sábado, 21 de julho de 2007

A Guerra Grande


Na época colonial, bandeirantes saíam de São Paulo e atacavam as missões jesuíticas no que hoje é o Paraguai, para escravizar os índios. Quando os dois países se tornaram independentes, as relações continuaram tensas, por disputas de fronteiras e pela navegação dos rios Paraná e Paraguai. Sem estradas e ferrovias que ligassem o interior brasileiro à Corte, as autoridades do país dependiam dessas vias fluviais para alcançar o centro-oeste, em especial a gigantesca e isolada província de Mato Grosso. O Brasil exigia a livre navegação em ambos os rios (embora se opussesse a isso no Amazonas). O Paraguai condicionava a questão à resolução das fronteiras. Essas foram as causas principais do feroz conflito de 1864-1870, que os brasileiros chamamos de Guerra do Paraguai, mas que no resto da América do Sul é mais conhecido como Guerra da Tríplice Aliança. Na república guarani, fala-se na Guerra Grande.

Minha leitura durante a viagem foi “Com a palavra, o Visconde do Rio Branco – a política exterior no parlamento imperial”, coletânea de discursos do melhor diplomata brasileiro do século XIX, recém-publicada pelo Itamaraty. Os textos cobrem o período de 1850 a 1875 e mostram como a política externa era um tema muito presente no debate doméstico do Império, ao contrário do que ocorreu na maior parte da República. Também ilustram a importância crucial das questões do Prata – hoje diríamos Cone Sul – na agenda diplomática brasileira. Os pontos mais controversos eram os ataques militares do Brasil aos países da região – Argentina, Uruguai e Paraguai – que culminaram na carnificina de 1864-1870.

Poucos brasileiros conhecemos essa história. Quando cessaram as guerras civis no início do Segundo Reinado, o Brasil voltou sua atenção para os turbulentos vizinhos do Prata. Nas décadas de 1850 e 1860 havia uma espécie de guerra civil transnacional na região, opondo os partidos blanco (centralistas) e colorado (federalistas). O Brasil em geral apoiava o último bloco, buscando impedir o surgimento de uma liderança que pudesse unificar os diversos países do Prata num só Estado ou coligação, que desafiaria a hegemonia brasileira.

Quem chegou mais perto disso foi o general argentino Juan Manuel de Rosas. No lance mais ousado da política externa brasileira da época, nosso país invadiu o Uruguai (onde o general Oribe, aliado de Rosas, estava perto de conseguir o poder) e em seguida levou a guerra à Argentina. Junto com opositores de Rosas, como Urquiza, o Brasil derrotou as tropas do general na batalha de Monte Caseros. Foi um feito militar e diplomático notável, pois Rosas havia resistido a anos de bloqueio por parte da Inglaterra e da França. As guerras brasileiras continuaram, em especial no turbulento Uruguai, onde muitos pecuaristas brasileiros possuíam fazendas.

Os discursos do visconde do Rio Branco cobrem todo o período, pois ascendeu na política como especialista nas questões platinas. Através dos debates parlamentares, vemos o curso das invasões ao Uruguai, a postura cautelosa nas guerras civis argentinas (depois da queda de Rosas o país se fragmentou em dois Estados, com Buenos Aires formando um governo em separado) e os conflitos crescentes com o Paraguai. O presidente paraguaio Carlos Lopez armou o país, mas manteve postura defensiva e receava ataques do Brasil e da Argentina. Seu filho Solano opôs-se aos conselhos do pai e procurou resolver pela guerra os problemas de fronteira. Num gesto suicida, atacou simultaneamente Brasil, Argentina e Uruguai.

O resto foi o conflito mais sangrento da história da América do Sul. Estima-se que o Brasil tenha perdido 50 mil homens – equivalente aos mortos dos EUA no Vietnã. O Paraguai foi inteiramente arrasado, embora até hoje o número de baixas seja muito controverso. Aliás, a guerra é estudada de maneira precária. Pouco sabemos, por exemplo, sobre como os escravos brasileiros que lutaram no Exército se relacionavam com seus superiores e colegas brancos. Tampouco está explicado como d. Pedro II – homem moderado e pacifista – decidiu por uma guerra de extermínio contra Lopez, em vez de simplesmente rechaçar a invasão paraguaia e tentar isolar o inimigo. No Paraguai, o imperador brasileiro é tido como açougueiro, qualificativo que em geral só aplicamos ao conde D´Eu, por sua conduta atroz à frente das forças brasileiras, no ano final da guerra.

