segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A Reeleição de Evo



Em cerca de 190 anos de vida independente, a Bolívia teve mais de 200 presidentes. É raro que um mandatário consiga completar seu mandato – nesta década, Evo Morales é o primeiro a consegui-lo, e leva, de quebra, sua reeleição. O que aconteceu na política boliviana para que ele realizasse esse feito, num período turbulento que incluiu fortes conflitos regionais com as províncias do Oriente, o embate pela nova Constituição, disputas sérias com Brasil e Estados Unidos e a pressão de sua própria base de apoio popular? Penso que a resposta passa pela agenda social, pelo nacionalismo e pela gestão da macroeconomia.

A participação dos movimentos indígenas no Estado bolviano ocorre de forma crescente desde os anos 1980, com a redemocratização do país. Começaram como grupos sociais de protestos, ligados sobretudo às demandas por recursos naturais, logo assumiram papéis importantes nas administrações municipais. Com Evo Morales, chegaram à presidência, embora ele próprio seja muito mais um fruto dos sindicatos do que de mobilizações puramente indígenas, como a dos kataristas. Sua maneira de se vestir, mesclando roupas aymara e ocidentais, é um símbolo importante das funções de intermediário entre mundos culturais diferentes.

As respostas de Evo às demandas indígenas se deram sobretudo por meio da nova Constituição, que concede bem mais autonomia às comunidades (ayllus) e reconhece tradições de justiça e de medicina, numa decisão controvertida, pois com freqüência elas entram em conflito com as instituições do Estado. Minha experiência de pesquisa na Bolívia me ensinou a não menosprezar os efeitos do que os teóricos chamam de “politica da presença”: a própria existência de um indígena-presidente têm efeitos extremamente benéficos para a autoestima e a mobilização dessas populações, como pude comprovar nas entrevistas e consersas que fiz no país.

O Estado boliviano tem uma estrutura frágil, que dificulta a implementação de políticas sociais abrangentes, mas Evo conseguiu contornar o problema com a alta do preço das commodities (que multiplicou por nove as receitas sociais disponíveis para os municípios) e auxílio internacional: a Venezuela financiou seu programa de habitações populares e de alfabetização, e Cuba, suas clínicas de atendimento a comunidades pobres. A equipe do presidente adaptou políticas bem-sucedidas em outros países: o Bono Juancito Pinto é uma versão boliviana do Bolsa Escola, e também há ações bem-sucedidas de combate à mortalidade e desnutrição infantis.

Em sua política externa, enfrentou conflitos sérios com os dois principais parceiros. Retórica à parte, a nacionalização parcial dos hidrocarbonetos deixou marcas profundas na relação com o Brasil, e afugentou investidores externos. A alta do gás ajudou a Bolívia no curto prazo, permitindo boa gestão macroeconômica (as reservas cambiais, por exemplo, se multiplicaram por cinco) mas há dificuldades para planejar o futuro do setor. Com os Estados Unidos, a agenda também é tensa: os bolivianos expulsaram um embaixador e vivem maus momentos com Washginton em função do aumento das plantações de coca e da aliança com Chávez.

Ainda assim, a maior ameaça a Evo veio de dentro: a rebelião das províncias do Oriente, as mais ricas da Bolívia, em embates violentos que por vezes pareceram que desceriam ao nível de guerra civil. O pior foi evitado, mas por pouco, e inclui episódios trágicos como o massacre de camponeses no departamento (província) de Pando. O ex-governador Leopoldo Fernández é candidato a vice-presidente na principal chapa da oposição. Detalhe: ele faz campanha do cárcere, pois está preso em função do massacre. Seu colega é o ex-prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, membro da elite tradicional associado à ditadura militar. Com opositores desse naipe, não espanta a grande votação de Evo.

5 comentários:

Marcelo L. disse...

Da eleição da Bolivia tenho várias dúvidas, parece que de um lado o Evo Morales é um presidente ajuízado no campo das contas internas, diferente do Chaves e outros, por outro lado parece pouco interessado em realizar uma verdadeira reforma administrativa, acabando assim com o principal foco de corrupção de qualquer governo, que é o patrimonialismo que persiste.

Ele parece ter um embrião de uma política industrial, no campo externo apoia-se uma hora na Venezuela outra no Brasil, mas parece que não consegue livrar-se do passado com problemas de integração tanto com Paraguai quanto com o Chile, Chile por sinal que seria a saída economica para o gás do país.

No campo interno por não ter realizado uma política de concialiação não precisou comprar alguns apoios e pode então realizar vários programas sociais que lhe deram apoio, mas essa população integrada agora quererá mais e quem detinha os privilégios dete-la, por isso vejo o Evo com muitas contradições e dependente do resultado eleitoral do Brasil para tentar ter um segundo mandato mais calmo que o primeiro.

Maurício Santoro disse...

Em termos, Marcelo. A agenda de reforma administrativa não decolou na Bolívia, o Estado por lá é muito permeado por nomeações políticas.

Quanto à indústria, o cerne é o setor têxtil, pouco competitivo, que depende de preferências comerciais dos EUA, sempre ameaçadas em função do desempenho boliviano no combate às drogas.

Chile e Bolívia ainda não mantém relações diplomáticas plenas (apenas no nível consular) mas houve bom debate entre Evo e Bachelet. Contudo, é difícil avançar, porque os tratados internacionais exigem também a participação do Peru, que está em péssimo momento da relação com os chilenos.

A questão interna não foi tanto a ausência de alianças com os conservadores, e mais a disponibilidade de recursos dos hidrocarbonets. Mas, como você notou, Evo seguiu um caminho moderado nas contas públicas, bem mais do que Chávez. Isso faz diferença.

Abraços

Marcelo L. disse...

Prezado Mauricio,

Seguindo a máxima que o primeiro mandato é melhor que segundo...não vejo ele fazendo nenhuma mudança na administração pública mesmo, mas não me parece que ele usou os cargos no toma lá da cá...

Acredito que muito dependerá o que vai ocorrer na América Latina das eleições do Brasil e Chile, já que infelizmente a Argentina vai continuar mergulhada em sua crise e o governo Obama prefere trocar posições aqui por votos no Congresso.E depender do Brasil historicamente é esperar o pior...

Abs

Wellington Amarante disse...

Olá caro Maurício,

Como você bem ressaltou em sua primeira frase, a instabilidade política é a marca mais caracterítica da história política da Bolívia. A reeleição do presidente Evo Morales é por si só uma grande conquista para a cultura política do país. Porém, é necessário que se fortaleça a organização política do grupo de Evo para que ao final deste mandato o presidente não caia na tentação de um terceiro, como os presidentes Uribe e Chávez.

Estava lendo esses dias Joaquim Nabuco, "Minha Formação", e os seus argumentos contra as Repúblicas são sensacionais, principalmente o argumento da estabilidade política. Mas devemos justamente, no intuito de aperfeiçoarmos nossas democracias, lutar para a formação de políticos capazes de guiar os rumos da nação, deixando de lado nosso personalismo.

Porém, toda a história republicana da Bolívia é uma grande combustível para as ideias de Nabuco, isso passados mais de um século.

Forte abraço

Maurício Santoro disse...

Salve, Wellington.

O Minha Formação foi escrito numa espécie de exílio interno que Nabuco enfrentou nos anos iniciais da República brasileira, até ser chamado pelo barão do Rio Branco para retornar à diplomacia.

Em meio àqueles anos difíceis, que incluíram guerras civis, Nabuco fez uma defesa ardorosa da monarquia e escreveu um livro sobre o Chile (Balmaceda) criticando muito os países hispano-americanos.

Abraços