quarta-feira, 2 de janeiro de 2008
Chávez, Uribe e os reféns das FARCs
O fim de ano foi tumultuado: violência no Paquistão e no Quênia, a decisão da Justiça italiana em processar brasileiros envolvidos na Operação Condor e o fracasso das negociações para libertar reféns seqüestrados pelas FARCs. Comecemos por este ponto.
Um colega da turma na Argentina trabalhou para a ONU na Colômbia, lidando com os diversos grupos guerrilheiros do país. É uma relação bastante delicada, na qual as Nações Unidas oferecem seus bons ofícios e procuram ajudar governo e os grupos armados a chegar a acordos. É preciso um enorme tato para não violar a soberania de Bogotá, que no entanto necessita do aval da ONU, sobretudo pela questão dos direitos humanos, que volta e meia rendem dores de cabeça junto à União Européia ou ao Congresso dos Estados Unidos.
Meu amigo trabalhou numa negociação bem-sucedida com o Exército de Libertação Nacional, especializado em seqüestrar funcionários de empresas petrolíferas. O diálogo entre a ONU e os guerrilheiros se deu por uma situação tragicômica, pois o grupo havia capturado três turistas europeus, do tipo mochileiros, que eram idiotas o sucifiente para fazer trekking em área de conflito armado. O ELN, otimista com relação à natureza humana, acreditava que ninguém podia ser tão burro, e que os rapazes deviam ser espiões. A equipe das Nações Unidas visitou até o chefe do ELN, preso numa cadeia especial, em que sua esposa lhe preparava as refeições ("Foi a melhor lasanha que comi na vida", garantiu meu amigo).
Nos papos que tivemos sobre a negociação, meu colega comentou que ficou impressionado com a eficiência do serviço de inteligência colombiano e também mencionou a importância da Venezuela como um mediador com a guerrilha. Contudo, frisou que o ELN é muito mais confiável do que as FARCs, de quem meu colega tem péssima avaliação. Em sua opinião, esse grupo há muito abandonou as bandeiras políticas e se tornou uma espécie de negócio clandestino, uma empresa que dá trabalhos a jovens pobres do meio rural. E que, evidentemente, não tem muito interesse no fim do conflito e na morte de sua galinha dos ovos de ouro.
A tentativa mais ambiciosa de negociar com as FARCs ocorreu no governo Pastrana (1998-2002) e resultou num fracasso completo, basicamente porque a guerrilha aproveitou a zona desmilitarizada criada pelos acordos de paz para lançar ataques e realizar seqüestros. Uribe tem como pilar de sua agenda política a linha dura com relação às FARCs e só foi empurrado para o diálogo pela libertação dos reféns por intensa pressão internacional, principalmente do presidente francês. Diga-se de passagem que o empenho de Sarkozy pela libertação da senadora Ingrid Betancourt é um exemplo para o que os líderes sul-americanos poderiam fazer. Lição que envergonha e chama a atenção para a apatia dos mandatários do continente diante do conflito colombiano.
As FARCs aproveitaram a pressão internacional para exigir a participação de Hugo Chávez, que com suas péssimas relações com Bogotá é a pior pessoa indicada para a tarefa. Como sempre ocorre quando Venezuela e Colômbia brigam, o Brasil foi chamado a intermediar ("Sabíamos que as crises estavam difíceis quando aparecia o Marco Aurélio Garcia", dizia meu amigo da ONU). A comissão internacional também contou com representantes da Argentina (como o ex-presidente Kirchner), Bolívia, Cuba, Equador e Suíça.
Negociam-se a libertação de três reféns: Clara Rojas, seu filho Emmanuel (nascido no cárcere) e Consuelo Gonzáles. A situação está nebulosa: o governo colombiano afirma que está com Emmanuel, que teria sido abandonado num orfanato. Mas ainda não foram feito exames de DNA que comprovem essa hipótese. As FARCs dizem que não completaram a libertação porque o Exército colombiano continuaria a operar na área. Chávez, como de costume, foi muito agressivo e chamou Uribe de mentiroso.
Com todos os problemas, ainda há esperanças de se chegar a uma solução. O precedente da comissão internacional é muito interessante, é preciso uma mediação séria - sem os arroubos retóricos de Chávez - que assegure bons canais de comunicação.
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4 comentários:
Maurício, que tal um comentário seu sobre a denominação das FARCs de 'grupo terrorista'. Você conhece o assunto melhor que eu, mas eles atuam desde a década de 60 e dominam algo como 40% do território da Colômbia, não é isso? Muito curioso esse 'grupo terrorista'.
Grande abraço,
E daí, Geraldo? O Hezbolá tem ministros e deputados no governo do Líbano e é um grupo terrorista ainda pior do que as FARCs.
As FARCS seqüestram, assassinam, atacam população civil. Como você chama isso, chá das cinco?
Não Maurício, não chamo de chá das cinco e as práticas das FARCs são tão condenáveis quanto as do Hezbollah e tantos outros grupos. E são sim métodos que trazem terror a população com fins políticos, e de maneira alguma justificáveis.
Mas grupos que praticam terrorismo tem histórias, objetivos e estruturas diferentes. É possível encontrar atos de terrorismo perpetrados pelos mais diversos grupos em movimentos de libertação nacional, lutas contra ditaduras, guerras civis, e tantos outros.
O que vejo hoje em dia é que a utilização do termo 'grupo terrorista' não faz referência apenas as práticas utilizadas por tais grupos, mas carrega também uma conotação de desqualificação completa do grupo em questão, rejeitando qualquer tipo de reivindicação ou agenda e tornando-o um ator não confiável. Isso limita possibilidades de diálogo e negociação, e acaba por tratar grupos completamente distintos da mesma maneira.
Talvez essa seja uma discussão teórica demais quando vidas estão em jogo. Mas políticas mal fundamentadas contra 'grupos terroristas' normalmente pioram o problema. Não se surpreenda se o Hezbollah ao invés de ministros fizer o próprio governo em pouco tempo no Líbano (e democraticamente, como o Hamas).
Me parece que as FARCs tem uma agenda ampla e realizam funções de Estado há tempos na Colômbia, mas de novo, você conhece a América do Sul muito melhor do que eu. O que quis perguntar é se não entenderíamos melhor o conflito na Colômbia olhando-o com outras lentes que não esse discurso terrorista de estilo Al-Qaeda. (que para mim é um discurso político e midiático, e não seu; queria sua opinião a respeito) Que as práticas são terroristas e abomináveis, acho que concordamos.
Geraldo,
sem dúvida o termo "terrorista" tem sido aplicado de maneira indiscriminada após o 11 de setembro, pero que los hay, los hay.
As FARCs não têm projeto político, são um anacronismo da Guerra Fria que sobreviveu para aterrorizar civis e se opor a um sistema democrático. Dá para discutir a legitimidade de grupos que lutam contra ocupações estrangeiras, como o Hamas, mas é impossível ver nas FARCs um ideal desse porte.
Abraços
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