sábado, 14 de julho de 2007

Como o Céu é do Condor



Chama a atenção na política boliviana o protagonismo dos movimentos sociais. A Plaza San Francisco tomada pelo povo como o céu é do condor, diriam os poetas românticos do século XIX. Os partidos do país foram praticamente destruídos na década de 90 e a própria sigla do presidente Evo Morales, o Movimento ao Socialismo, já mostra desde o nome o quanto deve às organizações populares, mais do que às estruturas tradicionais da política. Apesar do apoio a Evo, as inquietas bases bolivianas questionam o governo. Os mineiros ocuparam a maior mina do Estado, em Oruro, e estão em greve. Os povos originários, que praticam o saudável princípio da rotação dos cargos de poder, não ficaram satisfeitos com a proposta de Evo em permitir a reeleição.

A popularidade de Evo já foi de 81%, hoje está em 50%. Havia expectativas muito grandes entre a população pobre de que tudo melhoraria rapidamente, mas claro que a vida não é assim. Primeiro, o governo enfrenta resistências conservadoras fortes, em especial da elite dos departamentos do Oriente, os mais ricos do país, que concentram os recursos econômicos como gás e soja. Segundo, a capacidade de ação do Estado é pequena, há defiências técnicas e poucas verbas. No Brasil, Lula pode usar políticas sociais como Bolsa Família e Pró-Uni para angariar apoio. Evo pode contar apenas com medidas mais drásticas, e de dificil implementação, como a reforma agrária e a nacionalização dos hidrocarbonetos.

A economia formal vai bem, com crescimento do PIB e uma taxa razoável de inflação. O problema é que a maioria da população vive do mercado informal, com rendimentos miseráveis. O salário mínimo é de cerca de R$150 e a maioria ganha abaixo disso. Não é à toa que muitos emigram. Estima-se que 2 milhões de bolivianos vivam fora do país, índice enorme para uma nação de cerca de 9 milhões de habitantes.

O mais radical dos líderes dos povos originários, o aymara Felipe Quispe, começou a atacar Evo, acusando-o de conluio com as elites tradicionais e as grandes empresas. Quipse liderou um movimento guerrilheiro nos anos 90, rapidamente desbaratado. Depois fundou o Movimento Indígena Pachakuti e questionou a legitimidade do Estado boliviano. Tem prestígio, mas obteve apenas 2% dos votos quando se candidatou à presidência. Seu antigo aliado, o respeitado professor Álvaro Garcia Lineira, rompeu com ele e é o atual vice-presidente.



Na Assembléia Constituinte, Evo não conseguiu os 2/3 necessários à aprovação das mudanças constitucionais, o que significa a necessidade de negociar para concretizar seus objetivos. A Assembléia discute até a probição da FIFA a jogos em altitude acima de 3000 m. Os parlamentares bolivianos querem declarar tal decisão “inconstitucional”, o que significaria na prática que nenhum jogo internacional poderia acontecer no país. Pode soar anedótico, mas nas conversas com os bolivianos percebi que eles se sentiram discriminados pela FIFA e que a entidade enfureceu muita gente, em todos os grupos políticos.

A questão mais espinhosa na Constituinte é a relação do governo central com os departamentos (equivalentes aos estados brasileiros), que exigem maior autonomia. Os ricos não querem arcar com os custos dos pobres e há bastante tensão racial no conflito, porque os departamentos prósperos têm muitos brancos e se ressentem da importância política crescente do movimento indígena. No entanto, a divisão não é simples. Mesmo em Santa Cruz, o centro oposicionista, há forte apoio a Evo na zona rural. Na realidade, foi lá que ele fundou seu partido.

Houve um referendo nacional sobre a autonomia, que foi vencido por pequena margem pelo governo central. Mesmo assim, permanece intensa mobilização regional nos “comitês cívicos”, que reunem empresários e políticos de oposição ao presidente. Agora Evo fala em “autonomia com solidariedade”, mas as negociações são complicadas porque também se trata de autonomia para as áreas dos povos originários (inclusive no uso do sistema judiciário tradicional), cujas fronteiras não coincidem com os departamentos oficiais. A Constituição que deveria ser promulgada em agosto ficou para dezembro, e olhe lá.

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