segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Lisboa a Caminho de Atenas



Por Ramon Blanco
Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra, em parceria com o Centro de Estudos Sociais
Blogueiro Convidado

Ao se pensar na atual crise das dívidas soberanas na Europa, muito das atenções tem se dirigido, e não sem razão, para a Grécia. Afinal, foi lá onde a crise foi deflagrada, há quase dois anos. No dia 21 foi aprovada a sexta parcela (€ 8 bilhões) do segundo pacote de empréstimos ao país, que tem valor total de € 109 bilhões. Juntamente com essa nova medida foi acordado com detentores da dívida grega uma redução de 21% no valor dos seus papéis. Na última quarta-feira (26), tal redução chegou a 50% para títulos mãos de credores privados.

Essa sexta parcela chega aos cofres gregos na primeira quinzena de novembro, altura na qual a Grécia já estaria sem dinheiro mesmo para pagar salários e aposentadorias da função pública. Contudo, apesar dos elevados valores, tais montantes deixam a Grécia respirar por apenas alguns curtos meses. Já há estudos que colocam as necessidades gregas para a próxima década perto dos € 440 bilhões e a sua dívida em 170% do PIB em 2012.

Entretanto apesar da gravidade, e elevado valor dos números, ainda se está falando de uma situação de certa forma gerenciável em termos da União Européia. É preciso lembrar que, coletivamente, a UE tem o maior PIB do mundo e tais valores são uma pequena parcela do mesmo. A questão central de toda a crise é que esta nunca foi tratada enquanto um problema europeu, e sim grego. E isso faz toda a diferença. Assim, nessa linha de raciocínio, o grande receio do eixo franco-alemão, que é quem efetivamente lidera a Europa hoje, é o contágio da crise para outras economias européias, principalmente Espanha, Itália, e até mesmo França.

A seguir à Grécia, dois outros países europeus já sofreram intervenções financeiras por parte do Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Européia (a chamada troika) – Irlanda e Portugal. Observando as medidas recentemente adotadas, e o Orçamento de Estado (OE) proposto pelo governo – empossado em Junho desse ano e liderado pelo Partido Social Democrata (PSD), em coligação com o Partido Popular (CDS-PP) – para o ano de 2012, pode-se dizer que é bem possível assistirmos a Portugal caminhar para uma realidade vista na Grécia. Não tanto pela violência observada na contestação social, mas sim pelo acentuar do desemprego, perda de conquistas sociais, e grande possibilidade de não pagamento da sua dívida. Na sequência da recente visita do Primeiro-Ministro (PM) português ao Brasil, vale a pena olhar com um pouco mais de atenção para a realidade portuguesa.

Desde o primeiro trimestre de 2010, Portugal passa por série de pacotes de medidas de austeridade – como por exemplo, a redução das deduções fiscais, o aumento de impostos, o corte de salários de funcionários públicos e a redução de programas e subsídios sociais – com o intuito de lidar com a sua dívida. Em março, o governo acordou com a Comissão Européia novo pacote de medidas de austeridade – o quarto em doze meses – sem nenhuma consulta tanto à Assembléia da República (AR) quanto à Presidência. Ao ter tal pacote recusado pela AR, o governo teve a sua margem de governabilidade posta em causa, o que levou a sua queda e a convocação antecipada de eleições.

Em abril, o governo já demissionário assinou acordo com a troika visando um pacote de empréstimos para Portugal. A contrapartida seria a profunda reestruturação da economia e sociedade portuguesa. Pedro Passos Coelho, líder do PSD, foi eleito Primeiro-Ministro com uma agenda neoliberal de redução do tamanho do Estado e do papel deste na economia. O argumento apresentado era de que dessa forma a economia ficaria mais ágil e dinâmica.

Entretanto, o que se assiste, para a surpresa, e muitas vezes desespero, de muitos portugueses é um verdadeiro parar da economia. Logo que toma posse do governo, e dos números do Estado, Passos Coelho depara-se com grandes rombos – má execução orçamentária do primeiro semestre (ainda do governo anterior), um buraco no Banco Português de Negócios, e um enorme déficit nas contas da Região Autônoma da Madeira. Para o PM, tais desvios na execução do orçamento de 2011, em comparação à previsão feita no acordo com a troika, são superiores a € 3 bilhões.

De forma a chegar no limite do déficit acordado com a troika de 5,9% do PIB, em contraponto com os atuais 8,9%, o governo toma medidas de austeridade emergenciais. Alguns exemplos são o aumento nos preços dos transportes públicos, a subida de 6% para 23% no imposto sobre o gás e a eletricidade, e o corte pela metade dos subsídios de natal (equivalente ao 13º brasileiro) de todos os trabalhadores. No OE para 2012, além da subida de impostos em alguns escalões salariais e em diversos tipos de produtos e serviços, maior redução de deduções fiscais, privatizações de empresas chave, e redução de bens sociais, há o corte integral dos subsídios de natal e de férias para os funcionários públicos e aposentados para os próximos dois anos.

Em seu conjunto, todas as medidas retiram grande parte do dinheiro dos bolsos dos cidadãos e, em última análise, da economia. Isso levará Portugal a ter uma grande possibilidade de não conseguir pagar a sua dívida. O racional é simples. Com os tipos de impostos aplicados – sobre a produção, o consumo e a renda – tanto os produtos ficam mais caros, quanto as famílias têm menos dinheiro disponível para consumir. Somados, esses dois elementos levam a uma queda acentuada no consumo dentro da economia. Com menos consumo na economia, há por um lado menos produção de bens e serviços, e, por outro lado, menos incentivo para os empresários para arriscarem novos negócios ou expansões dos seus negócios atuais. Com isso, há menos produção de bens e serviços, o que gera não só menos contratação de funcionários, mas principalmente mais despedimentos de trabalhadores. Com menos trabalhadores com dinheiro disponível para consumir, há menos produção e menos incentivo para empreender novos negócios. Além disso, aqueles que ainda estão empregados, ao observar essa realidade negativa, passam a ter grande incerteza sobre os seus próprios futuros o que os leva a adiar, ou mesmo retrair, o seu consumo.

É dessa forma que a economia entra rapidamente em uma espiral negativa. A questão é que com menos consumo e menos produção, há uma redução drástica na arrecadação de impostos. Assim, a receita do Estado português irá decrescer acentuadamente nos próximos meses, o que fará com que tenha menos dinheiro para pagar suas dívidas. Esse caminho não só levará Portugal a não conseguir pagar as suas dívidas, mas literalmente matará a economia portuguesa quando esta mais precisa de se estar viva e vibrante para fazer frente às dificuldades externas e de seus cidadãos. É simplesmente deparar-se com um abismo e ver como melhor solução o passo à frente.

