segunda-feira, 30 de julho de 2007
Bobby
A história de um país é feita de muitos pequenos pedaços. Dos atos e palavras dos grandes líderes políticos, mas também pelo modo como as pessoas escutam um jogo de baseball pelo rádio, como se relacionam com seus chefes e até pelo tipo de pesadelo que têm quando usam drogas. “Bobby”, escrito e dirigido por Emilio Esteves (mais famoso por seu trabalho como ator) é um estupendo panorama dos sonhos e tensões dos EUA em 1968, contado a partir de 20 personagens que circulam pelo Hotel Ambassador em Los Angeles, a sede da campanha à presidência do senador Robert Kennedy, no dia em que o político foi assassinado.
Esteves reuniu um elenco de primeira, que trabalhou por cachês simbólicos pela importância política do filme. Entre as feras da equipe está o pai do diretor, Martin Sheen, Helen Hunt, Sharon Stone, Demi Moore, Sir Anthony Hopkins, Laurence Fishburne, entre outros. Fiquei entusiamado para ver “Bobby” depois de ler uma bela resenha de Jamari França, na qual ele qualifica o filme de “manifesto a favor de uma América fraterna”.
O melhor personagem do filme é o cozinheiro interpretado por Laurence Fishburne, que aparece em apenas duas seqüências, mas de cenas e diálogos antológicos, enquanto serve de mediador para conflitos entre os empregados negros e mexicanos do hotel, e seus supervisores brancos. O retrato de um país à beira da explosão racial – Martin Luther King fora assassinado apenas dois meses antes dos eventos mostrado no filme, e sua morte foi o estopim para revoltas nos guetos das principais cidades dos EUA.
O outro grande trauma do período, a Guerra do Vietnã, atravessa várias histórias. Numa trama um tanto forçada, Lindsay Lohan interpreta uma moça que casará no papel com um colega de turma (Elijah Wood) para que ele se livre do serviço em combate e seja enviado para a Alemanha. É uma licensa poética do filme - essa brecha no regulamento do Exército fora eliminada vários anos antes. Em 1968 havia quase meio milhão de militares americanos no Vietnã, casados ou não. O trauma da guerra funciona muito melhor no caso de dois adolescentes que trabalham na campanha de Kennedy e resolvem experimentar LSD pela primeira vez, entrando numa viagem em que o medo do inferno bélico é a imagem mais forte.
O terremoto nas relações pessoais aparece nas histórias de um casal rico (Martin Sheen e Helen Hunt) deprimido diante do vazio de sua vida, e em busca de algo que eles não sabem bem o que seja para dar sentido a seu próprio relacionamento. O gerente do hotel também está envolvido em problemas conjugais, traindo a esposa com uma funcionária do Ambassador, o que acaba estourando um dos conflitos da trama.
O ano de 1968 também foi o da Primavera de Praga, e no filme há uma jornalista tcheca que tenta a todo custo uma entrevista com Kennedy, apenas para ser barrada por seu assessor, que considera inviável um encontro com uma repórter de um país comunista. Lembrete do clima ideológico maniqueísta da Guerra Fria
O próprio Robert Kennedy aparece em cenas de arquivos, documentários e reportagens de TV, com um ator representando-o de costas em algumas cenas. Seu assassinato fica como um símbolo de tantas esperanças que se frustraram naqueles anos, que culminaram na maior fragmentação do Partido Democratas, dividido entre quatro facções rivais, por conta da guerra e das tensões raciais. Ao fim, o republicano Richard Nixon ganhou a eleição presidencial. O resto é Watergate.
sexta-feira, 27 de julho de 2007
A Economia Política do Desenvolvimento
Pouco antes de eu viajar à Bolívia, terminaram minhas aulas no doutorado. Só preciso passar no IUPERJ para reuniões com meu orientador e para a defesa da tese, que planejo para o início do próximo ano. Com tantas tarefas em andamento, esse momento importante passou quase desapercebido. A vida é o que acontece conosco enquanto estamos ocupados fazendo outros planos, sabiamente trovou John Lennon.
Fiz dois cursos neste semestre - seminário de tese e a disciplina sobre nacionalismo no Brasil dos anos 50 e 60, que rendeu ótimas discussões, fartamente comentadas neste blog. Como trabalho final, escrevi um pequeno ensaio sobre “economia política do desenvolvimento”, comparando o pensamento de Roberto Campos e Celso Furtado a respeito de inflação, capital estrangeiro e o custo social do processo de industrialização.
A obra clássica de Ricardo Bielschowsky sobre o desenvolvimentismo cita justamente esses três temas como os pontos cruciais para diferenciar os economistas nacionalistas (como Furtado) dos não-nacionalistas (como Campos). Basicamente, os primeiros eram menos preocupados com inflação, mais restritivos ao investimento externo em setores como mineração e petróleo e chamavam a atenção para as desigualdades sociais e regionais crescentes do modelo econômico brasileiro.
Apesar das diferenças, Campos e Furtado tinham posições próximas nos anos 50 e 60 e inclusive foram colegas na direção do BNDE. Ambos eram figuras destacadas na nascente tecnocracia brasileira e estiveram entre os primeiros a cursar pós-graduações em economia no exterior – EUA e França – com carreiras que começaram no Itamaraty e na ONU e os levaram a postos ministeriais. Por exemplo, ocuparam a pasta do Planejamento com poucos anos de separação na década de 1960 e implementaram estratégias semelhantes de combate à inflação. Com a ressalva fundamental de que Furtado não mandou fechar sindicatos nem dar porrada nos trabalhadores.
Analisando o pensamento dos dois com a distância de muitas décadas, fica claro onde cometeram os piores erros. Primeiro, nenhum dos dois se preocupou com a dívida externa crescente – não era uma dor de cabeça num período de juros baixos, mas virou um pesadelo no fim dos anos 70, pelas turbulências financeiras internacionais. Depois, ambos subestimaram o impacto que a inflação teria na vida brasileira. Mas novamente, faço o papel fácil de profeta após o fato, pois eles escreveram num tempo em que a inflação anual ficava entre 10% e 15%, ao passo que cresci com 80% ao mês!
Fica também a admiração pelo alto nível do debate intelectual entre os dois, como no humor refinado de Campos ironizando os problemas brasileiros e nas críticas precisas de Furtado aos obstáculos ao desenvolvimento do Nordeste.
quinta-feira, 26 de julho de 2007
O ano em que meus pais saíram de férias
Ouvi que este filme é tão bom que parece argentino. De fato, "O ano em que meus pais saíram de férias" tem muito em comum com o melhor da produção entre os hermanos, em particular “Kamtchaka” de Marcelo Piñeyro e os dramas de temática judaica de Daniel Burman. Mas a equipe é brasileira e narra com sensibilidade e competência a história de Mauro, um menino cujos pais perseguidos pela ditadura militar precisam deixá-lo com parentes no bairro paulistano do Bom Retiro, lar de expressivas comunidades de judeus e italianos – tudo isso em plena Copa do Mundo de 1970.
O roteiro é primoroso, equilbrando crônica do cotidiano, comédia, drama, política, sem nunca errar a dose dos ingredientes. A batuta da orquestra está com o diretor Cao Hamburguer, o talentoso criador de Castelo Rá-Tim-Bum, que mais uma vez comprova a habilidade para lidar com crianças, com destaque para Mauro (Michel Joelsas) e sua amiga Hanna (Daniela Piepszyk). No elenco adulto, gostei muito de um ator que não conhecia, Germano Haiut, que interpreta Schlomo, o vizinho do avô do protagonista que se vê às voltas com a tarefa de cuidar do menino. Caio Blat faz uma pequena participação como o estudante Ítalo e comprova pela milésima vez que uma das grandes promessas de sua geração. Na realidade, da nossa, visto que temos quase a mesma idade.
