações Unidas o visse como “acomodado e amoral”, e no mundo árabe vários acreditavam que ele estava sendo usado pelos americanos.

Seu estado de espírito, compreensivelmente, não era dos melhores no Iraque. Samantha o descreve tendo períodos de reclusão e de depressão, evitando contato até com os membros de sua equipe. Um de seus amigos árabes assustou-se ao vê-lo falar na TV, ele parecia um administrador do país (como o que fora em Timor). Ele recomendou que Vieira de Mello procurasse mais contatos com a sociedade iraquiana, com as pessoas comuns no café.

Os problemas de segurança e de falta de infra-estrutura enfrentados pela ONU no Iraque já eram conhecidos, mas Samantha Power dá o tipo de informação que só um bom repórter consegue apurar, listando os erros e a imprudência quase inacreditável. Falhas que também se estenderam ao próprio Exército americano, que não contava sequer com os equipamentos básicos para resgate de vítimas de bombas – o material pertencente aos iraquianos fora saqueado no caos que se seguiu à queda de Saddam Hussein.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Por que o Brasil erra ao apoiar Oviedo


A foto acima foi tirada na semana passada e mostra Lula recebendo o general Lino Oviedo, candidato à presidência do Paraguai. Não serei hipócrita em afirmar que o Brasil jamais deve apoiar políticos estrangeiros em campanha, o país faz isso o tempo todo, em especial quando se trata de um mandatário amigo concorrendo à reeleição. Contudo, o caso de Oviedo é especial.

O general tentou dar um golpe militar em 1996 e é acusado de ser o mandante do assassinato do vice-presidente Luis Argaña, seu rival político. Embora Oviedo tenha seguidores fiéis, suas ações provocaram diversas reações populares, em especial a revolta que ficou conhecida como “março paraguaio” de 1999, que resultou em diversas mortes.

O general passou cinco anos fugido na Argentina e no Brasil, e outros tantos presos no Paraguai pela tentativa de golpe. Estava sob processo pelo assassinato de Argaña quando foi solto pelo atual presidente Nicanor Duarte. O motivo? O Partido Colorado, há 60 anos no poder, corre o risco de perder as eleições para o ex-bispo jesuíta Fernando Lugo. O governo resolveu dividir a oposição lançando Oviedo na disputa.

Oviedo aproximou-se do Brasil em função do lobby de empresários de estados de fronteira, sobretudo Paraná e Mato Grosso do Sul, com interesses no Paraguai. A nação guarani é zona importante para o agronegócio, com extensas plantações de soja controladas por firmas do Brasil e dos Estados Unidos.

A expansão da soja pelo Paraguai tem causado problemas sociais sérios entre os camponeses, cerca de 40% da população. Suas terras são cobiçadas pelo agronegócio e com freqüência eles a vendem na esperança de que conseguirão prosperar nas cidades com o dinheiro. Como têm pouca instrução formal, costumam acabar em biscates e subempregos, ou então migração internacional, em particular para a Argentina, onde vivem 1,5 milhões de paraguaios – são 6 milhões em seu próprio país.

No ano passado estive na zona paraguaia da soja, visitando as áreas de plantação e conversando com os camponeses para a pesquisa sobre juventude sul-americana. É região pobre, baseada em minifúndio, sem máquinas e insumos adequados. O uso intensivo de agrotóxico por parte das empresas contaminou muitas reservas aqüíferas, entrevistei pessoas que tiveram doenças por conta disso, mas continuam a beber a água por falta de opção. Ouvi denúncias sobre violência e intimidação praticada pelas empresas contra os camponeses, com a conivência do Estado.

O movimento camponês e os estudantes são talvez os dois participantes mais ativos nas lutas pela democratização do Paraguai. Embora o país realize eleições desde 1989, persistem muitos traços da longa ditadura do general Stroessner. Impressiona como o autoritarismo permeia a sociedade paraguaia, desde os cargos mais baixos do funcionalismo até as relações familiares.

As maiores empresas do Paraguai são as usinas binacionais de Itaipu e Yacyretá, administradas em parceria com Brasil e Argentina. O país reclama do preço que seus sócios maiores pagam por sua energia e há enorme ressentimento pelo tratamento que recebe no Mercosul. Com freqüência se evocam as memórias da Guerra da Tríplice Aliança. Apesar das queixas, boa parte do gasto social do governo é financiado pelo Fundo de Desenvolvimento de Itaipu – dinheiro gasto sem transparência, a serviço dos interesses clientelistas do Partido Colorado.

O Brasil aposta em Oviedo como garantia dos interesses do agronegócio no Paraguai, e por acreditar que ele será moderado com relação a Itaipu. Grave erro. Oviedo aumentará a instabilidade no país, com os movimentos sociais rejeitando seu governo. O mundo mudou e não estamos mais na era Stroessner, quando os paraguaios aceitavam de bom grado regimes não-democráticos. Provavelmente haverá violência e medidas autoritárias, como as que ele executou em diversas ocasiões no passado. É possível que recorra a golpes de propaganda nacionalista com relação à Itaipu, em momento em que o Brasil corre risco de escassez energética, ou mesmo que confisque terras dos pequenos agricultores brasileiros (não dos sojeiros, claro).

Apoiar um golpista e réu de assassinato para presidir um país vizinho não é a melhor maneira de aperfeiçoar o Mercosul.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Índia: a aventura da descoberta


Terminei de ler meu pacote de livros da Amazon com a estupenda, “India after Gandhi: the history of the world´s largest democracy”, de Ramachandra Guha. Leitura importante para a reformulação do meu programa no Curso Clio, que inclui aulas sobre o Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul.

A Índia está se consolidando como um poder global, com o boom econômico do setor de serviços, a intensificação de seus laços comerciais com a China (apesar de conflitos sérios de fronteira e de disputas sobre o Tibete), aproximação aos Estados Unidos (negociação de acordo nuclear) e a permanência de tensões com o Paquistão, em época de fundamentalismo religioso crescente nos dois lados da fronteira. Notável que a Índia tenha mantido e desenvolvido sua democracia em meio a tantos problemas e imensa fragmentação cultural, talvez maior do que a existente em continentes inteiros como África e Europa.

Guha é ótimo narrador da história recente do seu país com foco na ascensão e queda dos líderes políticos: o primeiro-ministro Nehru e a filha e neto que o sucederam no cargo, Indira e Rajiv Gandhi (apesar do sobrenome, não são exatamente parentes do Mahatma, ele adotou o marido de Indira para que ele pudesse mudar de casta e se casar com ela). Descreve as lutas importantes nos estados, como a ascensão dos comunistas em Kerala e Bengala Ocidental, em plena Guerra Fria, o crescimento do fundamentalismo – sobretudo hindu e sikh – e os conflitos que dividem o Partido do Congresso, como o desgaste causado pela corrupção e por sua longa permanência no poder. Há capítulo curto, mas interessantíssmo, sobre a indústria de cinema indiana, onde aprendi que a minoria muçulmana prospera nela à semelhança dos judeus em Hollyowood.