Já houve tempos em que os médicos, visando o tratamento de algumas doenças, praticavam a sangria – o que literalmente significava deixarem os pacientes sangrarem com o intuito de os curar. Obviamente, muitos pacientes morriam e assim a “solução” tirava mais do que salvava vidas. Felizmente, a Medicina aprendeu com os seus erros e tendo em vista a sua razão de ser – salvar vidas – avançou. Assim, tal técnica, além de desacreditada, foi praticamente abandonada enquanto tratamento médico. Não precisamos de uma medicina que mata mais do que salva. Na Economia, por outro lado, ainda assistimos à adoção de medidas que largamente ignoram as vidas das pessoas. Medidas estas que fundamentam-se em teorias econômicas que já evidenciaram falhas graves, tanto teoricamente quanto na prática. Uma economia que não tem como objetivo central, de uma forma sustentável, melhorar a vida das populações e dos seus indivíduos, além de não ser necessária, é bastante perigosa para a vida destes. Não precisamos de uma economia que mais destrói do que cria valor.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A Vergonha da Itália



Este é o primeiro de uma série de posts comentando os melhores filmes a que assisti no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, particularmente bom neste ano. Começo com dois documentários que tratam do declínio da Itália nesta época de crise econômica e de governo de Silvio Berlusconi.

“Itália, ame-a ou deixe-a” trata de dois rapazes que viajam pelo país conversando com pessoas sobre os problemas italianos, para decidir se irão emigrar (como fizeram vários de seus amigos) ou se permanecem e tentam mudar as coisas. O título é original, não é uma referência ao slogan do regime militar brasileiro.

O filme é surpreendente leve e bem-humorado, muito por conta da personalidade de um dos protagonistas, natural do Tirol, região italiana na qual a língua materna é o alemão, e que desempenha o papel de um cético rabugento, a todo tempo citando estatísticas que mostram o descalabro do país. Exemplo: apenas 15% de jovens na universidade, o índice mais baixo da União Européia!

No giro pela Itália, os dois rapazes vêem de tudo: crime organizado, corrupção, salários baixos, precarização do trabalho, cultura de massas vulgar e sórdida, degradação ambiental, descaso com o patrimônio histórico do país, maus tratos a imigrantes africanos, a persistência do fascismo e do autoritarismo na sociedade. Mas também encontram pessoas interessantes que estão engajadas em ações de transformação social. Não é um filme pessimista, mas chama a atenção o declínio acentuado com relação à prosperidade e criatividade do país nas décadas passadas.

O gráfico abaixo ajuda a entender os problemas, com a estagnação italiana desde a adoção do euro em 2002. O país perdeu competitividade internacional e enfrenta dificuldades crescentes para se manter solvente por conta da elevação das taxas de juros.



O documentário trata, claro, de Berlusconi – uma das sequências mais assustadoras é o encontro dos rapazes com um grupo de idosas que admiram o primeiro-ministro. Ele é o protagonista de “Para Sempre Silvio”, biografia não-autorizada e para lá de irônica, mas editada somente com seus discursos e declarações. Ou de pessoas próximas a ele, como sua mãe, mostrada no vídeo abaixo.



O filme trata brevemente de sua carreira como empresário, que o levou a se tornar o homem mais rico da Itália, mas concentra-se em seu envolvimento com a política. Depois que o sistema partidário italiano entrou em colapso com escândalos de corrupção, Berlusconi criou seu próprio partido e elegeu-se repetidas vezes com teatro público que tornou o primeiro-ministro célebre – ou infame – no mundo todo.

Os dois documentários por vezes acabam caindo na armadilha de focar nos escândalos sexuais de Berlusconi – assunto privado. Se ele organiza orgias com prostitutas com seu dinheiro, não é uma questão de Estado. Esse lado espalhafatoso do primeiro-ministro afasta o debate do que realmente importa: sua gestão da política pública italiana, a concentração de poderes em suas mãos e os riscos que representa para as instituições do país.

Dois livros recentes de intelectuais italianos renomados chamaram minha atenção. Na Foreign Policy, o jornalista Beppe Severgnini discute sua nova obra com 10 razões pelas quais Berlusconi se mantém no poder – sobretudo por meio de redes de clientelismo e corrupção.

E a Foreign Affairs publica trecho do novo estudo do filósofo Maurizio Viroli sobre a “tirania velada” do primeiro-ministro. Embora ele nunca tenha dado golpes de Estado, Viroli elenca vários motivos pelos quais o premiê ameaça a democracia, do cerceamento à liberdade de imprensa ao envolvimento com o crime organizado. O autor aponta também a fragilidade estrutural da sociedade da Itália, observando como os períodos de democracia liberal foram curtos e instáveis no país.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Vitória de Cristina Kirchner



Há três anos eu estava na Argentina quando o governo de Cristina Kirchner sofreu sua pior derrota, na rejeição do Congresso a sua proposta de taxar as exportações do agronegócio. A popularidade da presidente estava em 20% e muitos acreditavam que ela renunciaria. Dois meses atrás, em outra visita a Buenos Aires, a presidente havia se fortalecido e ganhou com facilidade as primárias. Agora se reelegeu em primeiro turno, com os maiores percentuais de voto (54%) e de distância para o segundo colocado (37%) desde o retorno da democracia.

É uma das guinadas eleitorais mais impressionantes da América Latina, em especial porque ocorreu em meio a problemas sérios, como inflação alta, escândalos de corrupção e conflitos com a imprensa. O segredo do sucesso passa pela economia, mas também pela impressionante estrutura de poder do peronismo, em contraste com a fragmentação partidária após a crise de 1998-2002.

Cerca de dois terços das exportações da Argentina são commodities e o país se beneficiou muito da conjuntura global da última década, aumentando bastante as vendas de soja e de vinho ao exterior. O mercado interno também voltou a crescer, em especial na construção civil, e em 2005 o PIB ultrapassou o nível anterior ao da crise. O desemprego também caiu bastante, para 9%. Ou seja: a vida material melhorou muito com relação à catástrofe dos anos recentes. Ainda que persistam dificuldades como a inflação alta (estimada em torno de 25% ao ano), agravada pela manipulação dos índices oficiais, que insistem em apontar um índice de um terço disso.

Durante a crise os argentinos gritavam “que se vayan todos” para a elite política. Não foi exatamente o que ocorreu, mas houve uma mudança significativa no quadro partidário, com o surgimento de vários pequenos partidos. O tradicional sistema bipartidário (peronismo e UCR) virou um regime com meia dúzia de siglas disputando o poder. Os Kirchner ocupam a presidência desde 2003 e tiveram enormes dificuldades em lidar com as diversas facções dos seguidores de Perón, mas continuam a ter uma grande vantagem sobre a oposição, dividida em pequenas agremiações somam em conjunto menos de um terço dos votos.

A morte de Néstor Kirchner, no fim de 2010, acabou se revelando um bônus político para a viúva. Hoje está claro que o ex-presidente era o elemento mais conflituoso no casal e que sem ele Cristina conseguiu construir relações mais moderadas com o agronegócio e mesmo dentro do peronismo. A estrela em ascensão no partido é o vice-presidente eleito, Amado Boudou, ex-ministro da Fazenda, um economista de origens liberais que pode ser uma ponte com os empresários. O sucesso eleitoral faz com que muitos dissidentes peronistas se reaproximem de Cristina, em particular na crucial província de Buenos Aires, que concentra 40% dos votos.

A Argentina já foi mais rica do que a Espanha e o Brasil, mas seus últimos 40 anos foram de declínio constante. Quase 80% das 500 maiores empresas do país pertencem a estrangeiros. O nacionalismo econômico dos Kirchner não foi capaz de reconstruir uma coalizão pró-indústria, mas o governo retomou o controle de alguns setores que haviam sido privatizados (água, estaleiros, ferrovias, correios, fundos de pensão, linhas aéreas) e incentivou empresários nacionais a obter a maioria das ações em firmas que estavam sob direção externa.