O filme tem uma suavidade ausente na maior parte dos dramas brasileiros sobre a ditadura, que com freqüência se sentem na obrigação de doutrinar o espectador e são sempre sérios, muito sérios – alguém precisa fazer urgente uma comédia pastelão para mostrar o quanto o autoritarismo era ridículo! Em “O ano em que meus pais saíram de férias” a opressão e o sofrimento estão presentes, mas temperados pela delicadeza da amizade entre os meninos do Bom Retiro, e pelo humor das cenas na sinagoga.
Ao autoritarismo da ditadura, o filme contrapõe o ambiente fraterno e multicultural do bairro e a sua maneira é quase uma parábola sobre a fraternidade. Não por acaso o mito de Moisés é evocado em diversos momentos, a criança acolhida por estranhos e que desse modo pode sobreviver e escapar à perseguição.
Devo ver mais cinema brasileiro a partir das próximas semanas. Mudei minha TV por assinatura para o formato digital, e o novo pacote de canais é bem mais abrangente, inluindo o Canal Brasil. Como os serviços da NET são uma porcaria, ainda deve levar uns dez dias até a empresa realizar a conversão.
terça-feira, 24 de julho de 2007
Águas do Sul
Reproduzo abaixo meu artigo que foi publicado nesta terça na Envolverde, agência de notícias sobre meio ambiente.
Águas do Sul
O protesto da Bolívia pelo projeto do Brasil de construir duas grandes hidrelétricas no rio Madeira, próximo à fronteira entre os dois países, chama a atenção para a importância dos conflitos envolvendo água e desenvolvimento na América do Sul. Disputas pelo uso econômico desse recurso natural destacam-se na política do continente.
O confronto mais grave opõe Argentina e Uruguai, pela decisão das empresas transnacionais Botnia e ENCE, de instalar fábricas de celulose na cidade uruguaia de Fray Bentos, junto ao rio que divide os dois países. Do outro lado da fronteira está o balneário argentino de Gualeguaychú, cuja população se apavorou com a poluição que as fábricas trarão ao rio e iniciou campanha contra a instalação das indústrias. A disputa envolveu bloqueio das pontes que ligam Argentina e Uruguai e se tornou amargo contencioso na Corte Internacional de Justiça de Haia, com acusações e agressões mútuas, contrárias ao espírito da integração regional. Preocupada com o dano a sua imagem, a ENCE capitulou e mudou a fábrica para um local desabitado. A Botnia continua a construção de sua indústria.
A água também é o principal ponto de disputas entre Bolívia e Chile. No fim do século XIX, as tropas chilenas venceram as bolivianas na Guerra do Pacífico e se apoderaram do litoral do país. Desde então a Bolívia pleiteia a reparação da agressão, em conflito tão intenso que os dois países sequer mantêm relações diplomáticas plenas, limitando-se ao nível consular. Absurdo para nações que compartilham a participação em dois processos de integração, Mercosul e Comunidade Andina. A falta de acordo sobre o mar prejudica outras negociações entre bolivianos e chilenos, como o uso de mananciais comuns aos dois países, que poderiam ser importante fonte de abastecimento para a população e a indústria.
E o Brasil? Na década de 1950, o economista Celso Furtado (1920-2004) alertou contra os malefícios da “política hidráulica” de obras faraônicas para levar água ao Nordeste, ressaltando que a necessidade concreta era realizar reformas sociais que distribuíssem a renda e promovessem a industrialização. Embora as autoridades brasileiras prestem homenagens retóricas a Furtado, agem de forma contrária a suas idéias. O projeto de transposição do Rio São Francisco, como as usinas no Madeira, repetem os erros do passado. Canalizam recursos públicos bilionários para reforçar os interesses de conglomerados empresariais do agronegócio e das empreiteiras de construção civil e por isso provocam a decepção da sociedade e as críticas dos especialistas.
Os planos para o Madeira afetam a Bolívia, que compartilha o rio com o Brasil. O país vizinho se queixa do desleixo com que o governo brasileiro trata o impacto social e ambiental das obras e teme que elas prejudiquem a Bolívia, provocando perda de recursos naturais e de biodiversidade, afetando a pesca na região. Também há receios quanto à expansão de doenças como malária e problemas trazidos pela contaminação por mercúrio. A experiência de outras grandes barragens dá razão às preocupações bolivianas.
Na América do Sul, a tendência desta primeira década do século XXI é a nacionalização da água, visando ao seu fornecimento adequado para a população mais pobre. Na Bolívia, movimentos sociais em Cochabamba reverteram a privatização da água, que se fez com base no aumento de tarifas e em leis draconianas que proibiam até a captação da chuva. No Uruguai, referendo nacional vetou a privatização do serviço de abastecimento. Na Argentina, Kirchner retomou o controle estatal da água, após o fracasso de empresas estrangeiras em darem conta da tarefa.
Os países da América do Sul compartilham uma das maiores reservas de água doce do planeta, o Aqüifero Guarani, além de possuírem bacias hidrográficas do porte da amazônica e da platina. É fundamental criar mecanismos de gestão regional desses recursos naturais, dando voz às demandas sociais e garantindo que a água será usada para um modelo de desenvolvimento adequado às necessidades da população.
segunda-feira, 23 de julho de 2007
Machado de Assis: um gênio brasileiro
Depois de duas semanas a viajar, é hora de atualizar o blog no que diz respeito à literatura e ao cinema. Comecemos pela excelente biografia “Machado de Assis: um gênio brasileiro”, escrita pelo jornalista Daniel Piza e publicada em edição de luxo pela Imprensa Oficial.
Machado era pobre, mulato escuro numa sociedade escravocrata, gago e epilético. Ainda assim, realizou a brilhante obra literária que o torna nosso melhor escritor, foi reconhecido em vida como parte da nata intelectual brasileira e ascendeu na carreira burocrática, tornando-se um alto funcionário público tanto no Império quanto na República. O que explica a superação de tantos obstáculos? Onde está a faísca do gênio?
Os episódios básicos da vida de Machado são bem conhecidos e a biografia recapitula todos eles de maneira competente: o início da vida profissional como aprendiz de tipógrafo, o gosto pela leitura, a cultura do autodidata e a facilidade com que se tornou querido de uma série de intelectuais que o apadrinharam ao longo de toda a carreira, facilitando sua escalada. Na esfera pessoal, seu longo e feliz casamento com Carolina, que ele tão bem retratou em Memorial de Aires.
A grande contribuição da biografia de Piza é nos mostrar Machado como homem de seu tempo, um jornalista observador e que tomou posição em todas as grandes controvérsias do Segundo Reinado. Como monarquista liberal, Machado foi favorável à abolição da escravidão e crítico das falsidades e corrupções que marcavam o sistema político da época. Eu desconhecia seu ardor patriótico durante a Guerra do Paraguai (que não me agradou, prefiro seu humanismo cético de fase posterior) e ignorava também a intensidade de sua admiração pelo imperador Pedro II. Piza ressalta a experiência de Machado como repórter e cronista, que rendeu textos antológicos como suas memórias sobre o Velho Senado Imperial.