A imagem do post é uma pintura de Candido Lopez (sem parentesco com a família presidencial paraguaia), soldado e artista argentino que perdeu um braço no conflito, mas ainda assim nos legou uma estupenda série de pinturas sobre a guerra. Quando morei em Buenos Aires, vi uma magnífica exposição de sua obra no Museu Histórico Nacional. Bem que poderíamos trazê-la ao Brasil e refletir um pouco sobre a irracionalidade da violência entre as quatro nações que hoje formam o Mercosul.

6 comentários:

debytes disse...

È engraçado e tragico, mas essa historia quase se repetiu ha 37 anos. Os militares brasileiros tinham um plano de invadir o Uruguay se a Frente Ampla, do Gal. Serengy ganhasse as eleiçoes.

Nao sei se imaginavam que Allende poderia vencer (como venceu) no Chile, que Peron, poderia voltar ( e voltou )a Argentina e era uma incognita, mais o Alvarado no Peru, levariam o Continente para as maos da esquerda,ou se agiriam por impulso.

O fato é quem venceu foi o filo facsita Bordaberry, marionete do Exercito, deposto pouco depois.

Debytes

Maurício Santoro disse...

Debytes,

Ouvi falar dessa história. Oscar Camilión, talvez o diplomata argentino que mais conheça o Brasil, afirma em suas memórias que nosso país sempre se preocupou muito com a importância geopolítica do Uruguai e que usava o país para enfraquecer a Argentina.

Ele cita as preocupações de Geisel com o Uruguai (onde servira como adido do Exército) e comenta até que viu no Itamaraty um mapa em que o país aparecia como "província cisplatina".

Acho que Camilión exagera, porque os militares brasileiros, como muitos de seus colegas sul-americanos, viveram uma overdose de geopolítica durante as ditaduras. O SNI chegou até a sugerir a invasão de Portugal (!!!) logo após a Revolução dos Cravos.

Abraços

Rodrigo Cerqueira disse...

Olá Maurício,

apenas sobre a questão Prata/Amazonas, que você cita no início, não considero a posição brasileira ambígua. Na verdade, os objetivos da nossa política externa eram muito diferentes nas duas bacias e, enquanto no Sul o Brasil exercia hegemonia sobre os vizinhos menores, no Norte era justamente o Brasil o mais fraco diante da amewaça de Inglaterra e EUA, ao menos na percepção do Império. No entanto, essa posição dúbia a que você se refere não durou muito, uma vez que no Amazonas o Brasil concedeu o direito de navegação aos vizinhos ribeirinhos no final do anos 1850, o que igualou as condições de utilização das duas bacias e deu legitimidade ao argumento brasileiro de manter fechado o Amazonas.

Estive no Chile e conheci algumas viúvas de Pinochet, embora seja Allende a figura retratada em souvenirs para turistas, como camisetas, canecas e cerâmica. Do general, não consegui comprar nem um postal. Bom sinal.

Grande abraço.

Maurício Santoro disse...

Olá, Rodrigo.

É claro que o interesse do governo brasileiro era manter o Amazonas fechado aos estrangeiros - ou mais precisamente, aos EUA e aos europeus. Isso aparece de maneira explícita nos debates parlamentares, com o temor de que aparecessem no Norte aventureiros como os que surgiram no Caribe, tentando derrubar os governos locais.

Contudo, a posição brasileira era contraditória em termos de princípios, porque advogava a abertura do Paraná e do Paraguai e dizia que só abriria o Amazonas à navegação internacional (para além dos ribeirinhos) quando fossem resolvidas as questões de limites com os países vizinhos - exatamente o que fazia o Paraguai.

Legal saber que você gostou da visita ao Chile. Gosto muito do país, qualquer dia preciso revê-lo.

Abraços

Rodrigo Cerqueira disse...

Sim, Maurício, mas no caso da bacia Platina o Brasil era ribeirinho. A Inglaterra é que, seguindo o princípio, ficaria de fora da navegação na região.

Aliás, para ficar no assunto, sua amiga Monica Hirst tem um bom artigo sobre as relações Brasil/Paraguai desde a guerra, conhece? Vale a pena dar uma olhada.

Grande abraço

Maurício Santoro disse...

Conheço sim, Rodrigo. Saiu na revista Política Externa. O embaixador Alberto da Costa e Silva também tem um artigo muito bom sobre o tema, que saiu no livro "Das Mãos do Oleiro".

Abraço