Falta ao país o dinamismo das empresas globais que começam a surgir em outras nações latino-americanas, sobretudo no Brasil, México e Chile. O sistema político também tem se mostrado inadequado, polarizado e centralizador. São problemas intensos para a Argentina contemporânea, mas ao menos o período mais díficil, de crise econômica aguda, foi superado.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Os Vários Capitalismos do Século XXI



Por Bruno Borges
Doutor em Ciência Política - professor da PUC-Rio
Blogueiro Convidado e Editor do blog Os Capitalismos

Os últimos anos não têm sido fáceis para quem tenta compreender o sistema econômico mundial. A perplexidade diante de acontecimentos de enorme proporção tem deixado analistas e cidadãos sem saber exatamente como reagir a consequências que não imaginavam ser possíveis há apenas alguns anos atrás. O Euro à beira de um colapso? Os Estados Unidos sendo rebaixado por seus próprios bancos? Bancos globais falindo? Crescimento da China ininterrupto por trinta anos?

Desde que se consolidou, o capitalismo é um sistema de extremos e foi visto com tal por inúmeros pensadores: gerador de extrema riqueza e, ao mesmo tempo, extrema pobreza. Ao mesmo tempo uma força absolutamente libertadora e criativa, enquanto, igualmente, é capaz de forçar todos a conformar-se a sua lógica. Condenado ao fracasso várias vezes, sempre se recuperou, alterando suas formas. Alguns proclamaram que a expansão do capitalismo traria a paz entre os povos. Outros tinham certeza de que era o motivo das guerras em grande escala.

E, no entanto, o capitalismo sobrevive e se movimenta, mais rápido do que nunca. No século que completa uma década, a tarefa é ainda compreendê-lo. É também cada vez mais claro que não pode ser apenas pensado como modelo único, como monólito. Suas variedades ajudam a explicar diversas facetas de nossas vidas, desde padrões de educação às normas jurídicas de uma sociedade. Sua relação com o Estado – como auxílio ou empecilho, mas sempre presente – também precisa ser destacada. As consequências de suas falhas têm nos afetado diretamente tanto como consumidores, quanto contribuintes e trabalhadores. O resultado de uma depressão global pode ainda ter efeitos devastadores sobre nossas vidas.



Graças ao capitalismo, milhões de pessoas foram recentemente integradas à economia global, podendo se alimentar melhor e ganhar uma educação formal, pela primeira vez em gerações. Os dois países mais populosos do mundo, China e Índia, têm crescido nas últimas décadas em um ritmo assombroso. Mas algumas questões permanecem: será esse capitalismo comparável ao capitalismo “tradicional”, ensinado em livros-texto de Economia? E será que padrões de crescimento (e de consumo) crescentes são sustentáveis ecologicamente a médio e longo prazo? É possível conciliar democracia com a crescente globalização? E o que podemos esperar da nova ordem global que está se formando com a reorganização da produção e consumo?

É preciso, portanto, fazer um balanço do capitalismo no século XXI. Essas questões serão exploradas em curso de quatro aulas que darei na Casa do Saber (Rio de Janeiro)durante o mês de novembro, às terças-feiras, das 20hs às 22hs. Ficarei feliz de contar com a presença de todos aqueles que quiserem discutir esses assuntos comigo.

domingo, 23 de outubro de 2011

Eleições na Tunísia: o teste da Primavera Árabe



As eleições parlamentares na Tunísia, ocorridas neste domingo, são o primeiro teste da Primavera Árabe. Como é natural em tempos de incerteza e conflitos, elas acontecem em meio a muitas dúvidas e preocupações: o crescimento acelerado do Islã político, a persistência das lideranças da ditadura no governo de transição e descontentamento e ceticismo da população com relação aos partidos, vistos como pouco capazes de responder às demandas econômicas.

Dez mil candidatos divididos em cerca de 120 partidos disputam 217 vagas no parlamento, que irá elaborar a constituição democrática em 2012. Os números impressionam mas a fragmentação é menor do que aparenta. A maioria das siglas é muito pequena, e apresentou candidatos apenas para um ou dois dos 33 distritos eleitorais.

Só quatro partidos disputam de maneira efetiva o poder. Três deles eram a oposição legalmente consentida (e restrita) sob a ditadura: o Partido Democrático Progressista, o Fórum Democrático e o Congresso da República. Estima-se que tenham, cada um, entre 5% e 15% dos votos. O favorito nas pesquisas é o partido da Renascença, com a perspectiva de ficar entre 20% e 25% do total. É uma sigla islâmica moderada, proibida sob o regime autoritário. Seu líder havia sido condenado à morte pelo ditador Ben Ali e vivia exilado no Reino Unido. As estimativas são precárias porque há muitíssimos indecisos, talvez até dois terços, segundo algumas projeções.

O sistema eleitoral tem inovações importantes: os partidos são obrigados a ter 50% de candidadas mulheres. A estimativa é que a Tunísia tenha algo como um terço de representação feminina no parlamento, o que seria alto para a média mundial – no Brasil, por exemplo, não chega a 10%. Há também seis distritos eleitorais destinados aos tunisianos que vivem no exterior, o que deve favorecer os partidos liberais e pró-Ocidente.

As principais preocupações são a possibilidade de um alto índice de abstenção e da radicalização islâmica. A população não tem se mostrada entusiasmada com as eleições e ocorreram muitos problemas de organização e de registro de eleitores. O governo de transição é liderado por figuras de proa da ditadura: o ex-presidente do Parlamento chefia a República, o ex-chanceler é o atual primeiro-ministro e ex-titulares da Fazenda, Defesa e Interior também estão no gabinete. Líderes da oposição participam em postos secundários, em geral nas pastas sociais.

Houve uma tentativa de incluir os jovens, com a nomeação de um blogueiro para secretário de Esportes e Juventude. Ele ficou poucos meses no cargo, renunciou em protesto contra medidas de censura à Internet. Por conta de casos assim, o símbolo juvenil mais conhecido do país, a blogueira Lina ben Mehany anunciou seu boicote às eleições.

O vácuo político abriu espaço para o rápido crescimento dos islamistas. Eles não são fundamentalistas, seu modelo é mais parecido com o da Turquia, mas ainda assustam. A Tunísia não é um Estado laico – as leis incorporam elementos das normas muçulmanas – mas é o único país árabe no qual a poligamia é proibida e uma decisão recente do Ministério da Educação veta o uso de véus nas escolas. Naturalmente, há o medo de que essa situação mude.

A economia da Tunísia é diversificada, com pesos importantes da indústria têxtil e de calçados, do turismo e da mineração. Mas ela enfrenta dificuldades, pois seus principais parceiros comerciais – União Européia e Líbia – foram muito atingidos pela crise global. Além dos desafios constitucionais, o parlamento precisará oferecer respostas efetivas a essas demandas sociais. Tarefa difícil em qualquer circunstância.

Pós-Escrito: minha entrevista à Globo News sobre as eleições na Tunísia.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Sic Transit Gloria Mundi


I met a traveller from an antique land
Who said: "Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert.




Near them on the sand,
Half sunk, a shattered visage lies, whose frown
And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read




Which yet survive, stamped on these lifeless things,
The hand that mocked them and the heart that fed.



