segunda-feira, 22 de março de 2010

A Primeira Vítima



A primeira vítima de uma guerra é a verdade, nos diz o jornalista australiano Phillip Knightley em seu “The First Casualty: from the Crimea to Vietnam, the war correspondent as hero, propagandist, and myth maker”. Knightley aponta horrendas falhas de reportagem em mais de 100 anos de jornalismo de guerra. Erros e omissões que aconteceram por uma mistura de incompetência (desconhecimento da língua e cultura locais sendo os pecados mais comuns), dos efeitos da censura e da manipulação política governamental e da vaidade de profissionais que acreditaram nas próprias ilusões de glamour.

O moderno jornalismo de guerra começou na Criméia em meados da década de 1850, graças aos avanços tecnológicos – telégrafo, ferrovias, navios a vapor – que permitiam mobilidade mais rápida aos repórteres e às notícias enviadas por eles. Também contou, e muito, a ampliação do público leitor, fazendo com que o caro negócio de enviar um correspondente ao exterior se tornasse viável financeiramente. O inventor do ofício foi o jornalista William Howard Russell, que a serviço do The Times denunciou o despreparo do Exército britânico, em particular as péssimas condições médicas e sanitárias, no conflito contra a Rússia. Russell foi hostilizado e ameaçado pelos militares, mas seus artigos contribuíram para melhoras significativas.

Já a guerra civil americana se mostrou um desastre jornalístico. Os repórteres da União e do Sul escreviam mais motivados por propaganda do que em busca de objetividade, e deixaram de perceber momentos cruciais do conflito, como a importância do discurso de Gettysburg, de Lincoln, ou a invenção da “guerra total” pelo general Sherman, em sua marcha para tomar Atlanta e dividir a Confederação em duas.

Em linhas gerais, a ideologia também prevaleceu sobre o bom jornalismo nos conflitos coloniais e na Primeira Guerra Mundial, sendo que neste último caso implacáveis sistemas de censura atrapalharam muito mesmo os bons profissionais.

Não faltam figuras pitorescas, como Winston Churchill, que era simultaneamente militar e jornalista, e usava as reportagens que escreveu no Sudão e na África do Sul – onde sempre se retratava heroicamente – como trampolim para sua carreira política. Ernest Hemingway fazia parecido e até “conquistava” cidades, aceitando a rendição de autoridades em nome dos exércitos que cobria como repórter.

Mas Knightley destaca alguns mestres que mantiveram o espírito crítico e os ideiais humanitários em meio às carnificinas, como o italiano Luigi Barzini, eterna consciência da brutalidade da guerra. Ou John Reed, em sua extraordinária observação sobre a Revolução Russa. E ainda Evelyn Waugh, que usou os absurdos que viu na Etiópia como matéria-prima para sua sátira romanceada dos correspondentes, “Scoop”.

A guerra civil espanhola rende um dos capítulos mais dramáticos de Knightley, pela polarização política e manipulação ideológica entre nacionalistas e republicanos, e como cada grupo conseguiu recrutar numerosos jornalistas. Mesmo tragédias como o bombardeio de Guernica quase não foram compreendidas no calor dos fatos, pelas suspeitas de que se tratassem apenas de propaganda.

Knightley também é crítico do modo como a Segunda Guerra Mundial foi coberta, mas é interessante como examina o surgimento de novos estilos de correspondentes, menos presos aos esteriótipos machistas e focados no cotidiano dos soldados (como Ernie Pyle) ou aos grandes desdobramentos da história. É emocionante ler como Ed Murrow implorou a seus ouvintes que acreditassem em seus relatos sobre os recém-descobertos campos de concentração.

O capítulo sobre o Vietnã mostra como a cobertura da mídia começou sintonizada com a propaganda dos governos Kennedy e Johnson, e foi aos poucos se transformando pelo choque dos repórteres com o racismo, brutalidade e a corrupção do conflito. A ofensiva vietcongue do Tet, em 1968, despertou a opinião pública para os descaminhos da estratégia americana no Sudeste Asiática.

Li a primeira edição do livro, de 1975, posteriormente foram lançadadas atualizações abarcando até as guerras do Kosovo (1999) e do Iraque (2003). Mas os pontos principais de Knightley estão bem demarcados nos estudos de caso anteriores e os problemas que ele observa se aplicam em grande medida às falhas da imprensa nos conflitos atuais.

6 comentários:

Mário Machado disse...

É ... tem reporter que não consegue cobrir uma votação no congresso ou um jogo de futebol sem se desviar dos fatos. Imagina em ambiente de guerra.

Maurício Santoro disse...

Boa comparação! :-)

Engraçado que o livro não fala na "névoa da guerra", que é algo que confunde até os militares... Mas foi uma leitura divertida.

abraços

Patricio Iglesias disse...

Meu caro:
Uma pena que não fale da manipulação da imprensa argentina pelo governo militar no meio da Guerra das Malvinas. Minha mãe sempre me conta que seus companheros na faculdade diziam (tristemente, contentos) "¡Sí, dicen que vamos ganando!" e ela não podia lhes fazer compreender que isso não era possível.
Abraços!

Patricio Iglesias

Maurício Santoro disse...

Salve, meu caro.

De fato, não há nenhuma menção à América Latina no livro, mas com as ferramentas de análise que esta obra lhe dá, você pode examinar em detalhes o caso das Malvinas.

Abraços

Enzo Mayer Tessarolo disse...

Essa desconstrução da verdade me lembrou de Orwell e seu 1984, em que o Partido altera a história e os fatos em seu próprio benefício.

As falhas da impensa sempre existirão, mas acredito que sua influência na população deve ser menor atualmente, dada a multiplicação dos meios de comunicação.

Abraços,
Enzo.

Maurício Santoro disse...

Salve, Enzo.

Sim, mas o livro vai além disso, muitas das falhas dos repórteres não são intencionais, são frutos mesmo da incompetência e da falta de preparo.

Abraços