Guha dá o contexto social e político para que eu entenda muito do tenho ouvido dos amigos e colegas indianos com quem convivi nos últimos anos. Até recentemente, as únicas pessoas que conhecia interessadas na Índia eram as que se encantavam com os aspectos místicos e religiosos. Isso começou a mudar a partir do momento que o país se tornou parceiro importante do Brasil, e se criaram também laços entre as comunidades acadêmicas e os movimentos sociais destas duas democracias que tem tantos problemas comuns.



Experiência marcante foi visita que recebemos no instituto de trabalhadores sociais indianos que encerravam longo projeto de cooperação com os chamados “povos tribais” no estado de Uttar Pradesh, próximo ao Nepal (foto acima). Foi fascinante ouvi-los falar sobre o processo de aprendizado das línguas locais, das adaptações culturais. É outra postura diante do tempo, com planejamento de longo prazo que parece inacreditável para as organizações brasileiras.

Para mim, tem sido um processo de aprendizado e descobertas marcado por fascinação. Penso, por exemplo, na entrevista que fiz com Meena Menon, ativista sindical indiana que foi das principais organizadoras do Fórum Social Mundial naquele país. Meena nos contou sobre sua militância de juventude no partido comunista, das perseguições políticas à época do “Estado de Emergência” (1975-1977) da primeira-ministra Indira Gandhi e das transformações sociais que a indústria têxtil, a mais importante em termos de emprego, passa com a abertura do mercado mundial.

Uma das perguntas que fiz a Meena foi como os movimentos sociais indianos faziam para se comunicar em meio às dezenas de línguas faladas no país. Ela me respondeu que na realidade a questão não foi solucionada, e os encontros políticos duram muito mais tempo do que no ocidente, por causa da necessidade de tradução.



Meus colegas que foram à Índia maravilharam-se sobretudo com os movimentos sociais dos dalits (palavra que significa “oprimidos”, na foto, algumas crianças dalits), que costumavam ser chamados de “intocáveis” e estavam fora do sistema de castas. Gandhi os batizou de harijan, os filhos de Deus. A constituição indiana criou programas de ação afirmativa para ajudá-los e foi em grande medida fruto do trabalho de um dalit, o jurista B. R. Ambekar.

Também me impressiona a seriedade e dedicação dos acadêmicos indianos que conheci – Celso Furtado os considerava os mais qualificados, no campo da economia. Lido mais com sociólogos, mas é igualmente notável seu esforço para compreender a realidade brasileira. Diga-se de passagem, não conheço casos semelhantes no Brasil. Nossa cultura intelectual continua muito fechada, com dificuldade de se abrir ao mundo.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Iraque: Tomando Sopa com Faca


Nesta semana o tenente-coronel John Nagl anunciou que está deixando o Exército dos Estados Unidos. Sua decisão causou furor nos círculos especializados. Nagl é um dos militares mais respeitados e admirados do país, basicamente por seu trabalho como pensador de assuntos estratégicos.

Nagl é um Rhodes Scholar, ou seja, passou por um dos programas acadêmicos mais prestigiados dos Estados Unidos, e cursou doutorado na Universidade de Oxford, onde escreveu a tese “Learning to Eat Soup with a Knife: counterinsurgency Lessons from Malaya and Vietnam”. A escolha do Vietnã é óbvia, a da Malásia se explica porque os britânicos venceram uma ampla guerrilha comunista por lá, nos anos 50.

O militar havia servido no Oriente Médio na Guerra do Golfo, em 1991, e lutou no Iraque após os Estados Unidos invadirem o país em 2003. Depois disso, exerceu diversos cargos importantes como conselheiro político no Pentágono e foi um dos principais autores do novo manual de Contra-Insurgência do Exército americano, elaborado a partir da experiência dos combates recentes.

Nagl afirmou à imprensa que o Iraque lhe ensinou que ele nada sabe sobre contra-insurgência e resolveu deixar o Exército para se tornar pesquisador de um think-tank recém-criado, o Center for a New American Security.



Claro que a decisão de um oficial tão promissor coloca em questão a estratégia que os americanos implementam no Iraque. As estatísticas mostram que o desempenho das tropas melhorou bastante em 2007, mas a Economist chama a atenção para que a melhora é apenas relativa, diz respeito ao contraste com situação precedente, de desespero. Mais de 100 pessoas continuam a morrer na guerra, por semana, e o total de vítimas desde a invasão é estimado em 150 mil.

Ponto diretamente relacionado ao debate é o papel dos militares em tarefas de auxílio humanitário, reconstrução e cooperação para o desenvolvimento. Já escrevi neste blog sobre como o Pentágono assumiu tarefas crescentes na área, uma vez que após o 11 de setembro missões envolvendo atividades desse tipo no Afeganistão e no Iraque ganharam em importância.

Agora a maré começou a virar e analistas políticos como Matt Armstrong argumentam que a experiência no Iraque está ensinando que é melhor deixar a cooperação política a cargo dos civis. Traduzo trecho de seu interessante artigo:

“A militarização da ajuda humanitária reforça a imagem dos Estados Unidos militaristas e leva desconfiança às populações beneficiadas. Se os EUA só aparecem em botas de combate, os aliados tendem a não apoiar ou participar em missões que de outro modo seriam valiosas (...) Comandantes em combate têm procurado enfatizar a cooperação cívico-militar e maximizar a “face civil” do engajamento americano.”

Vários dos candidatos à presidência nos Estados Unidos têm destacado a necessidade de melhorar as políticas de auxílio ao desenvolvimento. Acredito que a reformulação dos órgãos do setor ocorrerá no próximo governo, e vale a pena acompanhar o debate.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O Casaco do Fidel


Vendo as fotos do encontro do presidente Lula com Fidel Castro, constatei que o cubano posou pela milésima vez com seu casaco esportivo da Adidas. A menos que ele tenha virado garoto-propaganda da empresa, a repetição ad nauseam da roupa virou um símbolo da incapacidade de Fidel em mudar. Da negação em iniciar a liberalização da ilha. Vestuário e política andam juntos desde os tempos da fábula sobre a roupa nova do rei, ainda mais num sistema tão personalista quanto o da ilha.

A queda do regime cubano foi profetizada incontáveis vezes desde 1959, e de maneira ainda mais freqüente após 1989, com o fim da União Soviética e do bloco de estados a ela subordinados. Ignoro se o socialismo cubano ainda estará no poder em 2009, do ponto de vista econômico os últimos anos foram de razoável prosperidade para a ilha, na medida em que adaptou-se às novas circunstâncias da economia internacional e construiu parcerias com a União Européia (sobretudo Espanha), China e Venezuela.

