quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Charles Taylor, lições para a África e perguntas ao Brasil



Se alguém por aqui assistiu ao filme "O Senhor das Armas" deve lembrar do personagem André Baptiste, o tirano africano que era um dos melhores clientes do traficante de armas interpretado por Nicholas Cage e que funcionava como uma espécie de espelho no qual o protagonista via refletidos seus piores defeitos. Numa cena, após matar um soldado que lhe havia irritado, Baptiste lamenta: "A juventude de hoje é muito desregrada. Para mim, a culpa é da MTV."

Baptiste é inspirado no ex-ditador da Libéria, Charles Taylor. Durante os anos 90 ele comandou um grupo rebelde contra outro ditador, Samuel Doe. Ambos os lados cometeram atrocidades no conflito e em 1997 concordaram em resolver a disputa por eleições. Taylor concorreu com o slogan mais infame de todos os tempos: "Ele matou minha mãe, matou meu pai, mas votarei nele." Na realidade, o candidato ameaçava retomar a guerra se perdesse. Ganhou.

Taylor rapinou a Libéria como presidente, entre 1997 e 2003, e não satisfeito resolveu intervir na guerra civil do país vizinho, Serra Leoa, apoiando duas facções rebeldes com armas, dinheiro e soldados, em troca dos diamantes do país - o filme "Diamante de Sangue" é um retrato ficcional melodramático, mas razoavelmente preciso, daquele conflito.

Até aí temos os clichês habituais sobre a África. Mas o jogo mudou no contiente: a guerra civil em Serra Leoa acabou com uma bem-sucedida intervenção dos britânicos e das Nações Unidas e foi formado um interassante tribunal misto, com juízes estrangeiros e locais, para julgar as violações de direitos humanos no conflito. Por ordem dessa instituição, Charles Taylor - já fora do poder na Libéria - foi encarcerado.

Ele se tornou o primeiro ditador africano a estar em julgamento por seus crimes. O processo começara no ano passado, mas fora interrompido, e recomeçou nesta semana. Está sendo marcado por depoimentos emocionantes, como não poderia deixar de ser numa guerra que envolveu mutilações de civis, recrutamento forçado de crianças-soldados e trabalho escravo em minas de diamantes.

Os governos africanos sempre foram muito relutantes em aceitar intervenções humanitárias, mas a maré começou a virar após o genocídio em Ruanda, em 1994. O tribunal de Serra Leoa confirma a tendência e é significativo que a atual presidenta da Libéria, Ellen Johnson-Sirleaf, tenha sido das pessoas que mais colaboraram para a prisão de seu antecessor, que estava exilado na Nigéria. Johnson-Sirleaf é a primeira mulher a ser eleita para chefiar um Estado na África, e trata-se de respeitada economista educada em Harvard, com longo histórico de millitância pró-democracia.

A África está mudando, mas será que o Brasil percebe isso? A política externa brasileira para o continente tem sido marcada por gafes inacreditáveis no que diz respeito à democracia e aos direitos humanos. Lula visitou e abraçou alguns dos piores tiranos da região, como os ditadores do Gabão e de Burkina Faso (que também interveio em Serra Leoa, aliás junto com Kadafi, da Líbia), com freqüência fazendo piadas sobre o longo tempo que eles ocupam o poder. Fora a apatia brasileira diante do genocído de Darfur, em contraste com as posições firmes defendidas por outros países latino-americanos, como a Argentina.

O Brasil poderia - e deveria, a meu ver - ter uma agenda diferente, procurando destacar a importância de líderanças renovadoras como as de Johnson-Sirleaf.

E aqui temos outro ponto delicado. Em todo o planeta, autoridades que violaram direitos humanos em ditaduras e guerras estão sendo julgadas e presas. Isso ocorre na América do Sul (Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Uruguai), na África (Serra Leoa, Libéria, Ruanda), na Europa (Ex-Iugoslávia). Mesmo Estados que proclamaram anistias passaram por amplas comissões de verdade e reconciliação, ajudando na tarefa de passar a limpo um passado difícil - caso da África do Sul, da Guatemala, de El Salvador.