Politicamente, Machado estava muito próximo do líder abolicionista Joaquim Nabuco, de quem também sou admirador. A amizade está relatada de maneira emocionante no diário de Nabuco e num volume de cartas entre os dois, ambos publicados recentemente. Não tantos os exemplos na história brasileira desse tipo de confiança e fraternidade entre um artista e um político. Ao menos não no alto nível alcançado pelos dois em termos de serviços prestados ao país.
O livro resenha de maneira sucinta os romances de Machado e seus contos principais, falando pouco do teatro e da poesia. Nenhuma das análises é muito aprofundada, nesse aspecto minha obra favorita continua a ser “Ao Vencedor as Batatas”, de Roberto Schwarz. Mas foi bem agradável passear de novo pelas criações de Machado, um dos meus escritores favoritos desde a adolescência. Faz muitos anos que não o leio e me faria bem visitar de novo o mestre.
Li Machado pela primeira vez aos 14 anos, o conto "Missa do Galo" e tomei gosto por ele um pouco mais tarde, quando chegou a vez de "Memórias Póstumas" e "Dom Casmurro". Talvez fosse cedo demais para um escritor tão sutil, e meus professores de literatura do ensino médio não ajudavam muito, preferindo ressaltar os aspectos do manual sobre características do romantismo x realismo. Aliás, predominava a interpretação de que Machado não tinha muito a nos dizer sobre a realidade brasileira da época, quando na verdade ele foi um de seus melhores analistas.
Que bom que a gente sobrevive à escola. Às vezes, aprender é esquecer o que nossos professores nos ensinaram.
sábado, 21 de julho de 2007
A Guerra Grande
Na época colonial, bandeirantes saíam de São Paulo e atacavam as missões jesuíticas no que hoje é o Paraguai, para escravizar os índios. Quando os dois países se tornaram independentes, as relações continuaram tensas, por disputas de fronteiras e pela navegação dos rios Paraná e Paraguai. Sem estradas e ferrovias que ligassem o interior brasileiro à Corte, as autoridades do país dependiam dessas vias fluviais para alcançar o centro-oeste, em especial a gigantesca e isolada província de Mato Grosso. O Brasil exigia a livre navegação em ambos os rios (embora se opussesse a isso no Amazonas). O Paraguai condicionava a questão à resolução das fronteiras. Essas foram as causas principais do feroz conflito de 1864-1870, que os brasileiros chamamos de Guerra do Paraguai, mas que no resto da América do Sul é mais conhecido como Guerra da Tríplice Aliança. Na república guarani, fala-se na Guerra Grande.
Minha leitura durante a viagem foi “Com a palavra, o Visconde do Rio Branco – a política exterior no parlamento imperial”, coletânea de discursos do melhor diplomata brasileiro do século XIX, recém-publicada pelo Itamaraty. Os textos cobrem o período de 1850 a 1875 e mostram como a política externa era um tema muito presente no debate doméstico do Império, ao contrário do que ocorreu na maior parte da República. Também ilustram a importância crucial das questões do Prata – hoje diríamos Cone Sul – na agenda diplomática brasileira. Os pontos mais controversos eram os ataques militares do Brasil aos países da região – Argentina, Uruguai e Paraguai – que culminaram na carnificina de 1864-1870.
Poucos brasileiros conhecemos essa história. Quando cessaram as guerras civis no início do Segundo Reinado, o Brasil voltou sua atenção para os turbulentos vizinhos do Prata. Nas décadas de 1850 e 1860 havia uma espécie de guerra civil transnacional na região, opondo os partidos blanco (centralistas) e colorado (federalistas). O Brasil em geral apoiava o último bloco, buscando impedir o surgimento de uma liderança que pudesse unificar os diversos países do Prata num só Estado ou coligação, que desafiaria a hegemonia brasileira.
Quem chegou mais perto disso foi o general argentino Juan Manuel de Rosas. No lance mais ousado da política externa brasileira da época, nosso país invadiu o Uruguai (onde o general Oribe, aliado de Rosas, estava perto de conseguir o poder) e em seguida levou a guerra à Argentina. Junto com opositores de Rosas, como Urquiza, o Brasil derrotou as tropas do general na batalha de Monte Caseros. Foi um feito militar e diplomático notável, pois Rosas havia resistido a anos de bloqueio por parte da Inglaterra e da França. As guerras brasileiras continuaram, em especial no turbulento Uruguai, onde muitos pecuaristas brasileiros possuíam fazendas.
Os discursos do visconde do Rio Branco cobrem todo o período, pois ascendeu na política como especialista nas questões platinas. Através dos debates parlamentares, vemos o curso das invasões ao Uruguai, a postura cautelosa nas guerras civis argentinas (depois da queda de Rosas o país se fragmentou em dois Estados, com Buenos Aires formando um governo em separado) e os conflitos crescentes com o Paraguai. O presidente paraguaio Carlos Lopez armou o país, mas manteve postura defensiva e receava ataques do Brasil e da Argentina. Seu filho Solano opôs-se aos conselhos do pai e procurou resolver pela guerra os problemas de fronteira. Num gesto suicida, atacou simultaneamente Brasil, Argentina e Uruguai.
O resto foi o conflito mais sangrento da história da América do Sul. Estima-se que o Brasil tenha perdido 50 mil homens – equivalente aos mortos dos EUA no Vietnã. O Paraguai foi inteiramente arrasado, embora até hoje o número de baixas seja muito controverso. Aliás, a guerra é estudada de maneira precária. Pouco sabemos, por exemplo, sobre como os escravos brasileiros que lutaram no Exército se relacionavam com seus superiores e colegas brancos. Tampouco está explicado como d. Pedro II – homem moderado e pacifista – decidiu por uma guerra de extermínio contra Lopez, em vez de simplesmente rechaçar a invasão paraguaia e tentar isolar o inimigo. No Paraguai, o imperador brasileiro é tido como açougueiro, qualificativo que em geral só aplicamos ao conde D´Eu, por sua conduta atroz à frente das forças brasileiras, no ano final da guerra.
A imagem do post é uma pintura de Candido Lopez (sem parentesco com a família presidencial paraguaia), soldado e artista argentino que perdeu um braço no conflito, mas ainda assim nos legou uma estupenda série de pinturas sobre a guerra. Quando morei em Buenos Aires, vi uma magnífica exposição de sua obra no Museu Histórico Nacional. Bem que poderíamos trazê-la ao Brasil e refletir um pouco sobre a irracionalidade da violência entre as quatro nações que hoje formam o Mercosul.
sexta-feira, 20 de julho de 2007
Colorados e Jesuítas
O Partido Colorado governa o Paraguai há 60 anos, sendo que metade desse período transcorreu durante a ditadura do general Alfredo Stroessner. Partido e Estado se confundem, como no México dos 70 anos de domínio do PRI. O sistema clientelista montado pelos colorados impressiona e atinge todos os níveis do funcionalismo público e não poucas associações da sociedade civil. Contudo, esse controle está sob desafio. Começou a disputa pela presidência em 2008 e o favorito é o ex-bispo jesuíta Fernando Lugo.
A Igreja é a instituição mais importante da vida social paraguaia e seu papel na própria formação do país foi fundamental. A república guarani, afinal, é fruto das missões que os jesuítas construíram na era colonial. Muitos dos jovens com quem conversei me falaram da importância da participação em organizações católicas para sua mobilização social. Com freqüência, foi através delas que eles conheceram pessoas fora do pequeno círculo de familiares e vizinhos. Vários se queixam do conservadorismo dos padres, mas ainda assim há iniciativas excelentes como a do Parlamento Jovem, que está formando toda uma geração de líderes sociais no país.