No entanto, o êxodo de cubanos para os Estados Unidos aumentou muito em 2007, alcançando os níveis mais altos desde meados dos anos 90. As autoridades americanas afirmam que o crescimento se deve à perda de esperança dos cubanos na abertura do país após o afastamento de Fidel – seu irmão Raúl assumiu o poder oficialmente, apenas tornando claro o que já ocorria de fato. O governo da ilha afirma que a migração é estimulada sobretudo pela facilidade dos cubanos receberem asilo nos EUA, facilidade não desfrutada por cidadãos de outros países caribenhos e latino-americanos.

O comércio entre Brasil e Cuba é pequeno e os vínculos entre os dois países aumentaram de maneira pouco expressiva no governo Lula. A visita do presidente resultou em acordos importantes, principalmente no setor de exploração de petróleo e na abertura de linhas de crédito de cerca de US$1 bilhão para empresários brasileiros que queiram investir no país. A política externa brasileira de direitos humanos consiste, em larga medida, em não mencionar o assunto quando se trata de dialogar com ditaduras e regimes autoritários. No caso cubano, houve até colaboração para despachar de volta à ilha boxeadores que cogitaram outras possibilidades, aproveitando os Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro.

A postura do governo brasileiro é acompanhada pela relutância da comunidade acadêmica em debater a transição política em Cuba. É óbvio que Fidel morrerá em breve e algum tipo de mudança ocorrerá no país. Esse foi um dos principais debates no congresso da Associação de Estudos Latino-Americanos, do qual participei ano passado no Canadá. Basicamente levantam-se as seguintes hipóteses:

1)Saída “Chinesa”: abertura econômica e manutenção do regime comunista, com a prosperidade servindo de contenção às demandas por democracia.
2)Saída “Revolução de Veludo”: transição pacífica, negociada, com o governo aceitando a realização de eleições.
3)Cenários de conflito, no qual o governo não cederá, resultando em possibilidades de golpes, confronto de rua, ou guerra civil.


Encerro, com comentário sobre a foto acima, tirada pouco após a cirurgia de Fidel, quando se discutia se ele estava morto. Para provar que estava vivo, posou com o jornal do dia. O escritor Jean-François Fogel escreveu brilhante crônica a respeito, “O Refém do Poder”. Transcrevo a conclusão:

“En América Latina se conoce muy bien este tipo de documento. Son las fotografías que los secuestradores suelen hacer para demostrar que su rehén no ha muerto. En el caso del líder cubano no se sabe muy bien si el secuestrador es el poder y muestra al pobre Fidel, su víctima, o si es el propio secuestrador que, en un uso revertido del testimonio gráfico, sale en la fotografía y dice que bajo ningún precio, salvo la muerte, soltará al poder, su rehén desde hace casi medio siglo.“

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Dicas de Carreira em RIs



Neste início de ano tenho sido procurado com freqüência por alunos de graduação em RIs que têm dúvidas sobre as possibilidades de carreira a seguir. Natural, é área recente no Brasil, com mercado de trabalho instável. As dicas abaixo são para quem está nessa situação. A primeira metade delas diz respeito à formação educacional, que freqüentemente é negligenciada pelos alunos, muito mais preocupados com questões de emprego - abordadas na segunda parte.

1.Aprenda idiomas.

A língua portuguesa, inculta é bela, é a um tempo esplendor e sepultura, já dizia Olavo Bilac. Os debates internacionais relevantes ocorrem em inglês e você precisa dominar esse idioma com a fluência necessária para ler livros acadêmicos. Aprenda pelo menos outra língua estrangeira – espanhol, se quiser se dedicar à América Latina, francês ou alemão caso queira se especializar na União Européia.

2.Estude história, literatura e cinema.
O ensino de relações internacionais é excessivamente concentrado em modelos teóricos abstratos, criados nos Estados Unidos, que só funcionam para a análise de situações práticas se a pessoa tiver um sólido conhecimento da história e da cultura dos países estrangeiros. Em geral as universidades brasileiras não conseguem dar essa formação ampla, de modo que você deve procurá-la por si mesmo. Leia, leia e leia, veja bom filmes, visite exposições de arte etc.

3.Viaje.
O mundo é um grande livro e quem não viaja lê só uma página, observou Santo Agostinho. Ninguém estuda RIs a sério sem conhecer os países que pretende pesquisar. Se não tiver dinheiro para a aventura, busque alternativas, há programas de bolsas de estudo e intercâmbio, congressos acadêmicos ou possibilidades de empregos temporários nas férias.

4.Conheça estrangeiros.

Aproveite todas as oportunidades para conversar e trocar idéias com estrangeiros, isso lhe dará uma perspectiva única e ajudará no processo (fundamental) de des-provincializar o pensamento. Algo bastante difícil em qualquer parte, em especial num país muito voltado para dentro de si mesmo, como o Brasil. Se você de fato tem vocação para a área, é porque é uma pessoa inquieta, que gosta de questionar os valores tradicionais de seu país e ter acesso a outros pontos de vista. Nada mais irritante na área do que se comportar como personagem de Bernard Shaw: “Ele é um bárbaro, e pensa que os costumes de sua ilha são as leis universais da humanidade.”

5.Explore a Internet.
Navegar é preciso. Sites de jornais, universidades, fóruns de bate papo e discussão, blogs. Você se surpreenderá com a alta qualidade do material que é possível encontrar na rede. Referências obrigatórias são os principais jornais/revistas mundiais, como New York Times, Economist, Le Monde, Guardian, Financial Times, El País etc.

6.Curse pós-graduação.
Só a graduação não basta. Simples assim.

7.Pense as possibilidades de carreira de maneira ampla.
Relações Internacionais NÃO são sinônimo de carreira diplomática. O Itamaraty oferece, em geral, cerca de 30 vagas ao ano. É menos do que uma turma de RI e são dezenas de cursos Brasil afora. Não entre na carreira apostando suas fichas nessa perspectiva. No Estado, considere também oportunidades como gestor de políticas públicas, analista de comércio exterior, analista de inteligência ou setores jurídicos. Na iniciativa privada, leve em conta empresas, imprensa, universidades, organizações não-governamentais, consultorias: todas oferecem vagas na área. Vale se informar. E use a criatividade para inventar oportunidades e vender seu peixe.

8.Procure realizar estágios, mesmo que não-remunerados.
O maior problema na formação dos profissionais de RIs é a ausência de prática na área. Qualquer experiência que envolva cooperação internacional irá lhe ensinar muito. Agarre-a com as duas mãos e se possível prenda-a também com as pernas.