And on the pedestal these words appear:
`My name is Ozymandias, King of Kings:
Look on my works, ye mighty, and despair



Nothing beside remains. Round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,



The lone and level sands stretch far away".

P.B. Shelley (1792-1822)

Minha análise da morte de Kadafi e as perspectivas para a transição líbia estão em minha entrevista ao portal Terra.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Dez Romances sobre Relações Internacionais

Gostei muito da repercussão da lista anterior, com 10 livros acadêmicos sobre política internacional. Agora,como prometido, continuo com uma seleção de romances. O gênero é moderno, de modo que as escolhas abaixos excluem clássicos como os poemas épicos de Homero, Virgílio, Camões ou obras teatrais que vão dos trágicos gregos aos dramas históricos de Shakespeare. Isto posto, vamos à lista, em ordem de publicação dos livros:

Guerra e Paz, Leon Tolstói
Napoleão invade a Rússia e o país se une para expulsá-lo. No processo, Tolstói nos brinda com reflexões pungentes sobre nacionalismo, família, amadurecimento e a busca de sentidos para a vida e a história. O trecho em que o príncipe Andrei, ferido no campo de batalha às portas de Moscou, olha a paz do céu azul e descobre que a glória da guerra é uma quimera é das coisas mais belas que a espécie humana já escreveu neste universo.

O Coração das Trevas, Joseph Conrad
O jovem agente de uma empresa de comércio de marfim relata a viagem de pesadelo que fez subindo o rio Congo, à procura do sr. Kurtz, outrora uma estrela da empresa, que se embrenhou no interior da África e enlouqueceu, criando seu próprio mundo megalomaníaco pela submissão dos nativos. Uma das melhores descrições da força destruidora do colonialismo.

A Montanha Mágica, Thomas Mann
Bem-vindo ao Sanatório Internacional Berghof, onde todos nos encontramos. Nessa clínica de luxo, nos alpes suíços, está internada uma população multinacional que representa uma Europa doente, às vésperas da I Guerra Mundial, e dividida por rivalidades patrióticas e polarizações idelógicas entre direita e esquerda. Outros magistrais romances de Mann também são fundamentais para compreender a política internacional européia dos séculos XIX e XX, em especial “Os Budenbrook” (unificação alemã) e “Doutor Fausto” (queda do Império, República de Weimar e ascensão do nazismo).

Doutor Jivago, Boris Pasternak
Clássico sobre as revoluções russas de 1905 e 1917, e das participações do país nas guerras mundiais, no conflito contra o Japão e nas convulsões internas que acompanharam a adoção do marxismo. O centro do romance é a história de amor entre o médico e poeta Iuri Jivago e sua amante Larissa, que ele conhece quando ambos servem o serviço de saúde do Exército na I Guerra Mundial. A célebre versão para o cinema cobre bem o romantismo, mas deixa de fora muito dos aspectos políticos da obra.

O Leopardo, Tommaso di Lampedusa
Um princípe siciliano assiste de modo resignado e cético às guerras de unificação da Itália, nas quais seu sobrinho toma parte ao lado dos guerrilheiros de Garibaldi. Entre as intrigas da Corte e o declínio do mundo semi-feudal que conheceu, o aristocrata percebe que “algo precisa mudar para que tudo permaneça o mesmo.”

O Mundo se Despedaça, Chinua Achebe
Os ingleses se estabelecem na Nigéria e aos poucos mudam profundamente as sociedades locais. Este romance – considerado o principal clássico da literatura africana contemporânea – conta a história de uma família infeliz do povo Ibo na qual o filho atormentado pelo pai autoritário foge de casa para juntar-se aos missionários cristãos, com consequências inesperadas para toda a aldeia.

The Sorrow of War, Bao Ninh
Nas minhas aulas sobre as guerras do Vietnã, é comum que meus alunos perguntem que livro narra o conflito da perspectiva dos vietnamitas. Este título é a resposta. Uma tocante história de amor e inocência perdida, por meio de um casal de namorados separados pela brutalidade da guerra, e um olhar cético sobre as divisões entre capitalismo e comunismo. Considero-o ainda melhor que “Nada de Novo no Front”, o clássico pacifista sobre a I Guerra Mundial, com o qual tem muito em comum.

Na mesma linha, recomendo “No Zênite”, de Dhuong Thu Huong (Ho Chi Minh, moribundo e amargurado, lamenta os rumos do Vietnã) e “O Americano Tranquilo”, de Graham Greene. Em “Os Cus de Judas”, de Antônio Lobo Antunes, um psquiatra relembra seus traumas no Exército português em Angola e sua oposição à ditadura de Salazar em Portugal, numa narrativa muito semelhante aos clássicos sobre o Vietnã.

À Espera dos Bárbaros, J. M. Coetzee
Um magistrado serve numa remota província do Império, quando surgem rumores de uma ameaça bárbara nas terras selvagens além da fronteira. Uma força militar é despachada para lidar com a questão e logo o protagonista descobre que a civilização pode ser muito mais violenta que a bárbarie. Este romance sombrio e reflexivo é geralmente considerado uma alegoria do apartheid, mas acredito que ele funciona às maravilhas como uma representação dos dilemas de segurança da Guerra Fria, ou das dificuldades de entendimento entre culturas muito diferentes. São temas parecidos aos dos clássicos dos romances de espionagem, em especial os do mestre John Le Carré, como “O Espião que Veio do Frio” e “Tink Taylor Soldier Spy” (no Brasil, “O Espião que Sabia Demais”).

O Fundamentalista Relutante, Moshin Hamid
Um executivo paquistanês radicado nos Estados Unidos começa a questionar profundamente sua identidade e seus ideais políticos após os atentados de 11 de setembro de 2001. É a melhor obra literária sobre os impactos do terrorismo contemporâneo. “Sábado”, de Ian McEwan e “O Homem no Escuro”, de Paul Auster, são bons contrapontos, na perspectiva das consequências para o Ocidente.

A Mulher Foge, David Grossman (Nas edições internacionais, o título é “Até o Fim da Terra”)
Simplesmente o melhor romance sobre os conflitos árabe-israelenses. Contado por meio de uma mulher que sofre com a ausência do filho, que luta na 2ª Guerra do Líbano, e procura o ex-amante, pai do rapaz, para passar em revisão sua vida pessoal e a de Israel, de 1967 aos dias atuais. A descrição do Exército do Egito cruzando o Canal de Suez em 1973 é simplesmente a melhor narrativa de batalha desde Tolstói. Para interessados no tema, vale ler também o mestre Amós Oz (“A Caixa Preta”, “Uma Certa Paz”).

domingo, 16 de outubro de 2011

Um Pensageiro em Bruxelas



Por Ramon Blanco
Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra, em parceria com o Centro de Estudos Sociais (CES).
Blogueiro Convidado

A palavra ‘pensageiro’, cunhada pelo escritor Moçambicano Mia Couto, talvez seja a melhor forma de descrever a minha posição enquanto estive em Bruxelas durante o mês de Setembro deste ano. Durante esse mês, estive vinculado, enquanto pesquisador convidado, a um importante think-tank da capital belga ligado à área da Paz e Segurança Internacionais. Ao fundir as palavras ‘pensar’ e ‘passageiro’, Mia Couto ajuda-me a descrever o fato de que mesmo estando enquanto um mero passageiro, ou de passagem, em um assunto, situação, ou lugar, é inexorável a atividade de se pensar e refletir acerca deste momento, desta passagem. Mesmo esta sendo muito curta. Essa, obviamente, é uma interpretação, e certamente uma extrapolação, minha que muito provavelmente pouco, ou mesmo nada, tem a ver com a real intenção do autor Moçambicano ao ter cunhado o neologismo. Entretanto, a forma simples com que descreve a posição em que estive é precisa demais para ser ignorada.

