quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Perspectivas de Cristina Kirchner



Reproduzo abaixo artigo que publiquei ontem na RelNet:

Os Kirchner realizaram o sonho dos Clinton. A vitória da primeira-dama e senadora Cristina Fernández de Kirchner nas eleições presidenciais de 28 de outubro consolida o casal como principal liderança política da Argentina. A senadora tem longos anos de experiência como parlamentar e mais capacidade de diálogo e negociação do que o marido. Sua chegada à presidência desperta expectativas de como lidará com os problemas na economia e na política externa.

Néstor Kirchner foi eleito presidente em 2003 com apenas 22% dos votos. Em seus dois primeiros anos na Casa Rosada teve que lidar com a complexa retomada do crescimento econômico a e com a luta de poder pelo controle do peronismo. Manteve o hábil ministro da Economia Roberto Lavagna, herdado de seu antecessor Eduardo Duhalde, ao mesmo tempo em que disputava com este a chefia do Partido Justicialista. O triunfo veio nas eleições parlamentares de 2005, quando Cristina Kirchner derrotou a esposa de Duhalde, Hilda, na contenta por uma vaga como senadora pela província de Buenos Aires. Lavagna deixou o governo.

A fragilidade da base política do presidente levou a práticas agressivas e centralizadoras. Internamente, isso significou um governo com poderes muito concentrados no círculo íntimo da Casa Rosada, incluindo a primeira-dama Cristina e os ministros Alberto Fernández e Julio de Vido. Houve repetidos escândalos de corrupção entre o primeiro escalão do governo e intervenções políticas no instituto estatístico, o Indec, que levaram a acusações de que as autoridades manipulam os índices de inflação, que aumentaram muito em função do crescimento dos gastos governamentais e do reaquecimento da economia.

Externamente, Kirchner assumiu por vezes posturas nacionalistas intransigentes, que resultaram em tensões com o Brasil (por temas que iam do pleito brasileiro a lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU à controvérsias comerciais no Mercosul) e em grave crise diplomática com o Uruguai, a partir da oposição à construção de fábricas de celulose na cidade uruguaia de Fray Bentos, junto à fronteira entre os dois países. A proximidade com a Venezuela também incomoda muitos setores da opinião pública argentina.

A senadora nunca foi marionete passiva dos planos do marido. Formou-se em Direito pela Universidade Nacional de La Plata e conheceu Kirchner quando ambos militavam na Juventude Peronista. Casaram-se em 1975, pouco antes do golpe militar, e mantiveram-se afastados da luta armada, trabalhando como advogados na província de Santa Cruz. Cristina entrou para a política local em 1985 e desde então exerceu diversos mandatos como vereadora, deputada provincial e nacional e senadora. Tornou-se conhecida nacionalmente primeiro do que marido e já tinha o apelido de “furacão” antes de se tornar primeira-dama.

Em 2006 as especulações eram fortes de que Cristina seria candidata à presidência e ao longo do ano ela realizou diversas viagens internacionais, nas quais procurou projetar imagem de Estadista e de defensora dos direitos humanos. Em contraste com o marido, pouco à vontade nas relações externas, Cristina mostrou desenvoltura em negociações com líderes conservadores, como Sarkozy na França e Calderón no México. Também é notável a relação que desenvolveu com o casal Clinton nos Estados Unidos, que a recebeu com honras em sua última visita ao país, em setembro de 2007. Eventual vitória democrata na corrida à Casa Branca aproximaria EUA e Argentina, com base em temas como as posições comuns contra o Irã – o país é acusado de patrocinar dois sangrentos atentados contra alvos judaicos em Buenos Aires, em 1992 e 1994.

A eleição de Cristina coloca dois dos principais países do Cone Sul sob o governo de mulheres. Como será sua relação com a presidente chilena, Michelle Bachelet? A excelente relação econômica entre Argentina e Chile enfrenta dificuldades. Por conta da crise de abastecimento energético argentino, o país cortou exportações de gás aos chilenos. A maior flexibilidade negociadora de Cristina aponta ao menos para perspectivas positivas de sair do impasse.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Willy Wonka montará fábrica de marginais no Rio



RIO DE JANEIRO, 30 OUT – O empresário Willy Wonka anunciou nesta terça que criará uma fábrica de marginais no Rio. Wonka se disse estimulado pelas declarações do governador Sérgio Cabral, que vê nas 700 favelas da cidade fonte inesgotável de matéria-prima para esse produto: “Já era hora de eu dar uma guinada nos negócios. Chocolate não garante o angu de ninguém.”