9.Escreva e publique.
Fez uma viagem interessante? Pensou algo novo a respeito de um velho problema? Descobriu um assunto que pode ser uma tendência forte na área? Escreva, escreva e publique. Mande artigos para site acadêmicos, procure as seções de opiniões nos jornais, entre nos debates do Orkut ou, que diabos, crie um blog. É um modo de entrar em contato com pessoas que têm interesses semelhantes aos seus.

10.Escolha uma especialização pela qual você realmente se interesse.

Estudantes sempre me perguntam pelo salário da área. A resposta é a mesma de qualquer profissão: varia imensamente. O fundamental é se especializar – as RIs são vastas – em um tema que realmente seja gratificante, até porque sem esse impulso, ninguém consegue chegar nem na esquina, quanto mais ter uma vida profissional plena. Em todo caso, não tenha ilusões: a carreira requer grandes investimentos em formação e educação, é bastante elitista e competitiva. Boa sorte!

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Amor em Tempos de Cólera



Há uma bela passagem de "Guerra e Paz", de Tolstói, na qual Napoleão recebe em seu acampamento o retrato de seu filho recém-nascido. O imperador manda cobrir a pintura: o bebê é jovem demais para ver a História em marcha. Há ocasiões em que uma criança resume em seu drama pessoal conflitos importantes da política internacional. Assim foi Elián e as relações entre Cuba e Estados, agora ocorreu o mesmo com o pequeno Emmanuel, o filho que a política colombiana Clara Rojas teve um guerrilheiro das FARCs, enquanto esteve seqüestrada pela organização.

A história de Emmanuel ainda está pouco precisa em diversos aspectos importantes. Contudo, o essencial: as FARCs já não o tinham em seu poder há anos, mas continuaram a negociar sua libertação. O menino nasceu com problemas de saúde, algo que não surpreende, dadas as péssimas condições em que se deu a gestação, e foi separado da mãe a pretexto de que seria submetido a tratamento médico. Somente agora a família está reunida, embora sem o pai. Sua identidade ainda não está clara, embora a imprensa colombiana especule de que era um de três irmãos de Bogotá que se uniram às FARCs. Aparentemente, morreu pouco após o nascimento do filho.

Para além do drama familiar, quem ganhou e perdeu com a novela da libertação das reféns? O maior vencedor foi Chávez, que mostrou ser mediador indispensável nas negociações com as guerrilhas. É certo que agiu de maneira descabida, agredindo o governo colombiano e fazendo um circo de mídia em torno do que deveria ser um processo discreto. Ainda assim, provou que é fundamental.

As FARCs perderam, pois mostraram sua inacreditável má fé: negociar a libertação de uma criança que já não estava em seu poder há anos! Diante desse fiasco, tinham que libertar as outras duas reféns. Fica a pergunta: quando farão o mesmo com as outras pessoas que mantém em cativeiro, algumas por mais de 10 anos? O governo colombiano estima que sejam cerca 750 reféns. Atenção, porque o número cresce: ontem as FARCs seqüestram mais seis pessoas.

Uribe tampouco se saiu bem. Agiu de maneira instransigente e foi acusado pelas reféns e por suas famílias de ter atrapalhado nas negociações. Contudo, é possível que consiga capitalizar em função das atrocidades cometidas pelas FARCs.

Claro que Chávez aproveitou a ocasião para outra jogada política: pedir que os grupos guerrilheiros colombianos sejam considerados como "beligerantes". Afirmou em seu programa de TV que desse modo as FARCs parariam de "cometer atos terroristas contra civis" e passariam a aplicar as Convenções de Genebra. O pedido foi rejeitado pelo governo colombiano e atacado pelos EUA e pela União Européia, que classificam tais grupos como terroristas. A oposição colombiana se mostrou dividida, mas o tom geral foi de cautela com relação à proposta venezuelana.

Naturalmente, Chávez almeja um papel de líder mais destacado no conflito andino, e é muito melhor ser considerado internacionalmente como o mediador reconhecido numa guerra civil, ajudando a firmar um tratado de paz, do que como um presidente amigável diante de terroristas. Estes são tempos de cólera nos Andes.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

O Banqueiro do Mundo


Também acho que estamos com câmbio sobrevalorizado que prejudica a indústria e dificulta as exportações. No entanto, minha reação à estrutura de incentivos da economia é aproveitar para importar livros e meu pacote da Amazon está uma beleza. São todos obras importantes para os cursos que dou como professor, tratando de temas como África, Índia e instituições internacionais. A leitura do momento é “The World´s Banker: a history of failed states, financial crisis and the wealth and poverty of nations”, do jornalista Sebastian Mallaby.

Assim como o livro sobre Kofi Annan que resenhei há pouco, esta obra mistura a biografia do dirigente de uma organização internacional com a análise da instituição que ele coordena. No caso, James Wolfensohn e o Banco Mundial. Ok, Wolfensohn não é uma figura tão fascinante quanto Annan: trata-se de um financista bem-sucedido, banqueiro de investimentos em Nova York e Londres. Sua personalidade é mais tempestuosa do que a do ex-secretário-geral da ONU, oscilando entre uma grande capacidade de estabelecer amizades e vínculos pessoais e temperamento autoritário, de vaidade quase patológica.

Muito mais interessante do que Wolfensohn é a instituição que ele comandou. Sua época à frente do Banco Mundial (1995-2005) foi de mudança do enfoque dos empréstimos vinculados à programas de ajuste estrutural para projetos que enfatizavam o fortalecimento de instituições e do chamado “capital social”, de mais participação da sociedade nas políticas públicas.

Mallaby é um jornalista veterano, com passagens pelo Washington Post e pela Economist, de quem foi correspondente na África. Não por caso, os melhores trechos do livro são aqueles que lidam com o continente: as experiências bem-sucedidas do banco com projetos de desenvolvimento local no Mali e em Uganda, os problemas com corrupção enfrentados na Costa do Marfim e a frustração com a relutância dos governos em encarar a epidemia de AIDS, sobretudo na África do Sul.

Evidentemente, o Banco Mundial não é uma organização de caridade, mas um instrumento de política externa dos países ricos, que o controlam. Mallaby trata pouco deste ponto, mas quando o faz a análise é muito boa. Mostra o papel decisivo que a instituição desempenhou na reconstrução da Bósnia e de como esse know-how foi desperdiçado pelo governo Bush no Afeganistão e no Iraque – no pós-11 de setembro, a visão oficial americana era tão unilateralista que não havia espaço nem para o Banco Mundial, com as tarefas de reconstrução ficando a cargo do Pentágono!

Outro ponto alto do livro é a análise dos erros que o Banco Mundial cometeu na crise asiática de 1997-1998, em especial na Indonésia, fechando os olhos para problemas sérios em governos que eram vistos como vitrine de reformas econômicas e estabilidade política. A melhor frase do livro é a do ex-ditador indonésio: “O que vocês, ocidentais, chamam de corrupção, para nós são valores familiares”. Essa, nem em CPI brasileira...