Assim, gostaria de deixar aqui registrado três pequenas observações que fui recolhendo enquanto um pensageiro em Bruxelas. A primeira delas é que não é necessário muito tempo para notar o quão fácil pode ser descolar-se da dura realidade do mundo quando se está em Bruxelas. Um simples passeio pelo centro da cidade leva o/a visitante a lugares faustos, históricos, e obviamente cheios de turistas. Ao se caminhar por áreas residenciais centrais, nota-se claramente que se está em uma cidade muito rica onde bons carros e excelentes casas são a regra. É muito fácil ficar preso/a na “Bolha de Bruxelas”, como normalmente é chamado o ambiente da cidade por aquele/as que nela residem. Contudo, basta ir para a parte mais periférica da cidade para perceber a difícil realidade vivida maioritariamente por imigrantes, de várias origens, sendo uma parte significativa de árabes e muçulmanos. Sendo essa uma realidade próxima, tão próxima quanto três pontos de ônibus em alguns casos – contudo invisível, e muitas vezes invisibilizada; não é difícil pensar na facilidade que é perder-se nos meandros e tecnicidades eurocratas enquanto o resto do mundo assiste à uma Europa lenta, indecisa, e muitas vezes letárgica.

Uma segunda observação tem a ver com a abertura com que as instituições européias, e não só, têm para conversar com a sociedade em geral. Obviamente esse ponto me foi facilitado pelo fato de estar vinculado a um importante centro de pesquisa da cidade. Contudo, pude notar que não é nada fora do comum para a sociedade em geral conversar com tais instituições, participar de reuniões e eventos, e sobretudo ter acesso à pessoas chave nos processos de decisão das políticas européias. No caso das políticas relacionadas à Paz, por exemplo, há um genuíno interesse por parte das esferas institucionais européias em conversar e trocar perspectivas com organizações não-governamentais, centros de pesquisa e acadêmicos em geral, incorporando-os assim no processo de realização das políticas. Obviamente, tal relacionamento poderia ser não só mais aprofundado, como também alargado a outras esferas sociais. Entretanto, o simples fato deste relacionamento existir, e ser estimulado, é muito significativo e demonstra um importante amadurecimento democrático.



A terceira, e para mim muito relevante, observação que tive foi a importância que a Paz internacional tem dentro da sociedade em geral. A Paz é notoriamente um assunto crucial e isso percebe-se nas mais diversas esferas. Nas esferas institucionais da União Européia, desde a Comissão e passando pelo Conselho e Parlamento, esse é um assunto central na agenda. Contudo, o mais significativo foi ver o quanto essa é uma temática que perpassa a sociedade civil como um todo, organizada e não organizada. É notório, por exemplo, o grande número de organizações não-governamentais, centros de pesquisa, associações e institutos exclusivamente ligados à Paz.

As pessoas em geral participam e contribuem com associações onde a Paz internacional é a preocupação primordial. Mais do que isso, as pessoas regularmente acompanham os debates internacionais acerca do tema. Uma discussão incontornável durante o mês de Setembro foi o pedido feito por parte da Autoridade Palestina junto ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para o reconhecimento do Estado Palestino. Não era nada incomum esse ser assunto frequente em conversas entre pessoas das mais diversas idades e sempre com um acentuado conhecimento do mesmo.Uma das principais razões para a Paz ter essa elevada relevância me foi esclarecida por uma senhora, com pouco mais de oitenta anos, que conheci por lá. Ela explicava-me que Bruxelas foi uma cidade muito castigada durante as duas grandes guerras. Na opinião dela, as pessoas vêem que a Paz é algo que não deve ser tomado por garantido. Pelo visto, isso é algo que a cidade simplesmente não esquece, e nem tão cedo esquecerá.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Jogos, Trapaças e Canos Fumegantes: Irã, Arábia Saudita e EUA



Na terça-feira o procurador-geral (ministro da Justiça) dos Estados Unidos acusou o Irã de planejar um atentado contra o embaixador da Arábia Saudita em Washington. A denúncia serviu para estimular a proposta de mais uma rodada de sanções dos EUA e da União Européia contra a República Islâmica. No entanto, a história tem diversos pontos soltos e não explicados e se parece bastante com o teatro armado para justificar a invasão do Iraque. É preciso cautela – e muita – para examiná-la, mas independemente de sua veracidade ilustra a rápida deterioração da situação internacional iraniana, provocada sobretudo pela revoltas democráticas nos países árabes.

Segundo o governo americano, a Guarda Revolucionária (unidade de elite do Irã) teria contratado um cartel do tráfico de drogas do México para assassinar o diplomata saudita. Um informante das autoridades entre os traficantes denunciou o suposto agente iraniano, Manssor Arbabsia, um vendedor de carros usados condenado no passado por fraude bancária. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos afirma ter gravações de conversas de Arbabsia com os criminosos mexicanos, e provas de que ele transferiu US$100 mil para os bandidos, como primeira parcela de um total de US$1,5 milhões cobrados para executar o embaixador.

O governo do Irã realizou diversos atentados terroristas no exterior – no Líbano, na Arábia Saudita e até na Argentina – mas o modus operandi denunciado pelos Estados Unidos é bastante estranho. Os iranianos têm serviços de inteligência extremamente eficazes e profissionais, além de contar com aliados experimentados como o Hezbolá. O tipo de erro primário cometido na suposta operação contra o diplomata saudita simplesmente não faz muito sentido. O historiador Juan Cole levanta a hipótese de que seja um projeto não-oficial, planejado por membros da Guarda Revolucionária envolvidos em disputas de tráfico de drogas com os sauditas. É uma sugestão verossímil, inclusive porque essa unidade é quase um Estado dentro do Estado, e sua atuação tem sido marcada por ferozes lutas por poder com autoridades civis e religiosas.

Talvez nunca saibamos ao certo o que aconteceu, mas há fatos que podemos analisar neste momento. O mais importante deles é que as revoltas da Primavera Árabe ameaçam a influência do Irã sobre dois de seus aliados-chave no Oriente Médio: o grupo radical palestino Hamas e o governo da Síria. O Hamas tem se aproximado cada vez mais do Egito, fez a trégua com a Autoridade Nacional Palestina e acordou uma importante libertação de mil prisioneiros com Israel. O regime sírio de Assad enfrenta um desafio grande por sua própria sobrevivência, contra a maioria sunita do país, apoiada pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita.

Sauditas e iranianos tem história de disputas que diz respeito, em última instância, a modelos distintos de fundamentalismo religioso, sunita e xiita, e formas de governo, monárquica e republicana. Ambos são ditaduras, mas a da Arábia é ainda mais fechada do que a iraniana, não realizando sequer as eleições limitadas desta, e com restrições piores aos direitos das mulheres. Esse conflito se tornou mais intenso após a Revolução Islâmica de 1979 e agravou-se após o 11 de setembro, quando o Irã se beneficiou do fortalecimento dos movimentos políticos xiitas no Iraque e no Líbano.

