quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Elogiemos os Homens Ilustres



Nos últimos dias, mergulhei em duas obras de arte que refletem sobre a extrema pobreza nos Estados Unidos, na Depressão da década de 1930 e na crise atual. “Elogiemos os Homens Ilustres” é uma reportagem clássica sobre agricultores em dificuldades no Alabama. “O Solista”, adaptação para o cinema da história real da amizade entre um jornalista e um músico sem-teto em Los Angeles.

Em 1936 a revista Fortune encarregou o repórter James Agee de seguir para o sul dos EUA e passar algumas semanas com as famílias que cultivavam o algodão e enfrentavam com especial severidade os efeitos da crise econômica. Ele levou junto o fotógrafo Walker Evans, que documentou a jornada em excelentes imagens. A reportagem nunca foi publicada, mas serviu de base para um livro no qual Agee relatou a experiência, numa análise social que mergulhou bastante fundo naquela realidade.



Agee misturou o senso de justiça da geração do New Deal com a inventividade formal dos escritores modernistas que ele tanto admirava, seu livro se parece muito com a obra de James Joyce ou Alfred Doblin (“Berlim Alexanderplatz”). Em certo sentido, ele foi um precursor dos beats e do Novo Jornalismo da década de 1960, e não por acaso seu livro demorou muito a ser reconhecido, para depois virar objeto de culto pela vanguarda literária americana. Não é uma obra fácil ou agradável de ser lida, mas impressiona o retrato da miséria pintado por Agee, com um tipo de falta de esperança e escassez de oportunidades que em geral só esperamos encontrar em narrativas sobre países subdesenvolvidos.

O jornalista também estava à frente do seu tempo no que diz respeito ao combate ao racismo. É significativo que a Fortune o tenha mandado expressamente acompanhar o cotidiano dos trabalhadores brancos, embora o plantio e a colheita do algodão fosse tradicionalmente realizada por negros, ainda mais no Alabama! Ele ataca com rigor as discriminações enfrentadas pelos afro-americanos e os próprios historiadores atuais do New Deal são muito críticos com relação à relativa pouca atenção que Roosevelt dedicou ao grupo, em parte porque precisava do apoio dos hiper-conservadores Democratas do sul.

“O Solista” é ambientado 70 anos depois de “Elogiemos...”. O cenário é a conturbada e injusta megalópole de Los Angeles, na qual o jornalista Steve Lopez (interpretado por Robert Downey Jr.) escreve uma coluna sobre o cotidiano local. Um dia ele escuta um músico sem-teto executar com perfeição obras de Beethoven numa praça do centro. Interessado por sua história, descobre que ele se chama Nathaniel Ayers Junior (Jamie Foxx) e que foi aluno da prestigiada escola Julliard, da qual fugiu após um surto de esquizofrenia. Acossado pela doença, vive nas ruas, mas continua apaixonado pela música e com grande talento artístico.



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Novamente, o racismo está presente. Nathaniel refugiou-se na música e em sua própria mente em grande medida para tentar se proteger de um meio hostil e violento, e o desejo de Lopez em ajudá-lo de início é marcado por muito paternalismo. Aos poucos, os dois homens se tornam amigos e Lopez mergulha no mundo da miséria do Skid Row de Los Angeles. A degradação da área é tão grande que fui pesquisar, para ver se o filme não exagerava. Infelizmente, a representação cinematográfica está correta, exceto por um detalhe importante: na tela grande a região aparece como majoritariamente negra, enquanto na vida real predominam os sem-teto de origem latino-americana.

Ao tratar das periferias francesas, escrevi que amizade é civilização. Vendo “O Solista”, penso que é também a última utopia humanista, a trincheira que nos restou para defender certos valores que fazem a vida valer a pena. E que, nesse belo filme, contam com aliados fundamentais, como dois dos melhores atores do cinema contemporâneo e a excepcional, celestial música de Ludwig van, a ressoar pelas ruas de Los Angeles e nos lembrar que os seres humanos podemos ser sempre melhores.

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