Lugo lidera uma aliança de partidos e organizações de oposição aos colorados, batizada de Concertación à semelhança da coligação que governa o Chile. O arco de apoios é bastante amplo e inclui movimentos sociais, partidos de esquerda e de direita. Muito do noticiário político paraguaio vem das disputas e negociações dessa frente, que parece ter pouco em comum fora a rejeição aos 60 anos de governo do partido dominante.
A luta política no país é pesada e o governo já iniciou uma campanha de difamação de Lugo. A piada local é que em breve vão inventar filhos ou algum escândalo sexual para ele. Como está para nascer um jesuíta que não seja um político hábil, Lugo se apresenta com base na questão democrática, visitou Washington e mantém distância de Chávez. Vai ser uma briga boa, estou curioso para acompanhar os próximos lances.
Durante minha estadia no Paraguai, a jogada do governo foi um acordo com o general Lino Oviedo, que está preso depois de tentar um golpe militar em 1999. A libertação de Oviedo é iminente e se especula de que ele sairá candidato à presidência com apoio velado dos colorados, que esperam assim dividir a oposição. O general possui base eleitoral significativa e conta com a simpatia do principal jornal do país, o ABC Color – que tem atacado duramente Brasil e Argentina, por conta da divisão dos lucros das duas maiores empresas paraguaias, as usinas binacionais de Itaipu e Yacyretá.
quarta-feira, 18 de julho de 2007
Paraguai: a esponja e a fonte
Esta breve viagem ao Paraguai está sendo riquíssima em descobertas e pesquisas. Escrevo de Ciudad del Este, em plena Tríplice Fronteira. Minha equipe veio conversar com pessoas dos movimentos sociais de estudantes e de camponeses, sobretudo do departamento (província) de Alto Paraná, zona de expansäo agrícola com forte presença brasileira, em particular da soja.
Um dos jovens com quem falamos usou metáforas muito bonitas para descrever a situaçäo da juventude paraguaia: esponja e fonte. Esponja porque absorvem as tendëncias mais importantes da sociedade, fonte porque tëm o potencial mais forte para transformar o país.
Ontem conversamos com líderes do movimento estudantil paraguaio, numa roda de entrevistas com acadëmicos e pesquisadores. Os estudantes daqui tiveram recentemente um momento de ascensäo política, com a resistëncia ao golpe do general Lino Oviedo, no fim dos anos 90. Contudo, os principais articuladores entre os estudantes da época foram rapidamente cooptados pelo governo, ganharam cargos importantes e se envolveram em escändalos de corrupçäo. Somente agora o movimento renasceu, com uma campanha vigorosa pelo passe livre, que tem grande releväncia num país pobre.
Fiquei muito bem impressionado com a inteligëncia e dedicaçäo dos estudantes, que ainda sáo adolescentes. Me lembraram muito seus colegas chilenos da "Revolta dos Pingüins", que aliás sáo fonte de inspiraçäo para eles. Uma das líderes paraguaias comentou comigo sobre o desejo de estudar na Argentina e contei a ela da minha excelente experiëncia no país, estimulando-a a cursar a universidade em Buenos Aires: o contato com alunos de toda a América Latina, comum nas faculdades portenhas, certamente lhe faria muito bem.
O dia de hoje foi numa povoaçäo rural que sedia a Associaçäo dos Agricultores de Alto Paraná (Asagrapa, foto), na qual conversamos com jovens camponeses sobre seus problemas, desejos e esperanças. Eles sáo de origem guarani e se expressam melhor nessa língua do que em espanhol, embora também a compreendam. O movimento dos trabalhadores rurais por aqui obteve vitórias importantes ao fim da ditadura Strossner, mas atualmente se encontra em dificuldades por causa da soja.
As terras deste departamento sáo excelentes para o cultivo da soja e da cana, e grandes empresas tëm se instalado de maneira crescente na regiáo. Sáo principalmente brasileiras, mas também americanas e alemäs. Muitos camponeses venderam suas propriedades atraídos pelos altos preços, outros o fizeram por violëncia - a açäo de capangas que queimam casas e agridem pessoas para força-las a deixar suas terras é lamentavelmente comum.
Novamente, destaca-se o alto nível de organizaçäo e disposiçäo dos jovens paraguaios. Eles falaram muito náo sò das questóes econömicas, como também de seus problemas pessoais com família e professores. Sáo bem mais escolarizados do que os pais, mas se queixam do tipo de educaçäo que recebem, dizendo que desvaloriza a cultura camponesa e os estimula a deixar o campo, rumo a uma vida precária como migrantes na cidade. O ensino universitário começa a entrar em seus horizontes de expectativas e foi emocionante conversar com os primeiros jovens camponeses que iniciaram seus cursos.
Amanhá visitaremos outra comunidade rural, na rota de expansáo da soja - é sem dúvida o tema dominante por aqui. Ao fim do debate de hoje, me pediram para expor a situaçäo brasileira e chamei a atençäo dos jovens paraguaios para o fato de que os problemas que enfrentam por aqui sáo comuns também a seus colegas brasileiros do outro lado da fronteira. Comentei brevemente as negociaçöes agrìcolas no Mercosul e afirmei a importäncia de que as sociedades dos países do bloco se conheçam melhor, inclusive para pressionar seus governos em assuntos de interesses compartilhados.
No próximo post, comento sobre as tensóes na política do Paraguai, que estáo altas por conta do desafio ao domínio de 60 anos do Partido Colorado.
segunda-feira, 16 de julho de 2007
Um Tal Evo
Um dos livros que comprei na Bolívia foi “Un Tal Evo”, biografia do presidente escrita por dois jovens e premiados jornalistas do país, Darwin Pinto e Roberto Navia. É um excelente trabalho que foge ao maniqueísmo para narrar a vida do chefe de Estado boliviano e explicar o contexto social que possibilitou sua meteórica ascensão.
Evo nasceu num povoado que sequer consta do mapa da Bolívia. Quando criança, seus pais migraram para a Argentina, para a província de Jujuy, na qual trabalharam algum tempo na colheita da cana. O menino vendia doces nas ruas. Voltaram à Bolívia para viver de uma pequena propriedade agrícola próxima a Oruro. Vida difícil, de pobreza e privações. Mas chama a atenção o caráter forte de Dionisio, pai de Evo, que foi escolhido como líder de sua comunidade indígena e conseguiu que seus três filhos chegassem à classe média. O irmão de Evo também é sindicalista e político, sua irmã é uma comerciante casada com um professor universitário.
O jovem Evo completou o ensino médio, algo incomum para a Bolívia da época, e tentou ofícios diversos: padeiro, músico e jogador de futebol. Ao voltar do serviço militar, a família migrou novamente, para a zona de expansão agrícola do Chapare, que vivia o boom da coca. Então a História entrou na história do rapaz.
A coca é amplamente consumida de forma legítima na Bolívia, como ficou claríssimo em minha visita ao país. Mas também é matéria-prima para o narcotráfico, cuja demanda consome entre 30% e 40% da produção, segundo as estimativas. Além disso a coca é um cultivo fácil, que pode render até quatro colheitas por ano. Tudo somado, é muito mais rentável do que outras culturas, como milho e palmito, que a partir da década de 80 tiveram que enfrentar condições internacionais adversas de abertura econômica.