A Primavera Árabe também é uma ameaça para os sauditas, que inclusive intervieram militarmente no vizinho Bahrein, para ajudar a monarquia local (sunita) a debelar uma rebelião popular (xiita). Mas a condição de um dos principais fornecedores de petróleo aos Estados Unidos, e aliado fidelíssimo desde a Segunda Guerra Mundial tem poupado o rei saudita do tipo de crítica e sanções internacionais recebidos por tiranos semelhantes na Líbia, Síria e Egito.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Os Cristãos e a Primavera Árabe



Os últimos dias foram os mais violentos no Egito desde a queda da ditadura de Mubarak. Conflitos entre o Exército e manifestantes cristãos deixaram mais de duas dezenas de mortos e reforçaram os medos que a turbulência política no Oriente Médio degenere em violência religiosa. Uma lógica que também ajuda a explicar os impasses na Síria e por que os alauítas governam o país apesar de serem apenas 10% da população.

O mapa abaixo mostra o Oriente Médio de acordo com as diversas religiões que predominam na região.Além de retratar o cisma ente sunitas e xiitas no Islã, ele ilustra bem como o Levante é área mais diversa em termos de crenças, em particular as montanhas à beira do Mediterrâneo (que atualmente estão sobretudo no Líbano), que tradicionalmente foram o refúgio para pessoas que fugiam da perseguição religiosa em outros lugares.



A comunidade cristã no Egito é a maior do Oriente Médio e representa cerca de 10% da população do pais, em torno de 8 milhões de pessoas. A maioria é de denominação copta, uma das primeiras a surgirem nos primórdios do cristianismo – a tradição atribui a São Marcos Evangelista papel decisivo na formação do grupo. Os cristãos egípcios tiveram papel de destaque nos movimentos nacionalistas contra os britânicos, são maioria em várias províncias e muitos destacaram-se na política e na diplomacia. O ex-secretário-geral da ONU, Boutrus Boutrus Ghali, por exemplo, é copta.

Há também uma história de choques e desconfianças entre os cristãos egípcios, grupos fundamentalistas muçulmanos e mesmo o regime secular de Nasser, Sadat e Mubarak. Nas últimas décadas igrejas e instituições cristãs sofreram diversos ataques de radicais islâmicos e em geral os criminosos ficaram impunes. A manifestação que culminou no massacre de domingo era justamente um protesto contra o mais recente desses atentados.

A transição no Egito tem sido mais lenta do que se previa. A junta militar propôs um longo plano pelo qual haverá eleições para a câmara baixa do parlamento (novembro), para a câmara alta (março) e a elaboração de nova constituição ao longo de 2012. Só no fim do próximo ano aconteceriam eleições para a Presidência. A lei egípcia proíbe partidos com base em denominações religiosas, mas é claro que existe o medo que um islamismo político revitalizado se volte contra os cristãos, ou mesmo que outras facções os utilizem como bode espiatório para os problemas do país.

Algo semelhante acontece na Síria. Desde a década de 1960, a república é governada pela família Assad e um grupo de aliados da seita islâmica do alauítas. É uma minoria religiosa que se considera mais laica e moderna do que os sunitas, que formam dois terços da população do país. O regime é autoritário, mas não houve na Síria o tipo de conflito religioso e de perseguições que ocorreram no Líbano ou na Arábia Saudita.

Os cristãos sírios são 10% do país e em geral defensores ardorosos de Assad, a quem vêem como protetor diante do risco de uma ditadura fundamentalista sunita. O jornalista Gustavo Chacra, do Estado de S. Paulo, escreve de Damasco uma série de reportagens contanto essa história e mostrando os receios dos cristãos de que haja um tipo de complô entre Estados Unidos e França para depor Assad.

Esse quado é importante para entender a posição cautelosa do Brasil - e dos demais BRICS – com relação a sanções da ONU contra a Síria. Além disso, há uma insatisfação grande entre China e Rússia pelo modo como o mandato das Nações Unidas na Líbia foi extrapolado da proteção aos civis para uma intervenção estrangeira para depor Muhamar Kadafi.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

A Primavera (no Outono) Americana



“Os republicanos acharam que levariam a democracia para o mundo árabe invadindo o Iraque. A ironia é que foi o mundo árabe que nos deu uma lição de democracia, e posso garantir que estamos aprendendo rápido”. Assim disse o estudante de Administração Brandon Klein, na ótima reportagem do Valor sobre a ocupação de Wall Street por movimentos sociais críticos às grandes empresas, ao setor financeiro e ao governo do país. Curiosamente, a inspiração não vem só da Tunísia e do Egito, mas também do outro lado do especto ideológico, com o Tea Party. Ambos são expressões da revolta da classe média americana com os descaminhos da crise nacional.

O Ocupe Wall Street se assemelha à Primavera Árabe no modo como transforma praças em acampamentos de rebeldes e descontentes, e pelo uso intenso das redes sociais para a organização dos protestos. De modo semelhante, aliás, ao que o “movimento dos indignados” fez na Espanha. Mas no Cairo e em Túnis havia inimigos concretos, regimes autoritários a serem derrubados – e a perspectiva séria e provável de enfrentamentos mortíferos com a polícia, prisão e tortura.

A agenda do movimento americano é bem mais difusa. Ele não apresenta reivindicações imediatas, não há uma lista de demandas para o presidente Obama ou o prefeito Bloomberg. É uma espécie de festival-cidadão, com marchas, protestos, shows, nos quais as pessoas podem expressar seu descontentamento. A praça da Liberdade já virou um imã para visitantes e celebridades. É fácil desqualificar tal ocupação como uma bobagem, mas ela me parece algo mais, como a faísca de um novo modo de mobilização política em quadro de ceticismo com os partidos e desorientação ideológica.



Chama a atenção a rapidez como esse modelo de ação política espalhou-se pelo país (mapa acima). Novamente, a analogia é com a disseminação dos grupos do Tea Party, no primeiro semestre de 2009. Os nova-iorquinos têm se destacado pelo bom humor das manifestações, como a encenação de um ataque de zumbis, e por um protesto na ponte do Brooklyn que culminou com 700 prisões. Houve outros incidentes de violência policial, mas também bom convívio entre eles e os manifestantes, que inclusivem lhes servem comida e café.

Em breve será inverno nos Estados Unidos e provavelmente os grandes protestos ao ar livre serão interrompidos, não sendo claro se retomarão com força em 2012, numa campanha eleitoral que promete opor Obama a um candidato escolhido pela direita religiosa no Partido Republicano (Romney, Perry, quem seja). Mas as manifestações são boa nova, que rompe com a apatia e aponta caminhos para a sociedade americana. Como diria George Bernard Shaw:

You see things; and you say, 'Why?'
But I dream things that never were; and I say, "Why not?”

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Dez Livros sobre Política Internacional



Em discussão recente no meu perfil do Twitter, me foi sugerido indicar livros sobre ciência política e relações internacionais. A idéia é excelente e me baseio em sites como o Five Books para recomendar obras para os leitores interessados no tema. Minha lista é formada em parte por clássicos de história e teoria, mas também por escolhas bastante pessoais que incorporam debates sobre desenvolvimento, democracia e política comparada – ferramentas que considero essenciais para compreender relações internacionais, e que gostaria de ver utilizadas com mais frequência em cursos acadêmicos da área. Sugiro também a consulta de lista anterior que publiquei no blog, com 10 filmes clássicos sobre estes mesmos assuntos. Ainda postarei a respeito de romances e músicas – me cobrem!

