terça-feira, 3 de julho de 2007
Dias de Julgamento
Há poucos dias a Suprema Corte dos EUA condenou por 5 x 4 o uso de critérios raciais para selecionar alunos para escolas em Washington e Kentucky, fazendo a ressalva de que a medida seria aceitável em situações especiais. A decisão judicial coincidiu com minha leitura do excelente “Judgment Days: Lyndon Baines Johnson, Martin Luther King Jr and the Laws that Changed America”, que conta a história do movimento pelos direitos civis a partir de uma biografia comparada do então presidente americano e do líder negro mais importante. A obra foi escrita por Nick Kotz, jornalista vencedor do Pulitzer e especializado em temas sociais.
Quando o Sul perdeu a Guerra Civil, o governo da União promulgou leis favoráveis aos ex-escravos. Mas o que garantia a legislação progressista era o Exército, que então ocupava os estados sulistas. O precário equilíbrio de forças foi rompido em 1876 - numa eleição presidencial disputada, o vencedor costurou um acordo com os políticos sulistas pelos quais lhes devolveria a autonomia, em troca de apoio. A partir dali os estados da região promulgaram um conjunto de leis racistas conhecidas como “Jim Crow”, que segregavam os negros em bairros, escolas, restaurantes e banheiros próprios e que na prática os proibiam de votar por uma série de artifícios, como taxas de registro eleitoral muito altas, testes educacionais impossíveis ou pura e simples intimidação e uso da força.
A situação começou a mudar na década de 1930. O New Deal de Roosevelt teve ações voltadas à melhoria das condições de vida dos negros, Truman encerrou a segregação nas Forças Armadas (1948) e em 1954 a Suprema Corte declarou inconstitucional a segregação nas escolas (foto). Kennedy deu passos fundamentais para colocar a decisão em prática, pressionado pelo formidável movimento que surgiu no sul dos EUA. Mas foi Johnson quem conseguiu a aprovação do Congresso para um pacote legislativo importatíssimo – a Lei dos Direitos Civis (1964) e a Lei dos Direitos do Voto (1965).
Kotz faz análise magistral da pressão social sobre o governo e na realidade, em cima do próprio Martin Luther King. O jovem pastor aspirava a uma carreira acadêmica, mas foi empurrado para a ação por seus inquietos paroquianos e pela ala jovem que questionava a sabedoria das manifestações pacíficas que terminavam sempre com eles apanhando da polícia e da KKK – e mais do que ocasionalmente, sendo assassinados. O livro relata em bela prosa os principais episódios das lutas: as marchas de Birmingham, Washington e Selma, o episódio do atentado terrorista que matou quatro meninas negras (uma das quais, Kotz não diz, era colega de escola da atual secretária de Estado, Condoleezza Rice), o surto de violência no Mississipi e o próprio assassinato de King.
Johnson começara a carreira política como New Dealer, mas migrou para posições conservadoras no pós-Segunda Guerra Mundial, quando ascendeu ao senado. Para a surpresa de muitos, o texano compreendeu a importância do movimento dos direitos civis e usou sua legendária habilidade parlamentar para consolidar a aliança bipartidária que venceu a oposição conservadora. Mas Johnson não é tido em alta conta nos EUA, em grande medida porque para satisfazer a direita, embarcou numa trágica política no Vietnã. Ao fim de seu governo havia 500 mil soldados americanos no país. Os gastos com o conflito minaram as políticas sociais de Johnson e as mortes na guerra lhe custaram a reeleição e a estima dos americanos, que continuam a preferir seu antecessor, JFK.
As leis anti-racismo dos anos 60 não acalmaram os conflitos raciais dos EUA. Como King percebera, foram apenas o começo. Ele tentou chamar a atenção do país para os problemas sociais dos guetos, que estouraram em revoltas sangrentas durante toda a década, mas sua ação nesse campo não foi bem-sucedida. E sua oposição ao Vietnã, ainda mais controversa, o estopim para a mágoa que Johnson lhe guardou – auxiliada por campanha difamatória do FBI, que lhe acusava diariamente perante o presidente de ser “agente do comunismo internacional”, além de revelar suas várias infidelidades conjugais (que horrorizavam o chefe de agência, J. Edgar Hoover, mas divertiam bastante Johnson, que adorava fofocas).
As leis dos anos 60 mudaram os EUA e ampliaram bastante a classe média negra – hoje estimada em 40% do total das pessoas com essa cor de pele. Mas como se vê pela estatística, a pobreza ainda tem cor nos Estados Unidos. Há longo caminho pela frente.
A decisão recente da Suprema Corte reflete as posições dos juízes nomeados pelo governo Bush, mas não é fato isolado. Há poucos anos o Texas e a Califórnia tomaram medida semelhante. Contudo, diz o New York Times, a sentença da Suprema Corte deverá ter pouco efeito prático, porque há muito apoio na sociedade para políticas de ação afirmativa, por órgãos públicos e por fundações privadas. Me pergunto o que acontecerá se Barack Obama foi o candidato democrata à presidência. Quando mais de 90% dos americanos dizem que topam um presidente negro, é uma possibilidade concreta a ser considerada.
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5 comentários:
Andei lendo sobre esta aceitação do Barack Obama, independente de ele ser negro. Comecemos pelo princípio: se esta aceitação fosse realmente automática, será que seria necessário fazer uma pesquisa desse teor?
Acho que há muito discurso e pouca veracidade...
Parece que ainda hoje existe um afastamento dos negros do direito de votar, através de uma série de pequenos artifícios que lhes dificultam exercer seu direito.
Essa situação descrita por Marcus está bem exposta nos dois principais livros de Greg Palast: "A melhor democracia que o dinheiro pode comprar" e "Armed madhouse".
Salve, Igor.
Acho que a tendência pró-Obama é para valer - acabei de postar sobre ele. Mas não acredito que os americanos votariam em um candidato negro que tivesse um discurso forte contra o racismo, porque isso tocaria em muitas tensões da opinião pública. Contudo, acredito que eles dariam apoio a um negro que fosse um símbolo de integração e ascensão social.
Marcus e Patrick,
Sim, continua a haver manobras contra os votos negros no sul dos EUA, isso foi bem forte na eleição de 2000. A diferença atual é a escala, que hoje é muito menor.
Abraços
Pelo que li em "Armed madhouse", os truques eleitorais são um negócio em franca expansão.
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