A imprensa internacional especula que Wonka poderá inclusive se mudar para o Rio de Janeiro e comprar uma casa no bairro da Barra da Tijuca, região que apresenta notável semelhança com os ideais administrativos do visionário magnata. O empresário vem tendo aborrecimentos após ter sido preso na Tailândia tentando convencer um menino a escutar com ele um disco de Michael Jackson. O escândalo se somou a rumores perturbadores envolvendo os Oompa-Loopa: “Tive um mal-entendido a respeito e não falo mais sobre o assunto. Só gostaria de aproveitar a oportunidade para agradecer ao Vaticano, que recomendou advogados muito bons."

(Abaixo, foto que consta dos autos do processo):




Wonka pretende aproveitar a alta demanda por marginais no Mercosul e lançar modelos que vão de traficante-torturado-pelo-BOPE (“Será mais barato, virá sem um braço”) a senador-do- Conselho-de-Ética”. Ele não se assusta com a fama de corrupção do Brasil: “Li excelente estudo de cientista político brasileiro que descobriu que, quanto mais rica a pessoa, mais honesta ela é. Por isso busco sócios do porte financeiro de Renan Calheiros e Daniel Dantas.”

O empresário está otimista quanto às possibilidades de lucro, e reclama apenas da ação da Polícia Militar fluminense: “No ritmo em que ela tem agido no Complexo do Alemão e na Favela da Coréia, vai acabar com os pobres antes que eu comece a operar. Se eu tiver que buscar matéria-prima em Brasília, meus custos vão aumentar muito.”

domingo, 28 de outubro de 2007

O peronismo visto do Brasil


Anedota argentina: visitante estrangeiro pergunta a Perón como o país se divide politicamente. Ele lhe responde com as porcentagens de cada corrente, como socialistas, liberais, conservadores, comunistas. “E os peronistas, meu general?”, “Ora, peronistas somos todos!”

De fato, quando entrevistei altos funcionários do governo Menem para minha tese, me impressionou o quanto a etiqueta de “peronista” se colava a pessoas que em outros países seriam tranqüilamente classificadas sob um amplo leque de categorias políticas. Tenho até uma amiga cordobesa, antiperonista convicta, que votará neste domingo em... Cristina Kirchner. A vida tem dessas coisas.

O peronismo sempre teve má imagem na imprensa brasileira, porque o movimento surgiu e se consolidou no momento (1943-1945) em que estava no auge a mobilização democrática pelo fim da ditadura Vargas. Mas a cobertura desta eleição presidencial foi marcada por hostilidade recorde ao casal Kirchner, me senti na década de 1950. Um apresentador da Globo (de onde mais?) chegou a pregar que a Argentina mostraria os riscos de uma “República Sindicalista”. Tive que pegar o galho de arruda que reservo para essas ocasiões e orar diante da TV: “Carlos Lacerda, sai desse corpo, ele não te pertence!”.

Há muito o que criticar nos Kirchner: autoritarismo, corrupção em seu circulo íntimo, manipulação da inflação, instransigência na politica externa. Ainda assim, tais defeitos são comuns a muitos outros políticos latino-americanos – digamos, aos presidentes da Colômbia, do Peru e do México – que não recebem o mesmo tratamento agressivo. Por que tanto ódio no coração?

O governo Kirchner violou dois tabus da política brasileira: renegociou a dívida externa e quebrou a impunidade dos crimes cometidos pela ditadura militar. Ambas as medidas deram certo e lhe renderam popularidade. Tanto ativismo incomoda ao governo e à oposição no Brasil. Claro que o contexto aqui é diferente, mas o exemplo argentino pode fazer as pessoas pensarem um pouco sobre os limites do possível.