O Homem, o Estado e a Guerra, Kenneth Waltz.

As relações internacionais nasceram como disciplina acadêmica após a I Guerra Mundial, mas dialogam com uma tradição muito mais antiga de filosofia e ciência política que no Ocidente remonta à Grécia clássica. Este livro é um estupendo apanhado teórico de três maneiras de se pensar a guerra, da Antiguidade ao fim da década de 1950, quando foi publicado: correntes que acreditam que a violência é parte inescapável da natureza humana, os que defendem que a guerra é característica de alguns tipos de Estado mas não de todos, e o que Waltz chamou de “terceira imagem”, e que localiza a origem primordial dos conflitos na maneira como a política internacional está estruturada como sistema, mais do que nos componentes individuais que a compõem. Desenvolveu essa idéia em seu livro posterior e mais famoso, ainda que em minha avaliação esta seja sua obra-prima.

After Victory, G. John Ikenberry.

Por que países vitoriosos em grandes guerras se dão ao trabalho de construir instituições internacionais que irão regular e limitar sua vontade, em vez de simplesmente impô-la pela força bruta? Ikenberry analisa três grandes momentos de redesenho da ordem mundial: o Congresso de Viena após a derrota de Napoleão (1815) e as conferências que se seguiram às duas guerras mundiais do século XX. Sua conclusão é que arranjos “quase-constitucionais” são vantajosos para as potências vitoriosas, que abrem mão de parte de seu poder em troca da estabilidade de longo prazo trazidas por regras e normas. Ele contrasta essa situação com o pós-Guerra Fria, onde não houve negociações semelhantes.

After Hegemony, Robert Keohane.

Na década de 1970, os Estados Unidos viviam sérias crises, pela derrota no Vietnã, pela estagnação econômica e inflação, pelos conflitos sociais internos e o escândalo do Watergate. Muitos acreditavam que o declínio do país seria também o das instiuições internacionais, mas Keohane argumenta que não, teorizando sobre por que é racional cooperar, mesmo na ausência de uma potência hegemônica que garanta o sistema.



Ascensão e Queda das Grandes Potências, Paul Kennedy.

Outro clássico oriundo da preocupação com o declínio dos Estados Unidos. Kennedy examina 500 anos de história e identifica o padrão da “sobreextensão imperial”: grandes potências expandem-se, passam a gastar cada vez mais com poder militar, para garantir seus domínios, e se vêem envolvidas em conflitos tão numerosos e diversos que terminam por perder recursos econômicos e capacidade de manterem-se competitivas tecnologica e cientificamente. A melhor introdução para a história diplomática das grandes potências (“Diplomacia”, de Henry Kissinger, é rival à altura).

O Mundo Pós-Americano, Fareed Zakaria.

Se você quer entender a ascensão dos BRICS, este é o livro, que se concentra na Índia (vista como futura aliada dos Estados Unidos) e na China (desafiadora e rival). Zakaria é indiano radicado nos EUA e argumenta que Washington tem que aprender a conviver com a inevitável perda de sua hegemonia, até porque continuará a ser um país muito importante. Ele acabou de lançar a 2ª edição do livro. Em ótima entrevista à Globo News, explica suas idéias.

A Grande Transformação: as origens de nossa época, Karl Polanyi.
Nascido na porção húngara do império Hapsburgo, Polanyi escreveu durante a Segunda Guerra Mundial, tentando entender como o mundo chegara à beira do apocalipse após um século de paz. Sua conclusão: a crise social ocasionada pela expansão da Revolução Industrial e da economia de mercado, com as pressões para transformar em mercadorias três pilares da vida cotidiana – terra, mão-de-obra e moeda. O resultado foi o surgimento de um “duplo movimento” de contenção, de criar proteções sociais domésticas (por meio de reformas na sociedade e aumento das tarifas) ou mercados externos protegidos (imperialismo, colônias). A rivalidade internacional crescente solapou as instituições do século XIX e com frequência adquiriu tons totalitários, com o nazi-fascismo e o comunismo. Polanyi propõe uma versão democrática, antecipando o Estado de Bem-Estar Social do pós-guerra.



As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia, Barrington Moore Jr.
Outra brilhante análise das grandes crises da primeira metade do século XX. Barrington Moore identifica diversas trajetórias pelas quais nações agrárias tornaram-se potências industriais, observando que a democracia só prosperou onde a classe média burguesa tomou o poder pelas armas e a agricultura assumiu feição capitalista, livre de amarras feudais (Inglaterra, França e EUA). Onde a burguesia era frágil, tornou-se sócia minoritária dos grandes senhores de terra, com modelos de desenvolvimento liderados pelo Estado autoritário (Alemanha e Japão) ou sucumbiu diante de revoluções comunistas (Rússia e China). Este trabalho seminal gerou diversos estudos que procuram aplicar, complementar ou refutar suas teses, sobretudo pela análise de potências médias, com trajetórias menos turbulentas. Sugiro “Nacionalism: five roads to modernity”, Liah Grenfeld, "Os Alemães", Norbert Elias, “Economic Origins of Ditactorship and Democracy”, de Daron Acemoglu e James Robinson e “Modelos de Democracia”, de Arent Lijphart.

Genocídio, Samantha Power
Este estudo inovador sobre o pior crime inventado pelo século XX é aula magna de política internacional e comparada, jornalismo de guerra e análise primorosa dos novos atores como organizações não-governamentais de direitos humanos, cadeias de mídia e complexas redes transnacionais que atuam em casos de invervenções. Para quem se interessar pelo tema, recomendo também "Activists Beyond Borders" de Margareth Keck e Kattryn Sikkink, e “The First Casualty”, de Phillip Knightley.

The Sino-Soviet Split, Lorenz Luthi.
Muitos dos livros acima abordam a Guerra Fria e suas crises, como a divisão da Alemanha, as guerras do Vietnã e da Coréia, o impasse nuclear em Cuba etc. Mas só este o faz da perspectiva das duas grandes potências comunistas, mostrando como as disputas por influência nos novos países surgidos da descolonização afro-asiática e divergências ideológicas sobre como lidar com os EUA e o Ocidente levaram à ruptura e uma quase-guerra entre ambas. Brilhante trabalho de pesquisa nos arquivos recém-abertos e belo exemplo dos novos trabalhos sobre história internacional, de ênfase mais cosmpolita que as tradicionais análises baseadas na política externa de um só país.