Gosto de livros de jornalistas que tratam de temas políticos e contemporâneos atuais, o de Mallaby me lembra muito os de um de seus colegas no Washington Post, Paul Blustein, que escreve sobre o FMI. Contudo, Mallaby deveria ser mais crítico em relação a seu objeto de estudo: há vários momentos em que soa como panfleto em defesa do Banco Mundial. Por exemplo, há debates internacionais sobre a conveniência ou não de grandes projetos de infra-estrutura, como mega-usinas hidrelétricas, e Mallaby ridiculariza os adversários desse tipo de iniciativa, sem considerar seriamente suas posições. Pena, porque o tema interessa diretamente a nós, brasileiros: as usinas no Rio Madeira e a transposição do rio São Francisco são exemplos clássicos da controvérsia.

Me parece também que a abordagem escolhida por Mallaby foi equivocada. A biografia de Wolfensohn é de interesse bastante secundário com relação ao tema do desenvolvimento e da cooperação internacional. Em muitos momentos o presidente do Banco Mundial aparece como alguém que simplesmente seguia a onda. Nesse sentido, seria muito melhor dedicar mais espaço aos economistas que influíram decisivamente nessas discussões, como Amarthya Sen, Joseph Stigltiz e Dani Rodrik, e que no entanto são citados apenas de passagem.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Charles Taylor, lições para a África e perguntas ao Brasil



Se alguém por aqui assistiu ao filme "O Senhor das Armas" deve lembrar do personagem André Baptiste, o tirano africano que era um dos melhores clientes do traficante de armas interpretado por Nicholas Cage e que funcionava como uma espécie de espelho no qual o protagonista via refletidos seus piores defeitos. Numa cena, após matar um soldado que lhe havia irritado, Baptiste lamenta: "A juventude de hoje é muito desregrada. Para mim, a culpa é da MTV."

Baptiste é inspirado no ex-ditador da Libéria, Charles Taylor. Durante os anos 90 ele comandou um grupo rebelde contra outro ditador, Samuel Doe. Ambos os lados cometeram atrocidades no conflito e em 1997 concordaram em resolver a disputa por eleições. Taylor concorreu com o slogan mais infame de todos os tempos: "Ele matou minha mãe, matou meu pai, mas votarei nele." Na realidade, o candidato ameaçava retomar a guerra se perdesse. Ganhou.

Taylor rapinou a Libéria como presidente, entre 1997 e 2003, e não satisfeito resolveu intervir na guerra civil do país vizinho, Serra Leoa, apoiando duas facções rebeldes com armas, dinheiro e soldados, em troca dos diamantes do país - o filme "Diamante de Sangue" é um retrato ficcional melodramático, mas razoavelmente preciso, daquele conflito.

Até aí temos os clichês habituais sobre a África. Mas o jogo mudou no contiente: a guerra civil em Serra Leoa acabou com uma bem-sucedida intervenção dos britânicos e das Nações Unidas e foi formado um interassante tribunal misto, com juízes estrangeiros e locais, para julgar as violações de direitos humanos no conflito. Por ordem dessa instituição, Charles Taylor - já fora do poder na Libéria - foi encarcerado.

Ele se tornou o primeiro ditador africano a estar em julgamento por seus crimes. O processo começara no ano passado, mas fora interrompido, e recomeçou nesta semana. Está sendo marcado por depoimentos emocionantes, como não poderia deixar de ser numa guerra que envolveu mutilações de civis, recrutamento forçado de crianças-soldados e trabalho escravo em minas de diamantes.

Os governos africanos sempre foram muito relutantes em aceitar intervenções humanitárias, mas a maré começou a virar após o genocídio em Ruanda, em 1994. O tribunal de Serra Leoa confirma a tendência e é significativo que a atual presidenta da Libéria, Ellen Johnson-Sirleaf, tenha sido das pessoas que mais colaboraram para a prisão de seu antecessor, que estava exilado na Nigéria. Johnson-Sirleaf é a primeira mulher a ser eleita para chefiar um Estado na África, e trata-se de respeitada economista educada em Harvard, com longo histórico de millitância pró-democracia.

A África está mudando, mas será que o Brasil percebe isso? A política externa brasileira para o continente tem sido marcada por gafes inacreditáveis no que diz respeito à democracia e aos direitos humanos. Lula visitou e abraçou alguns dos piores tiranos da região, como os ditadores do Gabão e de Burkina Faso (que também interveio em Serra Leoa, aliás junto com Kadafi, da Líbia), com freqüência fazendo piadas sobre o longo tempo que eles ocupam o poder. Fora a apatia brasileira diante do genocído de Darfur, em contraste com as posições firmes defendidas por outros países latino-americanos, como a Argentina.

O Brasil poderia - e deveria, a meu ver - ter uma agenda diferente, procurando destacar a importância de líderanças renovadoras como as de Johnson-Sirleaf.

E aqui temos outro ponto delicado. Em todo o planeta, autoridades que violaram direitos humanos em ditaduras e guerras estão sendo julgadas e presas. Isso ocorre na América do Sul (Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Uruguai), na África (Serra Leoa, Libéria, Ruanda), na Europa (Ex-Iugoslávia). Mesmo Estados que proclamaram anistias passaram por amplas comissões de verdade e reconciliação, ajudando na tarefa de passar a limpo um passado difícil - caso da África do Sul, da Guatemala, de El Salvador.

O Brasil optou pela impunidade e pelo silêncio, ficando na incômoda companhia das piores ditaduras da Ásia e do Oriente Médio, as únicas que se comportam assim. Os contrangimentos internacionais a que o Brasil está submetido ficam claros nos processos que juízes europeus, como da Espanha e da Itália, movem contra militares brasileiros por conta de seqüestros, torturas e assassinatos a nacionais daqueles países.

As leis brasileiras concederam anistia aos crimes da época e proíbem a extradição de cidadãos nacionais. No entanto, os processos europeus contribuem para colocar em evidência as posições vergonhosas assumidas pelo Brasil. O mundo mudou. Soberania não é mais um escudo que se possa usar para esconder erros e crimes. Seu novo sentido é o conjunto das obrigações que garantem a vida civilizada, assumidas perante seus próprios cidadãos e a sociedade internacional. Isso vale em Monróvia, Freetown, Kigali, Lagos e até em Brasília.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Lágrimas de Ouro



A vitória de Hilary Clinton nas primárias democratas de New Hampshire foi uma surpresa total, pois as pesquisas indicavam o triunfo de Barack Obama por pelo menos 5 pontos de diferença. Clinton venceu por 39% contra 36%, o que sinaliza uma luta acirrada pela indicação do Partido Democrata. A campanha da senadora entrara num surto depressivo que incluiu até quase chorar em público. Só que isso ajudou. Vejam trecho da reportagem do New York Times:

"As mulheres finalmente viram uma mulher - talvez durona, mas de coração mole", disse Elaine Marquis, uma recepcionista de Manchester, que estava dividida entre o sr. Obama e a sra. Clinton, mas tendia a mudar de idéia quando ela expressou seus sentimentos."

