quinta-feira, 17 de abril de 2008

Política Social e Democracia na América Latina



“Quando pobre recebe dinheiro do governo, é clientelismo. Quando rico recebe dinheiro do governo, é política industrial”. Ou assim eu disse, num ótimo debate que tivemos semana passada na ONG em que trabalho. O objetivo era discutir democracia na América Latina e convidei uma colega do doutorado a expor sua pesquisa sobre política social em diversos países do continente.

Nosso ponto de partida foi a difusão dos programas de transferência de renda voltados para a população mais pobre. Começaram no México e agora estão presentes na Argentina, Chile, Bolívia e Brasil, com modificações em cada país. O Bolsa Família, apesar das críticas que recebe internamente, tornou-se uma das políticas públicas brasileiras mais respeitadas no exterior, ao lado do programa anti-AIDS.

O centro do nosso debate foi se políticas como essa aprofundam a democracia, melhorando a situação de famílias muito pobres, ou se reforçam os laços de dependência e clientelismo com relação às autoridades. Comentamos que no Brasil os beneficiários de programas sociais com freqüência agem como se recebessem favores do governo e não encaram tais medidas como direitos de cidadania.

Um dos pontos mais acirrados da discussão foram as “condicionalidades”, isto é, as ações que os beneficiários precisam executar para receber os recursos dos programas sociais. No Brasil, muitas dessas condições são na realidade o exercício de direitos, como manter os filhos na escola e levá-los aos postos de saúde para serem vacinados.

Disse que essa perspectiva revelava uma visão autoritária e paternalista que nós, iluminados cidadãos de classe média, muitas vezes temos de nossos compatriotas mais pobres. Acreditamos que sabemos o que é melhor para eles, que supostamente não têm tal discernimento, e portanto deveriam nos obedecer, quiçá com “obrigado ioiô, vosmecê é muito bom para mim”.

Comparamos o debate com o que ocorre na Argentina, onde a rejeição às condicionalidades é fortíssima. Alguém perguntou por que e arrisquei uma resposta: “Na Argentina, há um histórico de sindicalismo forte e de um padrão de vida alto para os trabalhadores. Um operário especializado da indústria automobilística tinha sua casa, seu carrinho e seu horizonte era que o filho cursasse a universidade. Esse não é o perfil de alguém que se sentirá confortável em receber ajuda governamental para não passar fome. A tendência é que ele veja esse benefício como algo humilhante.”

Bem diferente do Brasil, claro, onde uma história de pobreza extrema, sobretudo na zona rural, criou outro ambiente, outras disposições.

Nas ciências sociais, usamos a expressão “Ratchet effect”, efeito catraca, para descrever uma política que consegue tanto apoio que seu cancelamento se torna impossível. É como ultrapassar a roleta no metrô ou no ônibus – não há como desfazer o movimento. Embora muitas pessoas de classe média manifestem sua ojeriza ao Bolsa Família, nenhum candidato a um cargo importante conseguiria se eleger se falasse contra o programa. No máximo se arriscaria a criticar certos aspectos e prometer a expansão dos benefícios.

Para um pesquisador, é frustrante a falta de informações e de transparência das principais políticas sociais da América Latina. Acredito que elas desempenham papel importante na consolidação da democracia e da melhoria da vida de milhões de pessoas muito pobres, mas também sei dos muitos problemas que esses programas enfrentam. Porém, preciso de mais dados ara avaliá-los como é necessário.

3 comentários:

for4saken disse...

Na verdade, várias dessas condicionalidades podem ser pensadas como um pagamento à sociedade. A questão das vacinas, por exemplo, em um futuro contribuiria para aliviar o SUS.

Pode até ser paternalismo, mas é também uma maneira de melhor integrar essa população excluída à sociedade, mas não apenas economicamente.

Abraço.

Maurício Santoro disse...

É verdade, For4saken, assim como também podemos pensar na educação como algo que dará retorno à sociedade em termos da formação de cidadãos mais conscientes e mão-de-obra qualificada.

Algo que começou a entrar na minha cabeça é a importância de programas como o Bolsa Família para a estabilização de países que passam por crises em função ao aumento de alimentos. O Haiti é o que mais me vem à mente nesse momento.

abraços

for4saken disse...

Pois é, a questão toda é inserir os excluídos no mercado, ainda que como classe D. E as condicionalidades, ao passo que dão um caráter de troca ao programa, ajudam justamente a estabelecer as tais 'oportunidades iguais para todos'.

Abraço.