Os EUA adotaram a política de erradicar os cultivos de coca – legais ou ilegais – na América Andina e o governo boliviano seguiu à risca a orientação. A região do Chapare virou um campo de batalha em que policiais e militares enfrentavam os camponeses que plantavam coca. Eles começaram a se mobilizar numa luta desesperada e aí Evo entrou no movimento. O jovem carismático chamou a atenção dos sindicatos por sua popularidade como músico e jogador de futebol, logo se revelou um líder político de expressão. Em dez anos tornou-se celebridade nacional e foi eleito deputado.
Ele poderia ter sido um político regional importante em Chapare, mas o que o tornou presidente foi sua capacidade de ser o porta-voz de uma série de demandas nacionais: a questão indígena, o controle dos recursos naturais, a defesa do modo de vida tradicional do Altiplano. Os cocaleros também demonstram capacidade invulgar de coordenação e negociação, articulando alianças com outros grupos políticos, que culminaram na fundação do partido Movimento ao Socialismo.
O livro comenta pouco sobre a presidência de Evo, fazendo críticas a ele na questão das autonomias, na qual os autores afirmam que o presidente leva em conta apenas os problemas da região andina. Há capítulos muito interessantes sobre as negociações com o Chile, por conta do mar, mas quase nada a respeito das relações com o Brasil, por conta do gás e da reforma agrária.
A organização dos capítulos é um pouco confusa, há muitos trechos repetidos e parece que o livro é uma colagem de textos escritos separadamente pelos dois autores, porque em vários momentos o narrador utiliza a primeira pessoa do singular (“Minha fonte no governo me disse tal coisa...”). Mas são problemas que não tiram o brilho da obra, sem dúvida muito boa. Que venham outras.
***
Amanhã caio novamente na estrada. Desta vez viajo ao Paraguai, para visitar movimentos indígenas na fronteira com o Brasil e conhecer comunidades rurais afetadas pela expansão da soja. Volto no fim da semana.
sábado, 14 de julho de 2007
Como o Céu é do Condor
Chama a atenção na política boliviana o protagonismo dos movimentos sociais. A Plaza San Francisco tomada pelo povo como o céu é do condor, diriam os poetas românticos do século XIX. Os partidos do país foram praticamente destruídos na década de 90 e a própria sigla do presidente Evo Morales, o Movimento ao Socialismo, já mostra desde o nome o quanto deve às organizações populares, mais do que às estruturas tradicionais da política. Apesar do apoio a Evo, as inquietas bases bolivianas questionam o governo. Os mineiros ocuparam a maior mina do Estado, em Oruro, e estão em greve. Os povos originários, que praticam o saudável princípio da rotação dos cargos de poder, não ficaram satisfeitos com a proposta de Evo em permitir a reeleição.
A popularidade de Evo já foi de 81%, hoje está em 50%. Havia expectativas muito grandes entre a população pobre de que tudo melhoraria rapidamente, mas claro que a vida não é assim. Primeiro, o governo enfrenta resistências conservadoras fortes, em especial da elite dos departamentos do Oriente, os mais ricos do país, que concentram os recursos econômicos como gás e soja. Segundo, a capacidade de ação do Estado é pequena, há defiências técnicas e poucas verbas. No Brasil, Lula pode usar políticas sociais como Bolsa Família e Pró-Uni para angariar apoio. Evo pode contar apenas com medidas mais drásticas, e de dificil implementação, como a reforma agrária e a nacionalização dos hidrocarbonetos.
A economia formal vai bem, com crescimento do PIB e uma taxa razoável de inflação. O problema é que a maioria da população vive do mercado informal, com rendimentos miseráveis. O salário mínimo é de cerca de R$150 e a maioria ganha abaixo disso. Não é à toa que muitos emigram. Estima-se que 2 milhões de bolivianos vivam fora do país, índice enorme para uma nação de cerca de 9 milhões de habitantes.
O mais radical dos líderes dos povos originários, o aymara Felipe Quispe, começou a atacar Evo, acusando-o de conluio com as elites tradicionais e as grandes empresas. Quipse liderou um movimento guerrilheiro nos anos 90, rapidamente desbaratado. Depois fundou o Movimento Indígena Pachakuti e questionou a legitimidade do Estado boliviano. Tem prestígio, mas obteve apenas 2% dos votos quando se candidatou à presidência. Seu antigo aliado, o respeitado professor Álvaro Garcia Lineira, rompeu com ele e é o atual vice-presidente.
Na Assembléia Constituinte, Evo não conseguiu os 2/3 necessários à aprovação das mudanças constitucionais, o que significa a necessidade de negociar para concretizar seus objetivos. A Assembléia discute até a probição da FIFA a jogos em altitude acima de 3000 m. Os parlamentares bolivianos querem declarar tal decisão “inconstitucional”, o que significaria na prática que nenhum jogo internacional poderia acontecer no país. Pode soar anedótico, mas nas conversas com os bolivianos percebi que eles se sentiram discriminados pela FIFA e que a entidade enfureceu muita gente, em todos os grupos políticos.
A questão mais espinhosa na Constituinte é a relação do governo central com os departamentos (equivalentes aos estados brasileiros), que exigem maior autonomia. Os ricos não querem arcar com os custos dos pobres e há bastante tensão racial no conflito, porque os departamentos prósperos têm muitos brancos e se ressentem da importância política crescente do movimento indígena. No entanto, a divisão não é simples. Mesmo em Santa Cruz, o centro oposicionista, há forte apoio a Evo na zona rural. Na realidade, foi lá que ele fundou seu partido.
Houve um referendo nacional sobre a autonomia, que foi vencido por pequena margem pelo governo central. Mesmo assim, permanece intensa mobilização regional nos “comitês cívicos”, que reunem empresários e políticos de oposição ao presidente. Agora Evo fala em “autonomia com solidariedade”, mas as negociações são complicadas porque também se trata de autonomia para as áreas dos povos originários (inclusive no uso do sistema judiciário tradicional), cujas fronteiras não coincidem com os departamentos oficiais. A Constituição que deveria ser promulgada em agosto ficou para dezembro, e olhe lá.
sexta-feira, 13 de julho de 2007
El Alto
“Por ali passou o Exército e a polícia, atirando, durante a crise de 2003. Foram mais de cem mortos”, contava meu amigo enquanto caminhávamos pela feira 16 de Julio. Esse imenso mercado popular a céu aberto (foto) é o coração de El Alto, que por sua vez é o epicentro dos movimentos sociais bolivianos. Há 20 anos a cidade tinha cerca de 80 mil habitantes, hoje possui dez vezes mais. Os migrantes vieram sobretudo da zona rural, pois depois da abertura econômica ficou muito difícil para os pequenos produtores viverem da agricultura, sem condições de competir com o agronegócio estrangeiro. A pouco mais de 10Km de La Paz, El Alto é uma cidade-dormitório que também possui um cordão industrial, principalmente de têxteis e de fábricas que trabalham madeira.
As organizações sociais de El Alto são o foco da nossa pesquisa na Bolívia e nossos colegas no país nos brindaram com um passeio inesquecível por essa cidade. Na feira de 16 de julho é possível comprar de tudo: roupas, Cds e dvds piratas, peças de automóveis, comida. Quase todas as barracas são comandadas por mulheres, às vezes com crianças ajudando. Será que os homens trabalham em La Paz? Ou migraram para Argentina, Brasil e EUA, como 2 milhões de seus compatriotas?
El Alto é uma cidade pobre, com a maioria das ruas sem calçamento, e algumas zonas com mais serviços urbanos. Para os padrões brasileiros, oscilaria entre áreas de favela e de classe média baixa. Ainda assim, não vi miséria abjeta. Por exemplo, todas as pessoas estavam bem agasalhadas contra o frio intenso – havia nevado muito alguns dias antes de nossa visita.
