sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Meu Reino por uma Reforma Constitucional


No século XIX, a América Latina passou por guerras civis que opuseram liberais e conservadores em temas como as relações poder central/províncias e Estado/Igreja. Ao fim de cada conflito, os vencedores promulgavam nova constituição. No século XX, direita e esquerda se enfrentaram nas urnas e com freqüência o desafio representado pelas forças de mudança social era resolvido por golpes militares. Neste início de século XXI os confrontos políticos se dão na Venezuela, na Bolívia e no Equador em batalhas por novas constituições, opondo presidentes com amplo apoio popular às instituições de mediação política: parlamentos e partidos. A conseqüência são mandatários carismáticos que recorrem a instrumentos de democracia direta, como referendos, e passam por cima dos direitos das consideráveis minorias oposicionistas, que com freqüência chegam a 40%, 45% do eleitorado.

Chávez começou a falar sobre a necessidade de nova constituição para a Venezuela na campanha presidencial de 1998 e a carta magna foi promulgada em 1999. Agora o presidente propôs 69 mudanças. As principais propostas, resumidas e analisadas em ótimo especial da BBC: 1)Aumento do mandato presidencial para sete anos e ausência de limites para reeleições; 2) Possibilidade de governar com mais poderes em situações de emergência de um ano, renováveis pelo parlamento; 3) Forças Armadas passariam a ser responsáveis por segurança doméstica, mudariam de nome (incorporando o adjetivo "bolivarianas") e teriam por inimigas o "imperialismo"; 4) Jornada de trabalho reduzida de 8 para 6 horas diárias.

O essencial da agenda é a concentração de poderes nas mãos de Chávez, incluindo as ferramentas para politizar (ainda mais) as Forças Armadas. Tem havido muita resistência por parte da sociedade venezuelana, como a marcha de 100 mil opositores em Caracas, críticas ferrenhas de ex-chavistas - como antigos ministros da Defesa e procuradores-gerais da República - e a ascensão de um movimento estudantil bastante combativo, que tem se mantido desvinculado dos partidos tradicionais.

A reforma constitucional precisa ser aprovada pela população no referendo de domingo e as pesquisas de opinião estão confusas e indicam todos os resultados: vitória do governo, derrota, empate técnico. Ontem eu conversava com um amigo que voltou há poucos dias da Venezuela, cobrindo o país para um grande jornal, e compartilhamos a preocupação de que o resultado - seja ele qual for - será por pouca margem, e dificilmente será aceito pelo lado perdedor.

Na Bolívia, a demanda por nova constituição é reivindicação dos movimentos sociais desde os anos 90, e foi promessa de campanha de Evo Morales. O presidente fez a concessão à oposição de aceitar a necessidade de 2/3 dos votos para aprovar a carta (o normal nesses casos é 50%+1), mas não esperava que fosse encontrar tanta resistência. O texto deveria ter sido votado em agosto. Há poucos dias houve aprovação irregular, num quartel de Sucre, sem presença da oposição e com muita violência de rua, resultando em centenas de feridos. De nada adiantou para o governo, porque a constituição precisa ser votada de novo, artigo a artigo, e submetida a referendo popular.

O projeto boliviano também prevê a possibilidade de reeleição ilimitada ao presidente - algo inusitado num país em que nos últimos 10 anos, nenhum completou o mandato. Isso não serve de consolo para os departamentos da Media Luna, que se opõem ao governo Morales. Pesam fatores econômicos (são mais ricos) e étnicos (são brancos). As disputas pelo controle dos lucros oriundos da exploração dos hidrocarbonetos são o cerne da questão - quanto caberá ao poder central, aos departamentos, aos municípios. Trata-se de profunda clivagem regional e étnica, comparável àquelas enfrentadas por muitos países africanos. A constituinte discute um pouco de tudo, parece o Brasil em 1988 - resolveram até atacar a FIFA.


No Equador, o modelo da reforma é próximo ao da Venezuela de Chávez. Correa foi eleito presidente sem ter nenhum deputado no Congresso. Propôs um referendo para criar uma Assembléia Constituinte, que ganhou com 80% dos votos. No novo órgão, o governo tem 80 dos 130 parlamentares e 8 meses para apresentar a nova carta. Ontem a Assembléia declarou o fechamento do Congresso oposicionista e também há muitos conflitos com a Suprema Corte (nomeada pelo Congresso). A província petrolífera de Orellana está em estado de emergência porque manifestantes ocuparam refinarias em protestos contra o desemprego.

Nos três países conheci pessoas muito envolvidas com a atual onda de mobilização política e muito entusiasmadas ao discutir - às vezes, choravam de tanta emoção. A política está nas ruas. Caso dos camelôs venezuelanos, que oferecem exemplares baratíssimos da constituição e das novas leis (foto). Ou o modo como os bolivianos incorporaram o debate constitucional ao seu cotidiano, até nas associações de moradores. É uma experiência muito rica para ser reduzida à compulsão de alguns presidentes de agir como vilões de Shakespeare, sempre em busca de poder. Meu reino por uma reforma constitucional.



