terça-feira, 14 de agosto de 2007

José de Alencar, o Inimigo do Rei



Esbulhada de todos os direitos, reduzida à simples matéria recrutável e contribuinte, a plebe deve com efeito se tornar combustível para as revoluções. O primeiro audaz que tiver ensejo de lançar-lhe uma faísca, levantará o incêndio. Nestas condições, não admira que haja revoluções, porém que as haja em tão pequeno número.

Calma, queridos leitores: não falarei do vice-presidente, líder empresarial subversivo, industrial herege sempre à busca de reduções dos juros para perturbar a paz da república operária-financista. Me refiro ao seu xará do século XIX, o genial escritor, tema da bela biografia “O Inimigo do Rei”, do jornalista Lira Neto, também autor de livros sobre o marechal Castello Branco e a cantora Maysa.

Fui atrás desta biografia após a leitura sobre a vida de Machado de Assis, claro. No colégio, Alencar estava em baixa. Era estudado sobretudo como exemplo do romantismo indianista e ninguém se interessava muito por ele. Foi só anos mais tarde, que fato passei a gostar do escritor. Nem tanto por seus índios que falam como senadores do Império e mais por seus “perfis de mulheres”, sobretudo “Senhora”.

O que me agrada no “Guarani” e em “Iracema” é a disputa pela identidade nacional, pela construção da imagem do país que nascia. Lira Neto mostra isso de maneira magistral, abordando a polêmica sobre os índios na literatura que Alencar manteve com o círculo de bajuladores do imperador – até o próprio Pedro II pegou a pena e entrou na peleja para defender seu protegido Gonçalves de Magalhães. Também acho fantástica a defesa da miscigenação por Alencar, ainda que nas entrelinhas, como no final do Guarani. Ou reconhecendo as dores do processo, como em Iracema. Era um mestre.

Também é fascinante sua intensa participação na política da época, muito bem analisada pela biografia. Chequem, por exemplo, o prólogo do livro, no qual Lira Neto descreve Alencar discursando na Câmara dos Deputados e esculhambando o Duque de Caixas, então primeiro-ministro, e todo o Partido Conservador, do qual Alencar era um membro instável e rebelde.

Traços que parecem ter vindo do berço, pois seu pai foi um dos políticos mais importantes do Primeiro Reinado: padre José Martiniano de Alencar, sacerdote, conspirador emérito, revolucionário de todos os levantes liberais das décadas de 1810-1840, presidente de sua província natal do Ceará, deputado e senador. E pai de oito filhos, nascidos de sua prima, que ele mesmo batizava. A Igreja era mais divertida naqueles tempos.

Alencar filho seguiu os passos do pai e teve carreira política como deputado e ministro da Justiça. Contudo, preferiu o campo conservador, onde nunca se sentiu à vontade, em especial pela péssima relação que mantinha com o imperador. Dou certa razão a dom Pedro II, porque o escritor era mesmo osso duro de roer, passional e vingativo. Chegou a tirar a verba pública do teatro de João Caetano, então o maior ator do Brasil, porque ele se recusara a representar uma peça sua. Caetano ficou tão tenso que adoeceu e morreu meses depois, falido.

Como Machado de Assis, Alencar foi mestre do folhetim, da escrita diária nos jornais, da crônica atenta e bem-humorada do cotidiano. A biografia também destaca sua atuação como diretor do Diário do Rio de Janeiro, quando foi pioneiro da distribuição de brindes aos leitores (livros, não panelas e carros em miniatura, como acontece hoje em dia) e crítico dos vícios do jornalismo, como a dependência da publicidade oficial, ainda que cometesse o mesmo pecado...

Gostaria que “Inimigo do Rei” desse mais atenção a como Alencar abordou a escravidão, pois esse foi o tema social mais importante de seu tempo e sua postura foi contraditória. Votou contra as leis abolicionistas no Parlamento, mas quando ministro proibiu os leilões de escravos em praça pública e a separação das famílias cativas. Em sua obra – em especial na peça O Demônio Familiar – a visão da escravidão é bastante ambígua. É certo que não foi um abolicionista como Machado ou Castro Alves, mas seu pensamento a respeito do problema merece um estudo mais aprofundado.

Outro ponto que necessitava mais atenção é a análise do livro “O Governo Representativo”, do qual extraí a citação que abre o post. Estudei essa obra com o professor Wanderley Guilherme dos Santos, num excelente curso em que líamos também “Considerações sobre o Governo Representativo”, de Stuart Mill. Os dois escritores foram contemporâneos e impressiona como Alencar estava atualizadíssimo com a ciência política de sua época, chegando a mesmo a resolver problemas teóricos de modo mais interessante que o grande liberal britânico. Novamente, são posições que escapam à camisa de força conservadora onde às vezes Alencar é aprisionado.

2 comentários:

dra disse...

Olá Maurício:

meu colega lá do DCP-USP, Bernardo Ricupero (filho do ex-ministro), tb tem um belo livro em q analisa o esforço de construção da nacionalidade na obra de Alencar, inclusive fazendo um contraponto com escritores românticos argentinos (gente da famosa "geração de 37"). saiu publicado pela Martins Fontes. vc conhece?
abs,

Maurício Santoro disse...

Oi, Dra.

Ouvi falar muito bem do trabalho do Ricupero, mas ainda não li o livro. O tema me interessa bastante, inclusive porque também gosto muito dos argentinos que você mencionou, como Sarmiento e Echeverria, a turma da oposição ao Rosas.

Por coincidência, ando importunando uma amiga que prepara um projeto de doutorado em Ciência Política, justamente para que ela pesquise algo como "literatura e identidade nacional" comparando Argentina, Brasil e México no século XIX. As conversas andam tão entusiasmadas que talvez eu roube o projeto dela, se ela desistir da idéia!

Abraços