A imprensa brasileira tem dito que o peronismo “nunca esteve tão dividido”. Bobagem. Qualquer um que conheça o mínimo de história argentina sabe que esse momento foi nos anos 1970, quando a extrema-direita (Triple A) e a extrema-esquerda (Montoneros) do peronismo travaram verdadeira guerra civil, com tragédias nacionais como o massacre de Ezeiza.



Ademais, o peronismo sempre foi fragmentado. É exemplo típico do catch-all party do que fala a ciência política. A expressão é de difícil tradução – FHC usava “partido ônibus”, em seus tempos de sociólogo, mas isso foi antes de ele próprio subir no coletivo... Em todo caso, o conceito define uma coalizão heterogênea, sem ideologia precisa, que apela a pessoas de várias classes sociais – ainda que o peronismo tenha um forte componente de identidade com os trabalhadores argentinos, bem mais do que governantes semelhantes como Vargas no Brasil ou Haya de la Torre no Peru.

Para onde vai o ônibus, sob a condução de Cristina?

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Dumbledore para Ali: “Tu é Kamel, que eu sei!”



HOGWARTHS, Reino Unido – 26 OUT: O mago Albus Dumbledore, diretor da Escola de Bruxaria de Hogwarths, deu coletiva de imprensa nesta manhã e mandou recado para o o diretor de jornalismo das Organizações Globo: “Tu é Kamel, que eu sei!”. Dumbledore não explicou sua misteriosa declaração, mas analistas acreditam que ela se relaciona à polêmica sobre a manipulação de livros didáticos no Brasil. Kamel lançou recentemente Cruzada para expurgar o comunismo das escolas brasileiras, na mesma época em que o diretor de Hogwarths anunciou ser homossexual. A ligação dos dois fatos lançou a polêmica: o que estão ensinando a nossas crianças na escola de bruxaria?

Para a diretora do Departamento de Moral e Bons Costumes da organização católica Gladius Dei, Gretchen Samantha, a campanha de Kamel é um alerta fundamental , que precisa ser estendido para outras esferas da educação: “Nossas crianças adoram Harry Potter e não sabemos o que pregam os livros didáticos de Hogwarths. Quem sabe o que aquele pederasta escolheu? Além do mais, o visual barbudo só pode significar uma coisa: ele é petista!”



Dumbledore nega que tenha pertencido ao PT, embora admita que tenha uma queda pelo deputado Fernando Gabeira (“Mas é uma coisa de pele, suprapartidária”). Ele jura que os livros utilizados na escola são objetivos e equilibrados, neutros do ponto de vista político.

“É mentira!', denuncia Gretchen (abaixo, ao fim da mesa, vestida de azul), em meio à reunião de emergência da Gladius Dei. “Comunistas comem crianças e só Deus e Ali Kamel sabem o que Dumbledore fez com Harry Potter em todos aqueles corredores escuros. Você não acha estranho que o rapaz nunca tenha se interessado pela belezinha da Hermione?”.



Gretchen também observa que os hábitos dos magos, como transformar objetos em animais, representam profundo desrespeito à propriedade privada, o que comprova a filiação da seita aos ditames de Moscou, Pequim, Pyongyang e Brasília: “Venho entupindo o Reinaldo Azevedo e o Diogo Mainardi de emails, chamando a atenção desses paladinos da liberdade para o problema. Aliás, eles são gatinhos. Se pego um deles num beco da favela da Coréia, vestido com o uniforme do BOPE, Deus meu..."

Na Gladius Dei, Gretchen representa a ala com consciência social. Talvez por sua origem humilde, de ex-dançarina da boate Acuda! (a prima pobre da Help!), ela seja crítica aos estratos superiores de nossa sociedade: "A elite brasileira é muito alienada! Só vão acordar quando o Exército chavista desembarcar em Niterói, o Leblon virar um gulag e as novelas do Manoel Carlos forem proibidas. Aí vão rastejar implorando por uma Bolsa Família”, desabafa.

