quarta-feira, 13 de agosto de 2008

A Nova Classe Média



"Se vocês ouvirem tiros, saiam correndo", me disse o traficante. Ponderei por alguns instantes, consultei os colegas e decidimos que, diante de um conselho tão bom, o melhor era antecipar a dica, em respeito ao interlocutor.

A ONG em que trabalho conduz uma grande pesquisa sobre juventude, em seis países da América do Sul. No primeiro semestre realizamos grupos focais com grupos juvenis e atualmente estamos na etapa do levantamento quantitativo. Contratamos uma empresa para aplicar cerca de 15 mil questionários e há alguns dias acompanhei uma de suas equipes, na periferia do Rio de Janeiro. Fomos fazer o pré-teste e avaliar que perguntas funcionam e quais dão problemas. Acabou sendo uma experiência imediata da ascensão da nova classe média - e das dificuldades ainda dramáticas que estão em seu caminho.

Num pré-teste como o que participei, deve-se realizar um determinado número de entrevistas, divididas por faixa etária e nível de escolaridade de modo a preencher as cotas necessárias. Algo como, "tantas mulheres de até 30 anos, com nível superior" ou "tantos homens idosos, com instrução fundamental". Os entrevistadores decidiram começar pelos jovens que possuíam até 8a série: "Hoje em dia quase todos nessa faixa etária têm ensino médio", me disse um dos funcionários, em tom de lamentação, porque o fato dificultava seu trabalho: "Precisamos ir nas favelas para encontrar jovens que tenham apenas escolaridade fundamental".

Assim, fomos a uma pequena comunidade, próximo à estação do metrô. De fato, achamos pessoas que correspondiam às características que buscávamos. Mas quando realizávamos a primeira entrevista, um grupo de homens armados até os dentes passou por nós, muito tensos, e nos deram o conselho que abre este texto. Ao sairmos da favela, nos deparamos com poças de sangue na calçada e os moradores nos informaram que tinha havido uma batalha entre traficantes rivais durante a madrugada. Nos afastamos um ou dois quarteirões quando ouvimos tiros. Mas aí já estávamos longe.

O resto daquela manhã foi dedicado às ruas vizinhas, que são uma representação bastante típica da nova classe média que já se tornou 52% da população brasileira. Com renda entre R$1.000 e R$4.500, são pessoas que já superaram a barreira da pobreza e da escassez. Nas entrevistas que realizamos, ficou muito claro como a melhoria nos ganhos econômicos está se traduzindo num padrão de vida e de consumo mais elevado. Quase todos com quem conversávamos contavam das obras que faziam em suas casas, ou dos eletrodomésticos que estavam comprando. Com freqüência a estratégia profissional mistura um emprego fixo, de carteira assinada, com um trabalho no setor informal.

Uma grande parcela da população que melhora de vida, ainda que exposta de maneira fortíssima à violência, e com menos escolaridade do que a classe média tradicional.

Às vezes escuto amigos - classe média alta, zona sul do Rio de Janeiro, como eu mesmo - céticos diante dos novos emergentes. Julgam que mil reais por mês é uma renda muito baixa, que não seria suficiente para escapar da pobreza. Cito o economista Marcelo Neri, da FGV, que coordenou a pesquisa sobre a nova classe média: "Para aqueles que acham que a renda da classe C é baixa: acordem, pois ela é a imagem mais próxima da sociedade brasileira. A elite que se julga classe média e acha feio o que vê, procure as palavras Made in USA atrás de seu espelho."

6 comentários:

Julia Sant'Anna disse...

Fala, Maurício! Essa é a nova classe média. Que trabalha alucinadamente, tem telefone, celular, TV de plasma e que talvez até consiga pagar um plano baixo da Unimed. Num país de tantos pobres, ser classe média não é grandes coisas, né? Não vejo muito o que comemorar. Mas talvez esteja num dia um pouco pessista.
Beijo, amigo!

Maurício Santoro disse...

Ou talvez seja eu que esteja cada vez mais governista... Realmente acredito que o país está mudando muito, e para melhor. O fato de que pela primeira vez a maioria da população é de classe média já é um grande avanço, ainda que os emergentes não se encaixem no modelo sonhado com base na experiência européia.

beijo

Patricio Iglesias disse...

A experiéncia da Argentina (ou ao menos da experiéncia que temos os argentinos no inconsciente colectivo) e bem trágica. "Fuimos ricos, casi no había pobres, no trabajaba el que no quería, y ahora... ¡Es todo un desastre".
O que me chama a atençäo é que a maioria dos argentinos, se foram preguntados por quál classe social sintem pertenecer, diriam "clase media", mas tenho dúvidas de que no económico seja assim. Muita gente tradicionalmente da classe média agora seria da alta, e ainda mais da baixa.
Saludos!

Maurício Santoro disse...

É verdade, meu caro. Inclusive, aprendi com a Julia que as próprias políticas sociais da Argentina são implementadas de modo diferente porque as pessoas pobres em seu país são muito relutantes em aceitar condições (como manter os filhos na escola ou lhes dar vacinas) para receber dinheiro do governo.

Acredito que isso se deve à forte classe média que existiu na Argentina e que hoje persiste com muitas dificuldades. Apesar dos problemas econômicos, os valores culturais continuam.

Abraços

Unknown disse...

Oi Maurício, parabéns pelo texto. Realmente, o surgimento de uma nova faixa entre a classe baixa e a média é algo crescente. Hoje em dia os trabalhadores conseguem fazer milagres com o salário recebido, ainda mais com as facilidades do mercado - como financiamentos e empréstimos com juros baixos, em virtude da competição de mercado.
Agora, fico estarrecida ao ver a situação da violência no país. Estamos camuflando a real condição da segurança pública, nos acostumando a "palavras de ordem" dos verdadeiros generais das favelas - reais representantes do Poder NÃO-Estatal existente, que efetivamente domina o local.
É chocante tal situação e muito lamentável. Será que há volta? Ainda há saída para essa problemática?
Vc entende que a proliferação da violência praticamente "selvagem" em países de 3º mundo e até nos ditos "emergentes" - como o Brasil - se deve apenas à desigualdade na distribuição de rendas e também de oportunidades ou há que se levar em conta o fator cultural?
É um problema de caráter?
Beijos :-)
Ana Paula

Maurício Santoro disse...

Olá, Ana.

A questão do crédito pode vir a se tornar um problema sério (vide EUA), muito desse consumo da nova classe média se dá via endividamento.

Sou bastante cético à influências culturais na violência, acredito que o fato institucional, a qualidade das políticas públicas pesa muito mais.

Se olharmos o Brasil atual, há experiências interessantes em alguns estados, como Minas Gerais, e exemplos bem-sucedidos em países vizinhos, como as ações municipais em Bogotá e Medellín, na Colômbia.

Mas para ler sobre isso te recomendo o blog "O Proscênio", na lista aí do lado, escrito por um amigo que entende muito do assunto, e viveu na pele as experiências.

Abraços