O Brasil optou pela impunidade e pelo silêncio, ficando na incômoda companhia das piores ditaduras da Ásia e do Oriente Médio, as únicas que se comportam assim. Os contrangimentos internacionais a que o Brasil está submetido ficam claros nos processos que juízes europeus, como da Espanha e da Itália, movem contra militares brasileiros por conta de seqüestros, torturas e assassinatos a nacionais daqueles países.

As leis brasileiras concederam anistia aos crimes da época e proíbem a extradição de cidadãos nacionais. No entanto, os processos europeus contribuem para colocar em evidência as posições vergonhosas assumidas pelo Brasil. O mundo mudou. Soberania não é mais um escudo que se possa usar para esconder erros e crimes. Seu novo sentido é o conjunto das obrigações que garantem a vida civilizada, assumidas perante seus próprios cidadãos e a sociedade internacional. Isso vale em Monróvia, Freetown, Kigali, Lagos e até em Brasília.

3 comentários:

IcaroReverso disse...

Vez ou outra algum colega comenta ter visto um torturador da época da Ditadura. Um colega que viveu o período disse ter reencontrado um trabalhando como dentista! O PT, como partido surgido, de certo modo, daquele contexto, deveria ter uma postura mais coerente a sua origem, ser anti-tortura programático. // Quanto a isso dos tribunais internacionais, acho bem interessante, gostaria de entender um pouco mais...
Obrigado pelas informações de sempre!

Anônimo disse...

Maurício...eu sempre acompanho seu blog e essa é a primeira vez que comento. Realmente o silêncio reacionário que o Brasil assume é vergonhoso e infâme. Necessitamos de coragem pra enfrentar as páginas trágicas de nossa História recente sem revanchismo mas com firmeza e dignidade. Realmente os militares não podem ficar como quem tivessem um cheque em branco para suas ações. Creio que crimes contra a humanidade ou crimes de tortura são imprescrítiveis, logo precisamos repassar muita coisa a limpo. Mudando o foco mas sem sair da estrada, o que vc acha do tratamento internacional em relação ao Milosevic e o Saddam? A justiça internacional e o tribunal penal foram parciais nestes casos?

Valeu pelas informações..vc pra mim é o grande nome da jovem intelectualidade mundial...
abraços

Maurício Santoro disse...

Salve, Ícaro.

Eu mesmo conheci um ex-torturador, com nome no Brasil Nunca Mais e tudo, que vive aposentado no Rio em meio a litros de uísque, bebendo para tentar esquecer.

A revista do IBASE, a Democracia Viva, publicou no número deste mês uma entrevista muito boa com o Secretário dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que foi preso e torturado na época da ditadura. Ele é uma das vozes mais combativas no governo com relação ao tema, embora o que defenda seja a questão da memória, do direito à informação.

Contudo, me parece que a posição do governo (em contraste com a do PT) é de não lidar com o tema para não entrar em conflito com as Forças Armadas.

O problema é que o "tempo do mundo" é outro, e o isolamento brasileiro já se tornou constrangedor para o país.

Salve, Wergeld.

Obrigado pelos adjetivos hiberbólicos, esses eu nunca tinha ouvido.

Sobre sua pergunta, acredito que os julgamentos de Saddam e Milosevic foram pouco mais do que processos jurídicos para legitimar decisões políticas que já haviam sido tomadas de antemão. Vale apenas atentar para o fato de que o julgamento do ex-ditador iraquiano foi uma iniciativa dos EUA, ao passo que o processo contra Milosevic se deu com base em negociações multilaterais.

Pensando no caso brasileiro, acho que o mais importante é a consolidação do indivíduo como sujeito de direito internacional e a possibilidade que possamos apelar contra nosso Estado em tribunais como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso sejamos ameaçados por ele.

Voltarei a escrever sobre o tema.

Abraços