Latin America´s Cold War, Hal Brands.
Minha lista não estaria completa sem uma recomendação sobre a América Latina e este lançamento recente, que já resenhei no blog, é fruto de excelente pesquisa em vários arquivos nacionais, de um jovem autor que promete muito. Em linha semelhante, mas dedicado a outro continente, é “States and Power in Africa”, de Jeffrey Herbst, que mistura teoria de relações internacionais e política comparada para analisar a dinâmica diplomática dos novos Estados surgidos naquela região com a descolonização.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Lugar da Argentina



Na sexta-feira passada fui um dos palestrantes em um seminário no IESP sobre a conjuntura eleitoral na Argentina. Fiz o balanço da política externa de Cristina Kirchner. O governo argentino tem sido muito criticado pela falta de estratégias internacionais claras, e por um suposto isolamento nacional que se manifestaria na escassez de visitas de dignatários estrangeiros. Disse que concordava de maneira pontual com algumas dessas observações, mas que em minha análise a atual política externa argentina é claramente a refutação do modelo do “realismo periférico” de buscar relação privilegiada com os Estados Unidos, que havia vigorado durante os anos 1990 e um retorno relativo ao chamado “paradigma globalista” de 1945-1989, embora complicado pelas mudanças do poder do país.

As idéias centrais do paradigma globalista – perseguido nos governos de Perón, mas também nos de Frondizi e Alfonsín – eram a diversificação dos parceiros econômicos da Argentina e os esforços para obter maior autonomia nas relações internacionais. Isso continuou com Cristina Kirchner. A Argentina é membro dos dois G-20, preside o G-77 + China na ONU, participa de todas as iniciativas de integração regional na América Latina, tem uma ativa diplomacia de direitos humanos e estabeleceu uma grande parceria econômica com a China, em conjunto com interlocutores tradicionais como Brasil, União Européia, Chile e Estados Unidos.

Contudo, há fragilidades sérias na inserção econômica internacional da Argentina. Cerca de 2/3 de suas exportações são commodities, cujo preço oscila muito. As exportações industriais dependem do mercado brasileiro e das mudanças por vezes bruscas na política cambial do vizinho, com as conseqüentes querelas protecionistas que afetam setores como eletrodomésticos e calçados. A instabilidade do marco regulatório argentino torna o país pouco atraente para investimentos estrangeiros – recebeu menos de 10% do total sul-americano, abaixo não só do Brasil mas também do Chile e da Colômbia. A situação é particularmente séria na área de energia, onde a Argentina é cada vez mais dependente de importações, que estão diminuindo o superávit comercial do país.

A dívida externa foi renegociada no governo Néstor Kirchner e hoje a relação entre ela e o PIB é de apenas 40%, baixa para os padrões internacionais (é de aproximadamente 250% no Japão, 165% na Grécia e 100% nos EUA). Mas a Argentina continua a ser encarada com desconfiança pelos mercados financeiros, sem acordo com o Clube de Paris e com absoluta falta de credibilidade dos dados oficiais com relação à inflação e à taxa de pobreza. As relações com os Estados Unidos seguem ruins, com enfrentamentos retóricos desnecessários que muitas vezes parecem pretextos para tentar justificar o pouco espaço os temas argentinos têm na agenda de Washington.

A crise de 1998-2002 foi um golpe duro para a Argentina e só em 2005 a economia ultrapassou o tamanho que tinha antes do colapso. Mas a queda foi brusca. Hoje o país representa cerca de 10% do PIB da América do Sul, contra uma média histórica de 20% desde a década de 1970. O Brasil tem 50% e países menores como Chile, Colômbia e Peru prosperam rapidamente. Dito de outro modo, a Argentina precisa reinventar seu lugar no mundo, e na região, com base numa situação de forte declínio relativo não só à hegemonia brasileira mas também a ascensão de potências médias. Tarefa dura para país que por tanto tempo teve aspirações bastante fundadas de liderar o continente.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Sergio: os dilemas das intervenções da ONU



Na semana passada estive na UFF, a convite do centro acadêmico dos estudantes de Relações Internacionais, para debater o documentário “Sergio”, a respeito de Sergio Vieira de Mello, o brasileiro que mais se destacou na ONU, tendo servido como chefe do governo de transição em Timor Leste, Alto Comissário de Direitos Humanos e representante no Iraque, onde foi assassinado num atentado da Al-Qaeda, em 2003. O filme é uma boa adaptação da biografia escrita pela jornalista Samantha Power, ainda que eu avalie que ele se concentra excessivamente no último dia de vida do protagonista e pouco aborde seus anos cruciais nas missões de paz da antiga Iugoslávia. Centrei minha palestra em como sua trajetória representa os dilemas das intervenções militares humanitárias após a Guerra Fria.

Vieira de Mello ingressou na ONU em 1969, recém-formado em Filosofia pela Sorbonne, e passou toda a vida profissional na organização. Filho de diplomata, havia morado em vários países, sobretudo na Europa. Era parte da geração rebelde dos anos 60 e na França tinha participado intensamente dos protestos de maio de 1968, chegando até a ser preso e espancado pela polícia. Militava na extrema-esquerda e tinha opiniões fortemente contrárias ao colonialismo e às intervenções militares do Ocidente em Estados como o Vietnã. Nas suas primeiras duas décadas nas Nações Unidas, trabalhou sobretudo com a distribuição de ajuda humanitária a refugiados na Ásia e na África.

A partir dos anos finais da Guerra Fria, as missões de paz da ONU se multiplicaram em número e aprofundaram seu escopo. Deixaram de ser concentradas na manutenção de cessar-fogo entre Exércitos hostis e passaram a abranger tarefas cada vez mais intervencionistas, como a “imposição da paz” a grupos armados que não haviam aceitado um acordo, organização de ministérios, condução de políticas públicas e até a construção de Estados soberanos no Kosovo e no Timor Leste. Vieira de Mello foi um ator importante em várias dessas operações, tendo inclusive chefiado algumas.



Meu argumento é que tais mudanças foram mais problemáticas do que em geral consideramos, porque significam contradição de princípios fundadores da ONU, como a neutralidade e a imparcialidade. Como afirmei em entrevista recente, a organização é encarada por grupos como radicais islâmicos (mas não só por eles) como uma maneira encobrir interesses das potências ocidentais, ocultando disputas por recursos naturais sob o manto da defesa dos direitos humanos e da democracia. Países como o Brasil tem sido bastante refratários às doutrinas mais intervencionistas das Nações Unidas, como a “responsabilidade em proteger”.

Contudo, muitas pessoas acreditam que a ONU pode e deve ter papel mais ativo nos conflitos internacionais, intervindo em países que violam os direitos humanos de sua população e forçando-os – por meio de sanções econômicas ou força militar – a mudar de atitude. O próprio Vieira de Mello passou a defender essa postura, após suas decepções com o modelo clássico das operações de paz das Nações Unidas. Argumentei que tal posição com freqüência subestima o quanto o poder é coercitivo e agressivo, mesmo quando aplicado com as melhores intenções, e pode gerar resultados contrários aos esperados. Citei o poeta britânico P.B. Shelley: “Os bons querem poder, mas para enxugar lágrimas inúteis. / Os poderosos querem bondade: inútil para eles.”

Tais contradições da ONU e das intervenções humanitárias foram elevadas ao máximo com a decisão da organização em instalar-se no Iraque após a invasão dos Estados Unidos. A idéia era aproveitar ao máximo a possibilidade de ocupar algum espaço depois do fato consumado da guerra não-autorizada pelo Conselho de Segurança. Não era difícil prever que muitos grupos a considerariam como simplesmente um braço auxiliar dos americanos no país e a Al-Qaeda a atacou com força – o atentado que matou Vieira de Mello foi o pior contra a instituição, às vezes chamado de “o 11 de Setembro da ONU”. Mas não foi o último, como mostram os ataques no Afeganistão e Nigéria.