Um dos pontos mais importantes de El Alto é a Praça Tupac Katari, que homenageia o líder da grande revolta indígena da época colonial. A maoiria dos moradores da cidade pertence aos povos originários (como os índios bolivianos preferem ser chamados), sobretudo da etnia aymara. O conflito de gerações é marcante: enquanto os mais velhos se vestem com as roupas tradicionais, os adolescentes usam camisas de times de futebol europeus, de bandas de rock americano ou camisas de grife como Gap.
Há uma tensão entre os jovens aymara de El Alto entre manterem sua cultura e valorizarem sua identidade e o desejo de serem aceitos pela sociedade urbana e moderna, que com freqüência os discrimina de maneira brutal. Esse conflito às vezes resulta em movimentos culturais extremamente criativos e dinâmicos, como o hip hop nas línguas dos povos originários. Adorei a visita que fiz a Rádio Wayna Tambo, um ponto de encontro da juventude local. Ali eles fazem shows, conduzem debates e realizam cursos de temas de seu interesse. Conversamos com os rapazes e moças que tocam a estação comunitária. Alguns viveram nas favelas de São Paulo e de lá trouxeram ritmos brasileiros - há até um programa dedicado à música do Brasil. As canções dos jovens locais são muito bonitas, muito politizadas e críticas diante das injustiças sociais da Bolívia.
Também visitamos as sedes das organizações alteñas que tiveram papel de destaque nos conflitos políticos recentes do país. A Federación de las Juntas Vecinales e a Central Obrera Regional foram vitais em mobilizar a população da cidade nos grandes protestos de outubro de 2003, que culminaram na renúncia do presidente Sánchez de Lozada. Mais do que isso, foi uma rebelião popular que sepultou os partidos tradicionais da Bolívia e abriu caminho para a vitória de Evo Morales nas eleições presidenciais.
Minhas colegas de equipe continuavam a passar mal pela altitude e pelo esforço. Após a visita, deixei-as no hotel e fui caminhar mais um pouco por La Paz. Terminei o dia no Paseo El Prado, a avenida mais elegante da cidade – uma das canções do hip-hop aymara fala de um jovem que caminha por ela e se sente tratado como um extraterrestre pela elite branca.
quarta-feira, 11 de julho de 2007
La Paz
A viagem para a Bolívia foi difícil. O vöo que deveria ter chegado às 21h de segunda-feira atrasou doze horas, o que significou entre outras coisas que minha equipe e eu praticamente näo dormimos. No dia seguinte estávamos cansados e fui o único que näo ficou doente por conta dos 3.600 metros de altitude em La Paz. Tive até que chamar um médico para atender uma das minha colegas e ele ficou espantado com minha disposiçäo, me perguntou o que eu tinha feito para permanecer com saúde: "Doutor, há tempos eu queria fazer essa viagem, estou täo feliz de estar na Bolívia que näo há atraso no mundo capaz de mudar isso."
Meu entusiasmo se explica pela extraordinária riqueza dos movimentos sociais bolivianos. É como se este pequeno país fosse um laboratório a céu aberto, onde se realizam diariamente experiëncias sobre os temas mais quentes da agenda política contemporänea na América do Sul. Lutas por recursos naturais, identidade étnica, contradiçöes entre nacionalismo e integraçäo regional, por aí vai.
Os primeiros dias por aqui foram dedicados a reuniöes e conversas com os colegas do Programa de Investigación Estratégica en Bolívia (PIEB), uma das mais importantes ONGs locais. Além de uma grande quantidade de pesquisas, essa instituiçäo criou um serviço de notícias e um mestrado muito interessante em ciëncias sociais, que treina os estudantes em projetos de cooperaçäo práticos. O PIEB também publica muitos livros - compramos duas coleçöes completas, uma sobre jovens bolivianos, outra sobre a cidade de El Alto. Levei um sobre o movimento cocalero. Conversei com o diretor da instituiçäo, com o reitor da universidade e com vários pesquisadores. Excelente equipe, aprendi muito com todos.
Estou hospedado no centro histórico de La Paz, a um quarteiräo da Plaza San Francisco e bem próximo à Plaza Murillo, na qual está o Palácio Presidencial, o Congresso e a Catedral (foto). Nesse curto espaço entre os dois locais, que näo tem um quilömetro, concentram-se as açöes dos movimentos sociais e dos protestos públicos - ontem mesmo houve dois, porque o país está num momento de turbulëncia política, por conta dos debates sobre a nova constituiçäo.
La Paz está localizada numa espécie de cavidade em plena cordilheira dos Andes, a cidade é cercada por montanhas, cujas encostas foram bastante favelizadas. O aspecto geral é de pobreza, mas há edifícios históricos muito bonitos, embora a zona colonial näo esteja täo bem preservada quanto a de Quito. Contudo, o pior problema dos paceños é a poluiçäo, muito forte por conta da falta de regulaçäo sobre os önibus e automóveis.
O centro da cidade é bastante movimentado, com uma multidäo multicolorida que circula entre milhares de barracas de ambulantes nas quais se vende de tudo. As roupas variam do paletó e gravata às vestimentas tradicionais dos povos originários, em particular dos aymara que säo mais numerosos nesta zona do país.
Amanhä passarei o dia em El Alto, epicentro dos movimentos sociais bolivianos. Depois conto como foi.
domingo, 8 de julho de 2007
O Congresso e a Venezuela
Chávez com freqüência troca insultos com parlamentos estrangeiros, na crise da RCTV atacou o poder legislativo do Chile, da União Européia e do Brasil – que chamou de “papagaio dos Estados Unidos”. O Congresso reagiu ameaçando rejeitar a entrada da Venezuela no Mercosul. Achei que fosse ficar nisso, mas para minha surpresa o discurso subiu de tom e criou-se uma turbulência política razoavelmente séria.
A Venezuela tem pouca indústria e câmbio sobrevalorizado, ou seja: importa de tudo. E muita coisa do Brasil, ao ponto que o mercado venezuelano já é o décimo maior destino dos produtos brasileiros, nos lembra mestre Sergio Leo. A economia local ainda tem muitas barreiras, como controle de importações, de modo que a liberalização comercial exigida para aderir ao Mercosul aumentaria bastante as possibilidades de negócios para o Brasil.
Além disso, a Venezuela é um país muito rico em fontes de energia, como petróleo, gás e hidroeletricidade. Oferece oportunidades para abastecer de forma barata o norte e o nordeste brasileiros, duas regiões que colheram poucos benefícios do processo de integração regional.
Esses são os pontos positivos. E os negativos? Diplomatas brasileiros se queixaram da velocidade com a qual a Venezuela negociou os termos de adesão. Eles acreditam que a rapidez indica pouco compromisso, e que num momento de dificuldades Chávez simplesmente não cumpriria o que acordou com os parceiros do bloco. De fato, ele fez algo semelhante em seus conflitos na Comunidade Andina de Nações.
Há quem afirme que a instabilidade política da Venezuela diminuiria a credibilidade do Mercosul, inclusive em negociações comerciais internacionais. Na medida em que o bloco não conseguir garantir o cumprimento de seus acordos, isso sem dúvida diminuiria a confiança que outros países depositam nele.
