terça-feira, 6 de maio de 2008

Sempre a Relação Especial



O Valor desta terça traz uma reportagem interessante sobre as relações entre Brasil e EUA, citando documentos diplomáticos que foram recentemente liberados para consulta pública. São relatos de conversas entre autoridades dos dois países, que mostram o alto grau de colaboração entre o Planalto e a Casa Branca em temas sensíveis como as crises na Venezuela e na Bolívia e as perspectivas da transição política em Cuba.

A reportagem está como a mais acessada do dia no site do jornal, talvez pelo título para lá de chamativo (“Lula ofereceu ajuda aos EUA para deter Chávez”). O conteúdo integral é exclusivo para assinantes, mas reproduzo os trechos mais relevantes:

Condoleezza introduziu o assunto dizendo a Dirceu que o Brasil precisava mandar uma "mensagem clara" para Chávez. Dirceu respondeu afirmando que Lula já aconselhara o líder venezuelano a moderar sua retórica, avisando Chávez que ele estava "brincando com uma arma carregada", segundo o informe.

(...)

Os documentos abrem uma fresta que ajuda a entender a evolução das relações do Brasil com os Estados Unidos e seus vizinhos nos primeiros anos após a chegada de Lula ao poder. Eles mostram que o presidente cortejou o apoio dos americanos desde o começo, apresentando-se como um parceiro confiável, que podia ajudá-los a manter a estabilidade na América Latina.

(...)

Conquistar a boa vontade dos americanos era crucial para o novo presidente naquela altura. "Sabíamos que íamos enfrentar uma situação muito difícil no primeiro ano de governo e manter uma relação normal com os Estados Unidos era muito importante", disse Dirceu ao Valor, numa entrevista recente. "Abrir uma frente externa que se transformasse num problema era a última coisa que precisávamos."


Durante boa parte do século XX, a elite brasileira acreditou (ou procurou) ter uma “relação especial” com os EUA, com base no comércio entre os dois países e nas características do Brasil como um gigante em território, população e, a partir dos anos 50, economia. Esse vínculos foram uma “aliança não-escrita” nos tempos do barão do Rio Branco, e depois se tornaram um pacto formal, quando tropas dos dois países lutaram juntas contra o nazi-fascismo no Atlântico Sul e na Europa.

Contudo, esse paradigma entrou em crise à medida que o desenvolvimento econômico brasileiro avançava e se colocavam ambições maiores para o país, que quase sempre se traduziram na busca de mais autonomia, de papéis de liderança na ONU, na África e no Oriente Médio, dos esforços para criar tecnologias próprias em áreas estratégicas (energia nuclear, aviação, telecomunicações, informática, indústria bélica) e em projetos de consolidação de influência na América do Sul, nunca bem-vistos pelos EUA. Mesmo no auge do neoliberalismo dos anos 90, eram Argentina e México que se aproximavam dos Estados Unidos, o Brasil mantinha certa distância e procurava que o Itamaraty chamava de “autonomia por integração”, isto é, a aposta em acordos internacionais multilaterais como uma certa margem de manobra com relação a Washington.

A política externa de Lula retomou pontos tradicionais da agenda diplomática mais autonomista. O curioso é que conseguiu compatibilizar essas posições com um alto nível de cooperação com os EUA. A meu ver, por duas razões: 1) No pós 11/09, os interesses primordiais de Washington estão na Ásia, e as crises na América Latina se tornaram aborrecimentos secundários. 2) A ascensão de governos latino-americanos à esquerda do PT fizeram Lula ser considerado bastião de estabilidade e confiança aos olhos da Casa Branca – algo reforçado, claro, pelas decisões do Planalto com relação à economia.

Dito de outro modo, o Brasil tem desempenhado na América Latina um papel de estabilização política e moderação de crises que os EUA não podem ou não querem ter, em função de suas turbulências no Iraque e no Afeganistão. A lista é longa: Haiti, Venezuela, Bolívia... Isso não significa que o Brasil seja um testa-de-ferro dos interesses de Washington, como às vezes é encarado no mundo hispano-americano. O país busca seus próprios interesses e age à sua maneira particular.

Relação deveras especial, e sempre interessante.

5 comentários:

Patricio Iglesias disse...

Caro Maurício:
Sem dúvidas, os EUA gostam da estabilidade na regiäo e preferrem que os paises latinoamericanos tenham uma margem de autonomia antes de cair no desordem.
Saludos argentinos

Patricio Iglesias

Histórias de Francesco e Clara disse...

Prezado Marcelo sou estudante e depois de ter feitos algumas buscas na internet tive a grata surpresa de me deparar com o seu blog que é fantástico. Tenho vontade de devorá-lo, sei que vou aprender muito.
Estou fazendo um trabalho sobre a necessidade de um modelo supranacional no mercosul. No art. 1 do tratado de Assunção fala-se da harmonização das legislações do países membros do mercosul que não foi feita até hoje. Pretendo abordar a dificuldade de cessão de soberania por parte do Brasil possibilitando essas organizações supranacionais e logicamente a necessidade da proposição de emendas constitucionais neste sentido. Emendas que apesar da evidente necessidade não foram propostas evidenciando uma passividade do legislativo brasileiro.
Meu objetivo é investigar o porque desta nao proposição das emendas necessárias a CF/88 trabalhando com a seguinte hipotese: A forte disposição histórica ao nacionalismo advinda do processo ditatorial dos países da América do Sul impedem a formação de uma visão sobrenacional e consequentemente geram uma recusa de cessão de soberanias e competências a um órgão supranacional.
Vc teria alguma sugestão para me dar? Por exemplo material a ser pesquisado.
Certa de ter me alongado por demais, peço desculpas por isso.
Sou de MG e na minha região não consigo encontrar ninguém que possa me orientar no trabalho que estou fazendo.
Gostaria, de ter o seu email e poder comunicar com vc.
Muito obrigada, Ana Carolina
email: nogueiraanacarolina@yahoo.com.br

Maurício Santoro disse...

Cara Ana Carolina,

sugiro que você baixe meu artigo sobre o Parlamento do Mercosul, na coluna direita deste blog, cujo início discute exatamente as dificuldades de harmonização legislativa entre os países do bloco.

Acredito que a cultura autoritária que prevaleceu na região durante boa parte do século XX de fato dificulta a integração, mas a tendo a ver os problemas como ocorrendo bem mais em função do peso maior que o Brasil tem na América do Sul em comparação com os papéis desempenhados pela França e Alemanha na Europa.

Dito de outro modo, o Brasil tem pouco incentivo para ceder poder decisório no bloco.

Seguimos nos falando, espero que o blog possa ajudar em suas pesquisas.

abraços

P.R. disse...

meu deus, curso de PEB devia ser obrigatorio nas escolas, né mauricio? assim as pessoas falariam menos besteira!
amei o post, muito bom mesmo.
te um sobre bolivia no meu blog hoje. da uma passadinha la.
beijos
pati

Maurício Santoro disse...

Olá, querida.

Um pouquinho do mundo nas nossas escolas não faria mal algum ao país. Vou checar seu blog, vamos ver se nos falamos em breve.

beijos