Enfim, como comentamos no post de ontem, muito do que é importante em política se dá por razões emocionais dignas de uma votação no paredão do Big Brohter, mesmo que se trate de escolher de quem irá ocupar o cargo mais importante do planeta. Na verdade, é a segunda vez que Hilary Clinton se beneficia desse tipo de estratégia, pois ela foi fundamental quando apareceu como esposa sofrida e solidária, confortando o marido após ele ter admitido "relações impróprias" com a estagiária da Casa Branca.

No discurso de agradecimento, Clinton abandonou o hábito de aparecer cercada de ex-assessores do marido, e surgiu em meio a adolescentes e jovens, que têm sido formidáveis no apoio a Obama. Ela se saiu melhor entre as mulheres e eleitores democratas, enquanto seu rival foi muito bem entre independentes. O problema para ele é que muitos estados só permitem votantes registrados no partido, e os Clinton são fortes com a liderança democrata. A briga será boa.

Entre os republicanos, nenhuma surpresa: McCain venceu com folga (37%), como previam as pesquisas. E a disputa dentro do partido continua acirradíssima entre ele, Romney (2o em New Hampshire, com 31%), Huckabee (3o, 11%) e Giuliani. As expectativas são de Romney vença a próxima primária, em Michigan (15 de janeiro), estado que seu pai governou. Mas McCain também é forte por lá e levou o estado quanto tentou concorrer à presidência em 2000.

Se você está confuso quanto aos candidatos, parabéns. Significa boa informação. Cheque o blog do Idelber, que explica direitinho "quem é quem", com comparações a uma eleição para grêmio estudantil. No site dele, você também encontra o link para o teste do USA Today, sobre qual candidato está mais próximo às suas posições políticas. Depois vote na minha enquete para manifestar sua opinião.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

O Jogo de Bueno de Mesquita



Outro dia o Jornal Nacional exibiu reportagem sobre o cientista político americano Bruce Bueno de Mesquita (foto), que a imprensa às vezes chama de “o novo Nostradamus” por conta de seu bem-sucedido modelo matemático de previsão de eventos internacionais. Tratar acadêmicos como personagens do Código Da Vinci não é exatamente a melhor maneira de estimular um bom debate intelectual, ainda mais porque Bueno de Mesquita é uma figura polêmica na ciência política.

Desde a década de 1940 modelos matemáticos são utilizados no estudo das relações internacionais, em especial a partir da Teoria dos Jogos. Basicamente, tais abordagens procuram traduzir situações de conflito, negociação e cooperação em fórmulas numéricas que determinem qual a melhor estratégia a ser seguida por cada participante. Pode parecer muito abstrato, mas pesquisadores como John von Neumann, John Nash (do filme "Uma Mente Brilhante", que distorce inteiramente suas idéias), Albert Wohlstetter e Thomas Schelling mostraram que os princípios podem ser aplicados a diversos problemas de economia e política. Na verdade, a Teoria dos Jogos foi importantíssima na formulação da estratégia nuclear americana durante a Guerra Fria, principalmente através da RAND Corporation, para a qual toda a turma acima trabalhou em um ou outro momento.

A teoria se consolidou num momento em que havia uma batalha metodológica e política nas universidade dos Estados Unidos. Uma leva de brilhantes acadêmicos havia migrado da Europa Oriental fugindo do nazismo, e trouxera consigo bagagem intelectual fortemente influenciada por filosofia e história. Seus colegas americanos reagiram com desconfiança a esse tipo de abordagem, considerando-a pouco científica, e buscaram formas supostamente mais objetivas de pensar as ciências sociais, como os jogos e a teoria da escolha racional.

Nos últimos anos houve uma reação contra esse tipo de abordagem, que de fato têm muitas limitações. A principal é o pressuposto da racionalidade dos atores políticos, deixando de lado uma série de elementos emocionais poderosos. Não digo que a História seja o reino da Loucura, mas certamente não confirma o Triunfo da Razão.

As abordagens matemáticas, voltadas para a resolução de problemas, com freqüência são vendidas como soluções rápidas para problemas complexos, o que as torna muito sedutoras para consultorias a governos e grandes empresas. Bueno de Mesquita prosperou exatamente nessa seara, desenvolvendo um modelo baseado na teoria de jogos e que usa para realizar previsões em temas tão distintos como Coréia do Norte, Irã e América Latina. Ele afirma que nosso continente passará por um milagre econômico. Oxalá esteja certo.

Penso que a teoria dos jogos tem muito valor – Deus que me perdoe, cheguei até a escrever um pequeno artigo aplicando-a às relações entre Argentina e Brasil – mas ela não substitui a história, ou a política, nem traz a pessoa amada em três dias. Sua utilidade é permitir ver de modo mais claro determinadas situações clássicas de conflito/cooperação, identificando padrões que podem ajudar a resolvê-las.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Melhores Intenções: Kofi Annan e a ONU



Há poucos dias chegou um pacote da Amazon com minha primeira compra de livros de 2008. Comecei a leitura por “The Best Intentions: Kofi Annan and the UN in the Era of American World Power”, do jornalista James Traub. Mistura de biografia de Annan com reportagem sobre os dez anos (1997-2007) em que foi secretário-geral da ONU.

Annan foi o primeiro funcionário de carreira da organização a atingir o posto máximo. Entrou para a ONU em 1962 e ascendeu como um administrador respeitado e competente. Contudo, suas responsabilidades se limitavam às tarefas burocráticas. A virada em sua trajetória ocorreu às vésperas da Guerra do Golfo, quando negociou com sucesso a libertação de quase mil funcionários das Nações Unidas mantidos como reféns no Iraque. Dali foi chefiar o Departamento de Operações de Paz, que passava então por uma época de grande expansão e transformações, e por fim tornou-se secretário-geral escolhido sobretudo pelos Estados Unidos, descontentes com o estilo arrogante e difícil de Boutros Boutros-Ghali.

Coube a Annan a difícil missão de conduzir a ONU em meio aos atentados do 11 de setembro, e às guerras do Kosovo, do Afeganistão e do Iraque, do genocídio em Darfur, do terrível conflito no Congo e outra tragédias internacionais. A consagração veio em 2001, quando Annan ganhou o Nobel da paz. O livro tem excelentes relatos dos bastidores e muitas informações interessantes sobre as personalidades envolvidas em cada caso. Faltam, no entanto, análises mais aprofundadas que dêem sentido à massa de dados. Fiquei com a impressão que a ONU fracassou em tudo que diz respeito à prevenção de violência, mas que seu desempenho foi muito melhor no que toca à reconstrução e à busca de acordos pós-conflito. Pontos que merecem estudos mais atentos.