Por último, mas não menos importante: o Mercosul possui uma cláusula democrática, ou seja, a preservação das liberdades políticas em cada país do bloco é um assunto que diz respeito a todos os outros. O tipo de confronto que Chávez trava com seus opositores, nos partidos, na imprensa e na sociedade civil certamente trará as amargas polêmicas venezuelanas para dentro do processo de integração regional.
O chanceler Celso Amorim engrossou o discurso nos últimos dias e sugeriu que Chávez pedisse desculpas ao Congresso. O presidente venezuelano respondeu com novos ataques, dando ultimato ao parlamento brasileiro: quer a aprovação em três meses, senão desiste do Mercosul. Criticou o modelo de integração regional, chamando-o de "neoliberal". Faltou avisar aos neoliberais, que nunca morreram de amores pelo bloco e sempre preferiram uma zona de livre comércio, sem a alta tarifa externa comum, que servisse como primeiro passo para acordos semelhantes com os EUA e a Europa.
Ignoro como a crise irá se desenrolar, mas as empreiteiras brasileiras são muito ativas na Venezuela, por conta das bilionárias obras de infra-estrutura da “Revolução Bolivariana”. Ora, as empresas do setor não são propriamente pouco influentes junto a nossos parlamentares. Há limite ao número de amantes que o senador Renan Calheiros é capaz de engravidar (pela foto, vejam que não faltarão candidatas), mas as possibilidades são bem amplas no que diz respeito aos lucros para a construção civil na Venezuela.
Minha dúvida: será que Chávez quer mesmo entrar no Mercosul? Nesta altura do campeonato, tenho muitas dúvidas.
***
Embarco amanhã para a Bolívia, numa viagem de pesquisa sobre movimentos sociais na América do Sul. Fico até o fim da semana em La Paz, volto brevemente ao Brasil e parto de novo, para o Paraguai. A integração regional é complicada, mas é uma aventura fascinante.
sexta-feira, 6 de julho de 2007
Cristina de Kirchner
Continuando no clima “comentários sobre candidatos à presidência, não importa qual o país”, tenho que tratar da Argentina, visto que há poucos dias finalmente foi confirmado que a senadora Cristina de Kirchner disputará o cargo, encerrando a longa especulação sobre a eventual reeleição de Néstor Kirchner.
A escolha de Cristina me deixou feliz pelo mais egoísta dos motivos: o último capítulo da minha tese será sobre o governo de seu marido. Como ele não irá mais concorrer, posso encerrar meu trabalho com a análise de todo seu mandato. É o fim que eu precisava para meu estudo.
Pensando um pouco menos com meu umbigo, a decisão de Kirchner não surpreende. Os últimos meses foram muito desgastantes para o presidente argentino: escândalos de corrupção, manipulação dos índices de inflação, a longa crise internacional com o Uruguai, protestos oposicionistas em seu feudo eleitoral na província de Santa Cruz, a derrota de seu ministro da Educação na disputa pela prefeitura de Buenos Aires (ganhou o presidente do Boca Junior), sua ausência na cerimônia do aniversário de 25 anos da Guerra das Malvinas – seguida de um ataque um tanto ridículo a Margareth Thatcher, que ninguém nem lembrava que ainda está viva. Eu jurava que ela tinha virado estátua num museu de cera.
Como seria uma eventual presidenta Cristina? Qualquer cidadão argentino tem calafrios ao pensar na transmissão da presidência por laços familiares, depois da tragédia de Isabel Perón nos anos 70. Para não falar de Evita ou de Hilda Duhalde – o peronismo parece ter afinidade eletiva com mulheres fortes, quem se lembra das primeiras-damas dos presidentes da UCR, como Frondizi, Alfonsín ou De La Rúa?
Mas Cristina de Kirchner tem força política própria, pessoalmente acho que possui mais capacidade de negociação e diálogo do que o marido. Afinal, exerceu vários mandatos parlamentares como deputada provincial, nacional e senadora. O Congresso é uma escola importante para essas habilidades, que faltam ao presidente atual.
quarta-feira, 4 de julho de 2007
Barack Obama
Os comentários no último post me estimularam a escrever mais sobre questões raciais nos EUA, em especial a pré-candidatura de Barack Obama à presidência. Não é a primeira vez que um negro é cotado para o cargo – isso já ocorreu com o reverendo Jesse Jackson e houve especulações parecidas com o general Colin Powell. Contudo, os dois eram figuras de prestígio em outras áreas que tentaram utilizar sua reputação para uma carreira política. Obama é um caso à parte, pois trata-se de um político profissional. Seu sucesso depende unicamente do que é capaz de realizar nesse campo.
Filho de pai queniano negro e de mãe americana branca, nasceu no Havaí e passou a infância na Indonésia. Os pais eram pobres que ascenderam à classe média graças a bolsas de estudos e programas de auxílio governamentais, o filho brilhante cresceu em boas condições, estudou em Columbia e Harvard e lecionou direito constitucional em Chicago. Na cidade, trabalhou em movimentos comunitários e nos grupos anti-racismo. É o Sonho Americano encarnado, com forte componente de preocupações sociais.
A carreira política começou em Illinois, onde foi senador estadual. Em 2004, foi eleito para o senado federal. E ganhou fama nacional com um discurso na Convenção Democrata daquele ano. O partido investiu no jovem parlamentar, indicando-o para o Comitê de Relações Exteriores, um dos mais importantes do Congresso. Nessa posição, conhece os principais líderes mundiais e ganha conhecimento das questões diplomáticas e militares. Verdadeira escola de estadistas.
Os problemas: Obama não tem nenhuma experiência no Poder Executivo. Há quem acredite que ele pode jogar com isso, na medida em que há um repúdio de muitos eleitores americanos aos políticos tradicionais. Acredito que seria verdadeiro se ele disputasse um governo estadual (vide o fenômeno Schwarzenegger na Califórnia). Mas a presidência é outra história.
Uma segunda questão é que há certa relutância do movimento negro americano com relação a Obama, porque ele cresceu num ambiente bastante protegido de tensões raciais e seus pais não participaram das lutas épicas dos anos 60. Ele tem manejado a dificuldade de modo hábil, como no discurso que deu em Selma, palco de um dos conflitos mais importantes da época. Seu argumento é que um casal multirracial como seus pais jamais poderia ter se concretizado se não fosse pelo movimento dos direitos civis: “Então não me digam que não tenho nada a ver com Selma, Alabama. Não me digam que não estou em casa em Selma, Alabama.” De arrepiar. Um amigo brasileiro que mora nos EUA me disse que o mais encantador em Obama é que ele realmente parece sincero nas coisas que diz.
Pode ser, mas suas posições políticas são calculadas de maneira cuidadosa. Por exemplo, tem posturas reformistas moderadas em questões raciais, com um discurso de conciliação e integração. A mesma preocupação centrista aparece em temas como política externa e política social. A Economist se queixa da imprecisão de seu discurso. Acho que ele é muito esperto e pratica o que alguns teóricos chamam de “política da presença” - sua própria história de vida é um enorme atrativo, para além de suas idéias. Tem muito apelo para os jovens americanos, que as pesquisas indicam estar numa significativa guinada à esquerda.
Em suma, é um político para se observar com muita, muita atenção, neste dia em que os americanos comemoram o aniversário de sua independência.
terça-feira, 3 de julho de 2007
Dias de Julgamento
Há poucos dias a Suprema Corte dos EUA condenou por 5 x 4 o uso de critérios raciais para selecionar alunos para escolas em Washington e Kentucky, fazendo a ressalva de que a medida seria aceitável em situações especiais. A decisão judicial coincidiu com minha leitura do excelente “Judgment Days: Lyndon Baines Johnson, Martin Luther King Jr and the Laws that Changed America”, que conta a história do movimento pelos direitos civis a partir de uma biografia comparada do então presidente americano e do líder negro mais importante. A obra foi escrita por Nick Kotz, jornalista vencedor do Pulitzer e especializado em temas sociais.