A Gladius Dei quer banir os livros de Harry Potter até que o caso Dumbledore seja esclarecido. Em seu lugar, a organização pretende doar às escolas diversas edições da Playboy de Mônica Velozo: “Ela é a melhor Maria Madalena desde Barbara Hershey, um exemplo de transparência para nossos filhos e e um estímulo para leituras ideologicamente saudáveis, como as revistas da Editora Abril.”

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

A Aprendizagem de Wilhelm Meister



Ele era um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante
(...)
Amava a mulher
A mais não poder
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita
Por isso sofria
De melancolia
Sonhando o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser


Vinicius de Moraes e Toquinho, “O Poeta Aprendiz”

Aprendi com Lukacs que o romance é “a epopéia de um mundo sem Deus”, expressão da crise da modernidade, em que herói com grandes expectativas se defronta com mundo mesquinho, demasiado estreito para suas ambições e sonhos. Dom Quixote, sem cavalaria, contenta-se com moinhos de vento. Emma Bovary busca nos amantes a vida que o casamento não preenche. Os fabulosos arrivistas de Stendhal e Balzac quase sempre fracassam em suas escaladas sociais. Os alemães desenvolveram um sub-gênero muito próprio a tal história de desilusões: Bildungsroman. Em geral traduz-se por “romance de formação”, mas a expressão deixa escapar algo. Bildung não tem equivalente em português, é educação completa, construção da personalidade, assimilação da cultura. Precisamos do grego e do latim: paidéia, humanitas.

No romance de formação, a aventura do herói é ser ele mesmo. Ou por outra, descobrir às custas de erros, enganos e desvios, quem de fato é. Qual o sentido de sua vida e que papel ocupa na sociedade. Em geral são enredos que começam com um jovem que deixa a cidade natal, e acabam com seu casamento, e/ou ascensão a posição de destaque. Há belíssimos exemplos em Rousseau (Emílio), Flaubert (Educação Sentimental), Hesse (Demian), Thomas Mann (Montanha Mágica). E, claro, Goethe - abaixo, em sua melhor pose de conselheiro de Weimar - com seu estupendo “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”, que me rendeu horas felizes ao longo desta última semana.



Wilhelm é um rapaz da classe média alta, filho de comerciante de posses. Ele se apaixona por uma atriz e pelo teatro e se junta a uma trupe de atores mambembes na Alemanha. Viaja por povoados rurais, cidades, conhece a vida nas cortes dos pequenos Estados da época.

E descobre que a vida de artista não é para ele, que seu temperamento é o de um burguês, de curtir as coisas simples da existência e sonhar em criar filhos e ter um casamento feliz. Reflexão de um Goethe mais maduro e seguro de sua posição social, em contraste com o angustiado burguesinho que escreveu Werther, ressentido porque as jovens aristocratas não lhe davam bola.

As artes cênicas não estão à toa na vida de Wilhelm. Naquela época fervia o debate na Alemanha sobre a criação do “teatro nacional”, que seria a principal esfera para os debates daquele emaranhado de cidades, principados, ducados e feudos mais ou menos ligados pela vassalagem ao Império Romano-Germânico. Todos os grandes escritores do período, como Lessing e Schiller, envolveram-se nas lides do palco. Goethe chegou mesmo a dirigir um teatro e com certeza recolheu muitas dos casos saborosos que conta ao longo do romance, como as intrigas e fofocas entre os atores. O jovem Wilhelm nunca cansa de se espantar em como seus ideais artísticos chocam-se com a realidade tão prosaica da trupe mambembe, com seus colegas mais interessados em beber e ganhar dinheiro.

Outro ponto alto do romance é a valorização de Shakespeare, autor então considerado bárbaro e selvagem. O bom gosto era apreciar Corneille, Racine, os clássicos franceses. É toque de gênio de Goethe que quem introduz Wilhelm ao Bardo seja um personagem ambíguo, um militar filho bastardo de príncipe. Muitos dos melhores momentos do livro vêm das discussões sobre Shakespeare, incluindo uma esplêndida apresentação de Hamlet, descrita de maneira tão poderosa que temos vontade de aplaudir, como crianças.