O retrato que Traub pinta de Annan é bastante matizado, o de um homem muito sério, dedicado ao trabalho, honesto e bom caráter, com uma modéstia rara para alguém que ocupou um cargo tão elevado. No entanto, às vezes o secretário-geral aparece como uma pessoa fria, com dificuldade para expressar emoções. Uma das cenas mais tocantes ocorre após o atentado de agosto de 2003, que matou diversos funcionários da ONU em Bagdá. Um dos subordinados de Annan, às lágrimas, lhe pede um abraço. Ele reage com incômodo e mal toca o rapaz, constrangido com a intimidade.

Traub afirma que Anann não é exatamente carismático, mas que desperta grande lealdade nos que trabalham com ele e que tem muita capacidade em estabelecer laços de confiança até com antagonistas. O livro narra de maneira primorosa duas dessas difíceis negociações: os diálogos com Saddam Hussein em 1998, para convencê-lo a aceitar inspeções de armas da ONU, e a corte feita ao senador americano Jesse Helms, o político ultra-conservador que era o principal oponente das Nações Unidas no Congresso dos EUA. Curiosamente, Annan teve relações difíceis com os dois outros negros que assumiram posições de destaque na diplomacia, Colin Powell e Condoleezza Rice. Por incrível que pareça, ele se deu melhor com Bush.

Há dois outros altos funcionários da ONU muito elogiados por Traub, e que ele descreve com os mais eficientes negociadores da instituição: o diplomata argelino Lakhdar Brahimi e o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, provavelmente a pessoa que recebe a mais elevada qualificação no livro. Brahimi conseguiu feitos quase impossíveis, como construir um governo de coalizão no Afeganistão, e Vieira de Mello desempenhou tarefas heróicas no Kosovo, em Timor Leste e em Bagdá, até ser assassinado por terroristas. Traub afirma que Annan o considerava como um filho e que acreditava que ele o sucederia como secretário-geral.

O ponto negativo é que a capacidade de empatia de Annan é acompanhada por uma enorme relutância em agir contra subordinados que tenham se desempenhado mal. Isso resultou em escândalos que debilitaram bastante a credibilidade da ONU, como a corrupção no programa petróleo-por-comida do Iraque (que envolveu o próprio filho de Annan) e em casos de abusos sexuais cometidos por tropas de paz no Congo.

Traub aposta que o sucessor de Annan, Ban Ki-moon, será um mau líder. O diplomata coreano parece ter todos os defeitos do antecessor, sem possuir suas qualidades. Traub afirma que ele foi escolhido justamente por isso, porque as grandes potências queriam um secretário-geral fraco, com um perfil administrativo-burocrático e não político.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Primárias


Começou o maior espetáculo da Terra. As primárias de Iowa abriram a corrida presencial nos Estados Unidos e foram marcadas por semanas de indefinição que resultaram em vitórias um tanto inesperadas: Barack Obama pelos democratas (37,5% contra 29,8% de John Edwards e 29,5% de Hilary Clinton) e Mike Huckabee pelos republicanos (34,4% contra 25,4% de Mitt Romney, 13,4% de Fred Thompson e 12,2% de John McCain). Os eleitores de Iowa apresentaram mensagem comum: críticas ao status quo dos dois partidos majoritários. Clinton e Romney são os que mais perderam.

Tanto Obama quanto Huckabee cresceram muito nas últimas semanas e o caso do republicano é ainda mais impressionante, pois há poucos meses era praticamente desconhecido fora do estado do Arkansas, sua base política. Ambos foram bem-sucedidos em canalizar o descontentamento dos eleitores e inovaram em seus métodos de campanha. Novamente, Huckabee se destaca: sua rede de evangélicos fazendo propaganda de porta em porta conseguiu uma vitória notável sob seu rival Romney, que gastou seis vezes mais dinheiro em marketing eleitoral em Iowa. A eleição presidencial é a mais disputada em muitos anos e isso motivou muito mais pessoas a participar das primárias. Com relação a 2004, o crescimento foi de 125.000 para 239.000 (democratas) e de 87.700 para 115.000 (republicanos).

O perfil dos votantes nas primárias revela diferenças importantes entre democratas e republicanos. Entre os primeiros há participação mais expressiva de jovens e o fator principal para a decisão do voto foi "mudança". Hilary Clinton foi vista como alguém muito vinculada às lutas partidárias dos anos 90 - época de divisões amargas, com o Congresso republicano tentanto o impeachment do presidente Clinton. Obama tem um discurso bastante conciliador. O eleitorado republicano é mais velho e o que pesou na escolha por Huckabee foi a percepção de compartilhar valores religiosos e morais.

Contudo, os eleitores dos dois partidos mostraram preocupações semelhantes com a economia e a guerra do Iraque. O que os distingue: os democratas se inquietam com os problemas da saúde pública e os republicanos estão bastante temerosos da imigração.

No que diz respeito à campanha de Obama, parece que ela comprova as teses do cientista político Russell Dalton, para quem está em curso uma renovação geracional na política americana, com os jovens se mobilizando muito mais do que as pessoas mais velhas, e defendendo novos valores, como ecologia e mais participação democrática. A aposta é boa, vale examiná-la com atenção.

Iowa é apenas o começo. Daqui até a "Super Terça-Feira" de 5 de fevereiro, há mais de vinte primárias. A próxima é em New Hampshire. Se Obama vencer o estado, aumentam muito as chances de ser o indicado dos democratas. As coisas estão bem mais nebulosas para os republicanos: Huckabee é fraco em New Hampshire, onde está em ascensão a estrela de McCain. Além disso, Rudolph Giuliani não fez campanha em Iowa, optando por uma estratégia arriscada e inovadora de se concentrar nos maiores estados.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A Violência no Quênia



O Quênia é um dos países mais desenvolvidos da África mas a imprensa está errada ao afirmar que era conhecido por sua estabilidade. O país passou por três surtos de violência étnica nos últimos 15 anos, e o atual sequer é o pior. As raízes do conflito estão na corrupção e no mau gerenciamento do Estado por parte de políticos da etnia dominante, os kikuyu.

O atual presidente, Mwai Kibaki, foi eleito em 2002 em substituição a quase 25 anos de ditadura de Daniel arap Moi. A vitória de Kibaki despertou muitas esperanças nas instituições de cooperação internacional, que investiram bastante no Quênia. Meus amigos nas fundações partidárias alemãs me contaram que apostaram muito em seu projeto de conciliação e combate à corrupção, mas que logo se decepcionaram com os resultados.

