segunda-feira, 12 de outubro de 2009

El Alto: a cidade rebelde



Na semana passada chegou um pacote de livros sobre urbanismo que encomendei pela Amazon, e que marca o início de uma pesquisa sobre cidade e democracia na América do Sul. Quero estudar a relação de movimentos sociais e mobilizações cívicas com o espaço urbano do continente. Ainda não defini com precisão os casos que analisarei, mas a princípio penso em Buenos Aires, Bogotá, Rio de Janeiro e La Paz/El Alto. Esta última cidade é, justamente, o tema de “El Alto: rebel city”, da antropóloga Sian Lazar.

Na resenha de outro livro sobre a Bolívia, mencionei a importância crucial da descentralização política para a ascensão de movimentos sociais nos países andinos, pois foi pela participação nas administrações municipais que formaram ativistas e líderes. El Alto é um caso extremo. A cidade se expandiu muito nos últimos 20 anos e boa parte dos moradores é de origem rural e indígena, e mantém fortes vínculos com seus vilarejos natais. A proximidade de La Paz – não mais do que 20 minutos de van, num horário sem trânsito – deu às mobilizações locais o poder de influir diretamente na vida política nacional, e mesmo de isolar a capital (localizada na cratera de um vulcão extinto, a foto abaixo dá o panorama visto de El Alto), uma vez que o aeroporto está em terras alteñas.



O potencial se manifestou em diversas ocasiões, em particular no período que vai da “guerra do gás” (2003) à posse de Evo Morales na presidência (2005), quando El Alto se tornou o fiel da frágil balança que terminou por derrubar os presidentes Sanchéz de Lozada e Carlos Mesa. A repressão policial foi violentíssima e os alteños me mostraram com tristeza e orgulho cívico os locais dos principais enfrentamentos. No entanto, foram apenas os estágios mais recentes da longa mobilização que passou pelas lutas por asfaltamento de ruas, construção de infraestrutura urbana e mesmo pela curiosa relação do Estado com os movimentos sociais para a gestão de certos aspectos da vida da cidade, como o gigantesco mercado popular.



Em minha visita a El Alto, me havia chamado a atenção a enorme preponderância das mulheres no comércio local. Mais de 90% das barracas são comandadas por elas, e acreditei que seria porque os homens haviam migrado para Argentina, Brasil ou então trabalhavam em La Paz. O excelente estudo de Sian Lazar me ensinou que na realidade é uma tradição que remonta à era colonial, pela qual as mulheres assumem as funções de intermediárias entre a produção camponesa/indígena e o mercado citadino. Ela compara a própria cidade de El Alto com esse papel feminino habitual, e examina a liderança política dos alteños por sua perícia em ligar a capital ao mundo dos povos originários, num contexto em que esse universo cultural se tornava cada vez mais influente nos jogos de poder bolivianos.

Contudo, há um ponto que ela não abordou e que me fascinou em meu trabalho na cidade. Vi um nítido contraste geracional entre as mulheres adultas, vestidas à moda indígena (pollera e chápeu coco) e seus filhos crianças e adolescentes, que trajam camisas de times de futebol ou bandas de rock, com bonés. No mercado popular, circulam CDs e DVDs piratas dos produtos da indústria cultural global, de Harry Potter a Britney Spears. Ao mesmo tempo, esses rapazes e moças – que entrevistei para a pesquisa sobre juventude sul-americana – se orgulham da ascendência indígena e escrevem canções em aymara e quéchua. Mas no ritmo de hip hop, numa fusão artística fascinante, e sempre em movimento. A foto abaixo mostra um centro cultural, a “Casa de Jovens” - significado do letreiro em aymara.



Um dos rapazes que entrevistei compôs uma música sobre a sensação de se sentir um alienígena ao caminhar no Passeio El Prado, a avenida elegante do centro de La Paz. Por coincidência, terminei aquele dia por lá, em busca de livros sobre história boliviana. Para os padrões da classe média brasileira, é uma vizinhança comum, sem mais destaques. Pedi um sorvete e pensei na vida que passava apressada, indo e vindo pelas ruas da cidade.

