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No século XIX, a América Latina passou por guerras civis que opuseram liberais e conservadores em temas como as relações poder central/províncias e Estado/Igreja. Ao fim de cada conflito, os vencedores promulgavam nova constituição. No século XX, direita e esquerda se enfrentaram nas urnas e com freqüência o desafio representado pelas forças de mudança social era resolvido por golpes militares. Neste início de século XXI os confrontos políticos se dão na Venezuela, na Bolívia e no Equador em batalhas por novas constituições, opondo presidentes com amplo apoio popular às instituições de mediação política: parlamentos e partidos. A conseqüência são mandatários carismáticos que recorrem a instrumentos de democracia direta, como referendos, e passam por cima dos direitos das consideráveis minorias oposicionistas, que com freqüência chegam a 40%, 45% do eleitorado.
Chávez começou a falar sobre a necessidade de nova constituição para a Venezuela na campanha presidencial de 1998 e a carta magna foi promulgada em 1999. Agora o presidente propôs 69 mudanças. As principais propostas, resumidas e analisadas em ótimo especial da BBC: 1)Aumento do mandato presidencial para sete anos e ausência de limites para reeleições; 2) Possibilidade de governar com mais poderes em situações de emergência de um ano, renováveis pelo parlamento; 3) Forças Armadas passariam a ser responsáveis por segurança doméstica, mudariam de nome (incorporando o adjetivo "bolivarianas") e teriam por inimigas o "imperialismo"; 4) Jornada de trabalho reduzida de 8 para 6 horas diárias.
O essencial da agenda é a concentração de poderes nas mãos de Chávez, incluindo as ferramentas para politizar (ainda mais) as Forças Armadas. Tem havido muita resistência por parte da sociedade venezuelana, como a marcha de 100 mil opositores em Caracas, críticas ferrenhas de ex-chavistas - como antigos ministros da Defesa e procuradores-gerais da República - e a ascensão de um movimento estudantil bastante combativo, que tem se mantido desvinculado dos partidos tradicionais.
A reforma constitucional precisa ser aprovada pela população no referendo de domingo e as pesquisas de opinião estão confusas e indicam todos os resultados: vitória do governo, derrota, empate técnico. Ontem eu conversava com um amigo que voltou há poucos dias da Venezuela, cobrindo o país para um grande jornal, e compartilhamos a preocupação de que o resultado - seja ele qual for - será por pouca margem, e dificilmente será aceito pelo lado perdedor.
Na Bolívia, a demanda por nova constituição é reivindicação dos movimentos sociais desde os anos 90, e foi promessa de campanha de Evo Morales. O presidente fez a concessão à oposição de aceitar a necessidade de 2/3 dos votos para aprovar a carta (o normal nesses casos é 50%+1), mas não esperava que fosse encontrar tanta resistência. O texto deveria ter sido votado em agosto. Há poucos dias houve aprovação irregular, num quartel de Sucre, sem presença da oposição e com muita violência de rua, resultando em centenas de feridos. De nada adiantou para o governo, porque a constituição precisa ser votada de novo, artigo a artigo, e submetida a referendo popular.
O projeto boliviano também prevê a possibilidade de reeleição ilimitada ao presidente - algo inusitado num país em que nos últimos 10 anos, nenhum completou o mandato. Isso não serve de consolo para os departamentos da Media Luna, que se opõem ao governo Morales. Pesam fatores econômicos (são mais ricos) e étnicos (são brancos). As disputas pelo controle dos lucros oriundos da exploração dos hidrocarbonetos são o cerne da questão - quanto caberá ao poder central, aos departamentos, aos municípios. Trata-se de profunda clivagem regional e étnica, comparável àquelas enfrentadas por muitos países africanos. A constituinte discute um pouco de tudo, parece o Brasil em 1988 - resolveram até atacar a FIFA.
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No Equador, o modelo da reforma é próximo ao da Venezuela de Chávez. Correa foi eleito presidente sem ter nenhum deputado no Congresso. Propôs um referendo para criar uma Assembléia Constituinte, que ganhou com 80% dos votos. No novo órgão, o governo tem 80 dos 130 parlamentares e 8 meses para apresentar a nova carta. Ontem a Assembléia declarou o fechamento do Congresso oposicionista e também há muitos conflitos com a Suprema Corte (nomeada pelo Congresso). A província petrolífera de Orellana está em estado de emergência porque manifestantes ocuparam refinarias em protestos contra o desemprego.
Nos três países conheci pessoas muito envolvidas com a atual onda de mobilização política e muito entusiasmadas ao discutir - às vezes, choravam de tanta emoção. A política está nas ruas. Caso dos camelôs venezuelanos, que oferecem exemplares baratíssimos da constituição e das novas leis (foto). Ou o modo como os bolivianos incorporaram o debate constitucional ao seu cotidiano, até nas associações de moradores. É uma experiência muito rica para ser reduzida à compulsão de alguns presidentes de agir como vilões de Shakespeare, sempre em busca de poder. Meu reino por uma reforma constitucional.
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Há muitas maneiras de se organizar a democracia e em países de instituições frágeis, como na América Andina, é praticamente inevitável a presença de um Poder Executivo hipertrofiado com relação ao Legislativo e ao Judiciário. Contudo, me parece que os andinos poderiam aprender muito com a experiência de outras regiões, buscando nelas inspiração para criar instrumentos de equilíbrio, negociação, consenso e continuidade nas políticas públicas. Funcionalismo público estável, com acesso por concurso, como existe no Brasil, faria bela diferença para amenizar crises, sobretudo no caso de juízes e promotores. Iniciativas africanas de resolução de conflitos étnicos, com a realização das grandes "conferências nacionais" (a África do Sul é o exemplo mais famoso) também poderiam ser de grande valia.