Quando o Sul perdeu a Guerra Civil, o governo da União promulgou leis favoráveis aos ex-escravos. Mas o que garantia a legislação progressista era o Exército, que então ocupava os estados sulistas. O precário equilíbrio de forças foi rompido em 1876 - numa eleição presidencial disputada, o vencedor costurou um acordo com os políticos sulistas pelos quais lhes devolveria a autonomia, em troca de apoio. A partir dali os estados da região promulgaram um conjunto de leis racistas conhecidas como “Jim Crow”, que segregavam os negros em bairros, escolas, restaurantes e banheiros próprios e que na prática os proibiam de votar por uma série de artifícios, como taxas de registro eleitoral muito altas, testes educacionais impossíveis ou pura e simples intimidação e uso da força.
A situação começou a mudar na década de 1930. O New Deal de Roosevelt teve ações voltadas à melhoria das condições de vida dos negros, Truman encerrou a segregação nas Forças Armadas (1948) e em 1954 a Suprema Corte declarou inconstitucional a segregação nas escolas (foto). Kennedy deu passos fundamentais para colocar a decisão em prática, pressionado pelo formidável movimento que surgiu no sul dos EUA. Mas foi Johnson quem conseguiu a aprovação do Congresso para um pacote legislativo importatíssimo – a Lei dos Direitos Civis (1964) e a Lei dos Direitos do Voto (1965).
Kotz faz análise magistral da pressão social sobre o governo e na realidade, em cima do próprio Martin Luther King. O jovem pastor aspirava a uma carreira acadêmica, mas foi empurrado para a ação por seus inquietos paroquianos e pela ala jovem que questionava a sabedoria das manifestações pacíficas que terminavam sempre com eles apanhando da polícia e da KKK – e mais do que ocasionalmente, sendo assassinados. O livro relata em bela prosa os principais episódios das lutas: as marchas de Birmingham, Washington e Selma, o episódio do atentado terrorista que matou quatro meninas negras (uma das quais, Kotz não diz, era colega de escola da atual secretária de Estado, Condoleezza Rice), o surto de violência no Mississipi e o próprio assassinato de King.
Johnson começara a carreira política como New Dealer, mas migrou para posições conservadoras no pós-Segunda Guerra Mundial, quando ascendeu ao senado. Para a surpresa de muitos, o texano compreendeu a importância do movimento dos direitos civis e usou sua legendária habilidade parlamentar para consolidar a aliança bipartidária que venceu a oposição conservadora. Mas Johnson não é tido em alta conta nos EUA, em grande medida porque para satisfazer a direita, embarcou numa trágica política no Vietnã. Ao fim de seu governo havia 500 mil soldados americanos no país. Os gastos com o conflito minaram as políticas sociais de Johnson e as mortes na guerra lhe custaram a reeleição e a estima dos americanos, que continuam a preferir seu antecessor, JFK.
As leis anti-racismo dos anos 60 não acalmaram os conflitos raciais dos EUA. Como King percebera, foram apenas o começo. Ele tentou chamar a atenção do país para os problemas sociais dos guetos, que estouraram em revoltas sangrentas durante toda a década, mas sua ação nesse campo não foi bem-sucedida. E sua oposição ao Vietnã, ainda mais controversa, o estopim para a mágoa que Johnson lhe guardou – auxiliada por campanha difamatória do FBI, que lhe acusava diariamente perante o presidente de ser “agente do comunismo internacional”, além de revelar suas várias infidelidades conjugais (que horrorizavam o chefe de agência, J. Edgar Hoover, mas divertiam bastante Johnson, que adorava fofocas).
As leis dos anos 60 mudaram os EUA e ampliaram bastante a classe média negra – hoje estimada em 40% do total das pessoas com essa cor de pele. Mas como se vê pela estatística, a pobreza ainda tem cor nos Estados Unidos. Há longo caminho pela frente.
A decisão recente da Suprema Corte reflete as posições dos juízes nomeados pelo governo Bush, mas não é fato isolado. Há poucos anos o Texas e a Califórnia tomaram medida semelhante. Contudo, diz o New York Times, a sentença da Suprema Corte deverá ter pouco efeito prático, porque há muito apoio na sociedade para políticas de ação afirmativa, por órgãos públicos e por fundações privadas. Me pergunto o que acontecerá se Barack Obama foi o candidato democrata à presidência. Quando mais de 90% dos americanos dizem que topam um presidente negro, é uma possibilidade concreta a ser considerada.
domingo, 1 de julho de 2007
Cidade, Civilidade, Civilização
"O que aconteceu em Vila Cruzeiro foi uma chacina", nos dizia o deputado estadual Marcelo Freixo, em audiência pública na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. E prosseguiu nos contando as denúncias que ouviu dos moradores: a polícia fala em 19 mortos, todos traficantes abatidos em confronto. As pessoas que vivem no local afirmam que mais de 30 foram assassinados, incluindo adolescentes de 13 anos massacrados a facadas.
Há semanas que a tragédia se anunciava, com o cerco do complexo de favelas pela polícia, os tiroteios constantes e as atrocidades cometidas contra a população civil (creio que o termo, mais aplicado a conflitos militares, descreve bem o cenário carioca). Deve ser a centésima (milésima?) vez que isso acontece no Rio de Janeiro. Enquanto a Polícia Federal desmantela quadrilhas gigantescas sem disparar um tiro, a Polícia Militar insiste numa estratégia de confronto bélico de resultados pífios, que parece muito mais voltada para impressionar a platéia ("Vejam como a polícia está trabalhando!") do que para combater o crime.
Na audiência da Assembléia, muitas pessoas se emocionaram e algumas choraram. Já estou muito endurecido pelo Rio de Janeiro para me permitir esse luxo, mas ainda sinto raiva. Às vezes é tudo que podemos preservar.
O historiador Luiz Felipe Alencastro fez uma bela análise em seu blog sobre a foto que ilustra este post, comparando-a com uma imagem célebre de luta contra o apartheid:
"Claro que não há apartheid no Brasil, claro que o governo Lula e o governo de Sérgio Cabral, não tem nada em comum com o filo-nazista Vorster, primeiro-ministro sul-africano em 1976.
Mas as duas fotos transmitem o mesmo desespero de gente que tem muito em comum. Gente do Atlântico Negro, que vive em favelas, que tem seus direitos desrespeitados, que leva tiro da polícia sem saber porquê.
O menino da foto de Sam Nzima tinha 12 anos e se chamava Hector Pieterson. Hoje em Soweto há um memorial com o seu nome, homenageando as duas centenas de pessoas mortas em junho de 1976.
Como se chamava a criança da foto do Alemão? Que idade tinha? Será o menino de 13 anos, um dos três adolescentes incluídos nos 19 mortos da quarta-feira, coletivamente catalogados pela polícia e por uma parte da imprensa como “bandidos”? "
Cidade, civilidade e civilização têm a mesma raiz. Mestre Aristóteles dizia que a pólis havia sido criada para tornar a vida humana possível. A violência no Rio não é só o fracasso de uma determinada política de segurança pública, é também o testemunho da falência brasileira em construir uma sociedade baseada na desigualdade e na discriminação.
Assinar:
Postagens (Atom)