Kibaki havia se aliado a Raila Odinga, da etnia luo, e falado na necessidade de superar os conflitos étnicos. A parceria entre os dois durou poucos anos e desde então se tornaram rivais. Odinga era o favorito para vencer a eleição presidencial de dezembro e fez sua campanha ressaltando que a corrupção dos kikuyu deixava os mais pobres em péssima situação. Quando Kibaki foi reeleito sob fortes suspeitas de fraude, a violência explodiu em mais de 300 mortos, principalmente por conflitos entre kikuyus e luos, mas envolvendo também outros grupos como kalenjin (muitos dos famosos velocistas quenianos são dessa etnia) e luhyas. O episódio mais chocante foi a queima de uma igreja na cidade de Eldoret, com mais de 50 pessoas assassinadas. Muitas cenas lembram os acontecimentos trágicos do genocídio em Ruanda, com milícias armadas de facões em busca de seus inimigos.



Há muita pressão internacional e dos líderes empresariais kikuyus para que o presidente Kibaki decrete um “governo de união nacional” e dê postos de importância a Odinga e seus aliados. Provavelmente será um arranjo precário, mas é a melhor alternativa existente no momento. Os desdobramentos externos da crise atingem a própria eleição presidencial nos Estados Unidos: o pai de Barack Obama era um queniano da etnia luo. O político americano prega a necessidade de conciliação.

No ano passado o Fórum Social Mundial aconteceu em Nairóbi, a capital do Quênia. Conversei com muitos ativistas brasileiros que foram para lá e todos, em especial os negros, ficaram desapontados com os ódios existentes entre as diversas etnias. O racismo não ocorre só entre pessoas de diferentes cores de pele, a estupidez humana é bem mais abrangente.

Muitas pessoas pensarão no Quênia como mais um exemplo de conflito étnico “tipicamente africano”, mas não é bem assim. Uma enorme quantidade de Estados reúnem pessoas de etnias diferentes e o convívio entre elas está longe de ser pacífico. Isso ocorre em países tão distintos entre si quanto Bolívia, Bélgica, Rússia e Sérvia, para citar apenas alguns.

Os Estados africanos têm demonstrado notável capacidade de sobreviver às artificiais fronteiras oriundas da partilha colonial, mas é claro que a presença de grupos étnicos espalhados por vários países cria um elemento de instabilidade no cenário de recursos escassos e crises políticas. Na hora do desespero, as pessoas se voltam para seus parentes. Se você é um tutsi, por exemplo, pode ter primos em Ruanda, Burundi, Uganda. Isso faz com que conflitos étnicos que comecem em um país se alastrem com rapidez, na medida em que há fugas, migrações em massa e pedidos de socorro. O caso mais trágico atualmente é a guerra civil na República Democrática do Congo, que envolve diversos Estados vizinhos. O risco também está presente no Quênia: há relatos de tropas de Uganda intervindo no país.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Chávez, Uribe e os reféns das FARCs


O fim de ano foi tumultuado: violência no Paquistão e no Quênia, a decisão da Justiça italiana em processar brasileiros envolvidos na Operação Condor e o fracasso das negociações para libertar reféns seqüestrados pelas FARCs. Comecemos por este ponto.

Um colega da turma na Argentina trabalhou para a ONU na Colômbia, lidando com os diversos grupos guerrilheiros do país. É uma relação bastante delicada, na qual as Nações Unidas oferecem seus bons ofícios e procuram ajudar governo e os grupos armados a chegar a acordos. É preciso um enorme tato para não violar a soberania de Bogotá, que no entanto necessita do aval da ONU, sobretudo pela questão dos direitos humanos, que volta e meia rendem dores de cabeça junto à União Européia ou ao Congresso dos Estados Unidos.

Meu amigo trabalhou numa negociação bem-sucedida com o Exército de Libertação Nacional, especializado em seqüestrar funcionários de empresas petrolíferas. O diálogo entre a ONU e os guerrilheiros se deu por uma situação tragicômica, pois o grupo havia capturado três turistas europeus, do tipo mochileiros, que eram idiotas o sucifiente para fazer trekking em área de conflito armado. O ELN, otimista com relação à natureza humana, acreditava que ninguém podia ser tão burro, e que os rapazes deviam ser espiões. A equipe das Nações Unidas visitou até o chefe do ELN, preso numa cadeia especial, em que sua esposa lhe preparava as refeições ("Foi a melhor lasanha que comi na vida", garantiu meu amigo).

Nos papos que tivemos sobre a negociação, meu colega comentou que ficou impressionado com a eficiência do serviço de inteligência colombiano e também mencionou a importância da Venezuela como um mediador com a guerrilha. Contudo, frisou que o ELN é muito mais confiável do que as FARCs, de quem meu colega tem péssima avaliação. Em sua opinião, esse grupo há muito abandonou as bandeiras políticas e se tornou uma espécie de negócio clandestino, uma empresa que dá trabalhos a jovens pobres do meio rural. E que, evidentemente, não tem muito interesse no fim do conflito e na morte de sua galinha dos ovos de ouro.

A tentativa mais ambiciosa de negociar com as FARCs ocorreu no governo Pastrana (1998-2002) e resultou num fracasso completo, basicamente porque a guerrilha aproveitou a zona desmilitarizada criada pelos acordos de paz para lançar ataques e realizar seqüestros. Uribe tem como pilar de sua agenda política a linha dura com relação às FARCs e só foi empurrado para o diálogo pela libertação dos reféns por intensa pressão internacional, principalmente do presidente francês. Diga-se de passagem que o empenho de Sarkozy pela libertação da senadora Ingrid Betancourt é um exemplo para o que os líderes sul-americanos poderiam fazer. Lição que envergonha e chama a atenção para a apatia dos mandatários do continente diante do conflito colombiano.

As FARCs aproveitaram a pressão internacional para exigir a participação de Hugo Chávez, que com suas péssimas relações com Bogotá é a pior pessoa indicada para a tarefa. Como sempre ocorre quando Venezuela e Colômbia brigam, o Brasil foi chamado a intermediar ("Sabíamos que as crises estavam difíceis quando aparecia o Marco Aurélio Garcia", dizia meu amigo da ONU). A comissão internacional também contou com representantes da Argentina (como o ex-presidente Kirchner), Bolívia, Cuba, Equador e Suíça.

Negociam-se a libertação de três reféns: Clara Rojas, seu filho Emmanuel (nascido no cárcere) e Consuelo Gonzáles. A situação está nebulosa: o governo colombiano afirma que está com Emmanuel, que teria sido abandonado num orfanato. Mas ainda não foram feito exames de DNA que comprovem essa hipótese. As FARCs dizem que não completaram a libertação porque o Exército colombiano continuaria a operar na área. Chávez, como de costume, foi muito agressivo e chamou Uribe de mentiroso.

Com todos os problemas, ainda há esperanças de se chegar a uma solução. O precedente da comissão internacional é muito interessante, é preciso uma mediação séria - sem os arroubos retóricos de Chávez - que assegure bons canais de comunicação.