sexta-feira, 24 de agosto de 2007

O Choque de Civilizações no Planeta Favela



Um amigo me chamou a atenção para o artigo de Leonardo Boff em que o teólogo afirma que o verdadeiro “choque de civilizações” não será entre religiões ou culturas nacionais, mas ocorrerá entre populações urbanas marginalizadas e aquilo que no Rio de Janeiro chamamos de “asfalto”, os bairros de classe média e alta.

Boff cita com admiração o livro “Planeta Favela”, do geógrafo americano Mike Davis, que é sem dúvida um dos pensadores mais originais na encruzilhada entre problemas sócio-ambientais e relações internacionais. Contudo, acho que ele é mais útil como um provocador, alguém que identifica padrões globais, do que como um analista capaz de influenciar o debate sobre políticas públicas. Isso porque Davis tem uma retórica tão apocalíptica que ao leitor crédulo só resta armazenar comida, comprar um fuzil de assalto e arrepender-se rapidamente dos pecados.



Em “Planeta Favela” Davis aponta para o fenômeno gêmeo da crescente urbanização e favelização globais: basicamente porque a maioria dos novos moradores das cidades vão para as periferias das capitais dos terceiro mundo, alguma das quais cresceram ao limite do absurdo, como Lagos, na Nigéria. A tese do geógrafo é que essas populações são o epicentro de uma série de calamidades, de problemas de saúde à violência, passando por especulação imobiliária. O fim está próximo, como não cansam de advertir meus vizinhos de trabalho no Largo da Carioca.

Claro que muito do que Davis aponta é verdade, mas minha experiência de campo em favelas latino-americanas é de que a história não é bem essa. Longe de serem sucursais do inferno, muitas favelas são soluções extremamente criativas de moradia barata, de criação de práticas artísticas e culturais e de vínculos de solidariedade comunitária. Em relação à miséria rural, uma casa em El Alto ou Rocinha (para não mencionar locais em outros continentes, como Kibera, Soweto, Dharavi) costuma ser um passo à frente, ainda que em condições precárias. Há em Davis um pouco do tom do intelectual ocidental chocado com o que considera a barbárie do Terceiro Mundo, sem notar que os costumes de sua classe social e país de origem não são as leis universais do comportamento humano.

Boff também comenta os estudos dos militares dos EUA a respeito dos conflitos em áreas favelizadas e faz o paralelo com o Rio de Janeiro. Pensei imediatamente na batalha de Mogadício, descrita de maneira brilhante no livro “Falcão Negro em Perigo”, do jornalista Mark Bowden (clique aqui para ler o primeiro capítulo). A história virou filme e é bastante conhecida: os EUA estavam em missão de paz na Somália e tentaram prender líderes de um dos clãs que disputavam o poder no país. A operação deu errado, dois helicópteros foram abatidos e o que se seguiu foi uma espécie de rebelião popular contra a presença americana, que terminou em centenas de mortos e na retirada das tropas dos Estados Unidos daquele país.



Bowden termina o livro com a previsão sombria de que as guerras do século XXI irão se parecer mais com a batalha de Mogadício do que com os combates clássicos entre dois exércitos inimigos num campo aberto. Ele afirma que o Pentágono, apesar de alguns esforços, ainda não considera seriamente as implicações dessa nova forma de luta.

Tinha lido Bowden logo depois de “Elite da Tropa”, do antropólogo Luís Eduardo Soares e dos ex-oficiais da PM Rodrigo Pimentel e André Batista. Fiquei muito espantado com a semelhança das ações do Batalhão de Operações Especiais da polícia fluminense e o tipo de enrascada em os Rangers e Deltas americanos se meteram na Somália. Não por acaso, a equipe de efeitos especiais que adaptou a história de Bowden ao cinema está fazendo o mesmo trabalho no filme sobre o BOPE.

2 comentários:

Alessandro Ferreira disse...

Caro Maumau,


"o teólogo afirma que o verdadeiro “choque de civilizações” não será entre religiões ou culturas nacionais, mas ocorrerá entre populações urbanas marginalizadas e aquilo que no Rio de Janeiro chamamos de “asfalto”, os bairros de classe média e alta."

Você acredita mesmo nisso? Quantas vezes você já ouviu coisas do tipo 'no dia em que os favelados souberem de sua força, descem os morros e tomam a cidade.'? Eu já ouvi várias, e costumo atribuir a batatada à ignorância pura e simples, ou à má-fé - observe que a frase fala no 'favelado', mas a força a que se refere vem das armas do tráfico - logo, segundo esse raciosímio, todo favelado tem um fuzil em casa e deveria usá-lo para fazer a revolução. Preconceito do brabo, no melhor estilo 'todo pobre é bandido, ou tende a sê-lo em algum momento da vida'. Pfui.
Esse papo, além de manjadíssimo (o 'teológo' que nega Deus dve estar sem nada pra fazer), a meu ver é fruto de graves distorções entre o que o favelado é e o que alguns gostariam que ele fosse. Ele é: excluído, desfavorecido, desrespeitado, abusado, sofrido, humilhado. E tantas outras "qualificações" que podem ser usadas aqui. O favelado, contudo, NÃO É um integrante de outra civilização: só nas cabeças desvairadas de alguns intelequitoais (a maioria de esquerda, mas deixa isso pra lá) o favelado é visto como um 'diferente'. Exclusão social não faz ninguém diferente de nós, os 'incluídos', no que o ser humano tem de essencial, que é a vontade e a capacidade de buscar o que é melhor para si. Os favelados que eu conheço gostariam mesmo é de deixar a favela pra trás e morar num bairro decente, ou gostariam, pelo menos, que o esgoto deixasse de correr nas suas portas - só a Regina Casé deve achar que favela é só alegria, mesmo com a enchente arrastando tudo - o que desmonta já na origem essa conversa mole de 'choque de civilizações'- impressionante como os picaretas (sim, Boff é picareta) dizem detestar Huntington (outro mané), mas usam e abusam da expressão cunhada pelo cara - que é intelectualmente pobre, reducionista e preconceituosa, para dizer o mínimo.

Abração.

Maurício Santoro disse...

Salve, Alessandro.

Não, não acredito em choque de civilizações. A expressão me soa como uma contradição em termos. Civilização, para mim, é capacidade de diálogo, aprendizado e assimilação.

O que eu acredito é que situações de desigualdades sociais elevadas, como é o caso do Brasil, são explosivas e com um forte potencial de conflitos.

No caso da relação favela/asfalto, acho as previsões do Boff e do Davis muito pessimistas, embora reconheça que eles apontaram questões importantes, que farão parte da agenda política dos próximos anos.

Abraços