Há muitas maneiras de se organizar a democracia e em países de instituições frágeis, como na América Andina, é praticamente inevitável a presença de um Poder Executivo hipertrofiado com relação ao Legislativo e ao Judiciário. Contudo, me parece que os andinos poderiam aprender muito com a experiência de outras regiões, buscando nelas inspiração para criar instrumentos de equilíbrio, negociação, consenso e continuidade nas políticas públicas. Funcionalismo público estável, com acesso por concurso, como existe no Brasil, faria bela diferença para amenizar crises, sobretudo no caso de juízes e promotores. Iniciativas africanas de resolução de conflitos étnicos, com a realização das grandes "conferências nacionais" (a África do Sul é o exemplo mais famoso) também poderiam ser de grande valia.

8 comentários:

IgorTB disse...

A democracia andina é tão abundante que transborda pelas fronteiras, atravessando de um país para o outro: Fechamento de televisões e de congressos, ameaças de luta armada, textos constitucionais aprovados em quartéis....

E aqui, ainda temos de aturar o Samuca...só reproduzindo minha mãe: Deus é mais!

Maurício Santoro disse...

Em termos, Igor. A participação popular na política andina é muito rica e é impressionante como as pessoas pobres estão envolvidas nas discussões e conversam com fluência sobre os temas públicos - algo que, aliás, também ocorre em Cuba, que é claramente uma ditadura. As questões de desigualdade racial também estão sendo melhor trabalhadas lá do que aqui.

O problema é que nos países andinos essa participação da maioria está resultando na violação de importantes direitos de minorias.

Acredito que Andinos e Cono Sureños têm muito o que aprender uns com os outros, pois seus problemas e virtudes se complementam.

Abraços

Alessandro Ferreira disse...

Chavez é ditador, ainda vai acabar enforcado na principal avenida de Caracas - torço muito por isso (e pelo Mengão, sempre!), a merda maior é que o imbecil vai deixar o país mergulhado na guerra civil.

Correa e o índio de araque querem ir pelo mesmo caminho, ou seja, são pretendentes a terminar seus dias do mesmo jeito.

Participação popular? Claro, claro, muito bonito... mas ouse discordar do coronel. A única opção é sempre dizer sim - ou você não passa de um traidor, verme neoliberal, inimigo da "revolução" e do "povo".

IgorTB disse...

Sim, Mau, concordo com vc de que a participação popular é mais proeminente, mas quais as bases que estas pessoas têm para formar sua opinião, sem uma imprensa livre? Na verdade, sem a liberdade (seja de qual segmento for) de se poder expressar uma opinião contrária a do presidente e não sofrer represálias por conta disso?

Vc deve ter visto a cena do Chávez no palanque afirmando que se os EUA derem apoio aos partidários do não, que ele não venderia nenhuma gota de petróleo para eles. E ele vbai começar a fazer o que com este petróleo? Beber? Encher uma piscina e se banhar diariamente sob a luz da lua?

O conceito de democracia é que anda muito esquisito na América do Sul. Ser democrático não pode significar usar plebiscitos para se atropelar o Congresso, ou melhor, os representantes da oposição sentados no Congresso.

Ando descrente. Embora tb acredite que os países da Am. do Sul têm muito a aprender uns com os outros...resta saber quem vai ensinar quem!

Abração

Anônimo disse...

Maurício,

acho que o resultado foi melhor do que eu pensava. Chávez perdeu o referendo, e aceitou o resultado (prefiro não imaginar o que aconteceria se ele tivesse ganhado essa eleição).

Quem sabe Chávez agora aprende como funciona uma democracia institucionalizada, e tenta aprovar uma emenda constitucional por vez, ao invés de procurar soluções do estilo "silver bullet".

Maurício Santoro disse...

Salve, Igor.

Apesar do fechamento da RCTV (e dos ataques do presidente durante a campanha do referendo), a imprensa venezuelana continua bastante crítica a Chávez. Na própria avaliação da Repórteres Sem Fronteiras, a liberdade de imprensa na Venezuela fica à frente daquela que existe no México, no Peru e mesmo na Índia.

Na Bolívia e no Equador, a situação é bem melhor, em especial no que diz respeito ao movimento de rádios comunitárias, que inclusive foi fundamental na queda do Gutierres.

Olá, Bruno.

Concordo, a vitória do "não" foi o melhor resultado, torço apenas para que Chávez aceite o resultado de modo tranqüilo - algo improvável, dado seu histórico. Meu palpite é que ele irá inventar algum outro referendo, proposta, votação, seja lá o que for.

Abraços

Luiz Pinto disse...

Parabéns pelo post Maurício. Seria correto afirmar que entre essas instituições de mediação, às quais os governos se opoem, estariam também os meios de comunicação? O que você acha?

Maurício Santoro disse...

Salve, Luiz.

Teoricamente sim, mas na prática sabemos que muitas vezes os meios de comunicação agem na América Latina de maneira anti-ética, manipulando informações e sendo parte do problema, e não da solução...

Abraços