11 comentários:

Anônimo disse...

Maurício, me amarro nos trabalhos do Manuel Castells da década de 70, você deve conhecer... enfim. Abraço grande, Daniel Chaves

Maurício Santoro disse...

Salve, Daniel.

Conheço só os trabalhos da fase liberal dele, nos anos 90, como aquela série sobre a Sociedade de Rede. Mas tenho vontade de ler os trabalhos do Castells sobre o urbanismo espanhol, em especial Barcelona.

Abraços

Anônimo disse...

Era um vez uma família que pensou em morar em La Paz. Pois é, vivemos um tempinho lá, uma longa história... foi uma surpreza decobrir como eramos ignorantes sobre o que está tão perto; enfim, lembro bem dos jovens indígenas vestidos como a classe média e passando alguns metros outro grupo indígena de jovens sapateiros buscando clientes numa hora impossível, eu odiei tudo. Os estremos de pobreza e riqueza descarados do país e a assimilação. Hoje já me toca à memória filtrar isso e transformar numa imagem pitoresca...Graças a Deus.
Acho que para saber como a coisa toda resultará basta olhar para Tijuana.
De todos modos seu trabalho parece fascinante espero que siga comentando sobre ele. Abraços

Maurício Santoro disse...

Oi, Rosa.

A minha equipe de pesquisas teve muitos problemas de saúde por causa da altitude mas eu estava tão bem disposto que rolou a piada de que eu devia ter nascido na Bolívia, e depois contrabandeado ao Brasil.

Os vizinhos andinos (e platinos) são sempre especiais para mim. A reflexão sobre eles segue.

Abraços

Glaucia Mara disse...

Nao sou especialista em Urbanismo, mas se precisar de qualquer coisa aqui de Barcelona, que nao possa encontrar por ai, e só avisar. Seria um prazer poder ajudar.

Maurício Santoro disse...

Oi, Glaucia.

Cuidado com a oferta, pois eu estou justamente lendo sobre sua cidade, e adorando a leitura!

Estive por aí em 2002 e gostei de tudo.

Abraços

carlos disse...

salve, santoro,

parabéns pelo post. me lembrei de vários livros e autores de língua espanhola de nuestra america.

"lanças coloradas" de um venezuelano dos anos 70, a monumental série do peruano manuel scorza, o vargas llosa, o sr presidente do guatemalteco miguel asturias e tantos outros.

e da bolívia? desconheço, amargamente, sua literatura. que coisa? o professor, gentilmente, poderia indicar?

saudações

Maurício Santoro disse...

Salve, Carlos.

Infelizmente, não conheço a literatura de ficção da Bolívia. Nenhum escritor do país alcançou fama internacional.

O que conheço é a ótima literatura de ciências sociais de lá: Xavier Albó, Silvia Rivera, René Mayora, Alvaro Garcia Linera etc.

Abraços

Unknown disse...

Xará seu blog é uma maravilha. Me faz muito bem ler o que vc escreve. Mais uma vez parabéns pelo trabalho. Estou pensando em visitar a Bolívia em Janeiro do próximo ano, e venho ouvindo boas coisas sobre El Alto, seu post agora me convenceu de vez, principalmente pela questão da Juventude. Um grande abraço! Paz!

Maurício Santoro disse...

Legal, xará. Fique em contato e vamos trocando idéias.

Abraços

Zéninguém disse...

e ae mauricio...

eu to começando a pesquisar sobre o movimento indianista na bolívia, e acho bem interessante todo o contexto que descreveu...se quiser trocar uma ideia sobre tamo ae...
inclusive se vc for pra lá brevemente eu gostaria de pedir alguns favores...abraço...! yan