Há muito sexo no romance – o século XVIII não era tão pudico quanto épocas posteriores. As aventuras amorosas com atrizes, burguesas e aristocratas são parte essencial da história de Wilhelm, ainda que possamos reclamar de como suas amadas sempre são tão nobres e dedicadas. Mas gostei da amizade colorida dele com Philine, sua colega de trupe, uma mulher sensual, irreverente e incontrolável, que rende ótimas passagens do livro.

Também há política, mas ela entra aos poucos, de maneira sutil. Wilhelm Meister foi escrito na década de 1790, período em que a Revolução Francesa oscila de sua fase mais radical (o terror jacobino) até a guinada conservadora sob o Diretório e seu jovem general Napoleão. A principal figura política do romance é Lothario, aristocrata idealista, com planos de reforma social, que lutou na América ao lado de Lafayette e Washington. E ao voltar à terra natal, descobre que a América pode estar em qualquer parte. É Lothario quem conduzirá Wilhelm à Sociedade da Torre, uma espécie de maçonaria que acompanhava seus passos e o convencerá de que não basta desenvolver a personalidade individual, a realização plena do ser humano só se dá com a participação na esfera pública, nos destinos comuns.

Está certo de um modo bem idealizado, a Torre é uma espécie de embrião da sociedade futura. É significativo que o romance termine, tal qual novela das 20h, num monte de casamentos entre classes sociais diferentes, porque no novo mundo (a América é em qualquer parte) tais fronteiras não teriam sentido e como diz um personagem, "Grandes transformações nos esperam".

Eu diria, como na oração budista, que é preciso participar alegremente das tristezas deste mundo. Vida longa a Wilhelm, que somos todos nós!

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Sarlo no Roda Viva


Um dos meus maus hábitos é nunca lembrar de assistir ao programa Roda Viva, na TV Cultura. Felizmente ontem o Alexandre me avisou de que a entrevistada era a escritora e crítica literária argentina Beatriz Sarlo, de quem sou fã. Embora as perguntas que os jornalistas lhe fizeram não favorecessem, o papo foi muito inteligente.

Sarlo é autora de livros primorosos sobre os enlaces entre cultura e política na Argentina, como A Paixão e a Exceção – Borges, Evita, Montoneros, Cenas da Vida Pós-Moderna e Una Modernidad Periférica – Buenos Aires, 1920-1930. O problema é que aparentemente seus entrevistadores não leram essas obras e o resultado foi uma dúzia de perguntas-clichês sobre o que ela pensa a respeito de Kirchner, Chávez e Morales.

Como Sarlo é muito inteligente e lúcida, a conversa foi interessante, ainda que em muitos casos os jornalistas parecessem estar à busca da confirmação de seus preconceitos relacionados à América Latina. Mistura de arrogância, ignorância e notável ausência de curiosidade sobre o continente. Nessas ocasiões, penso no extraordinário filme “Passageiro: Profissão Repórter”, de Michelangelo Antonioni, quando num dado momento o africano que está sendo entrevistado pelo personagem de Jack Nicholson toma a câmera de TV de suas mãos e a aponta na direção do jornalista: “Suas perguntas falam mais sobre você do que sobre mim”.

Se eu estivesse entre os entrevistadores do Roda Viva, perguntaria a Sarlo sobre como a literatura contemporânea da Argentina reflete sobre a crise de 1998-2002. Gostaria de saber sua opinião sobre os romances recentes de Tomas Eloy Martinez, Cesar Aira, Martin Kohan. Houve um momento em que começou a se discutir a relação do cinema argentino com a memória a respeito da ditadura militar, mas infelizmente o assunto promissor não foi desenvolvido. Ou quem sabe falar de sua experiência na formação da Frente País Solidário, uma das esperanças frustradas da política argentina dos anos 1990. Que diabos, eu colocaria o Idelber Avelar para debater com dona Beatriz. Bem queria vê-los trocar idéias sobre Juan José Saer.

Por fim, mas não menos importante, pediria a Sarlo para falar do que me parece a reinvenção da identidade nacional argentina pós-crise, com uma espantosa guinada na direção de outros países latino-americanos. Aliás, não conheço outra nação do continente que discuta tão a fundo questões de identidade, inclusive na política externa. Prato cheio para reflexões acadêmicas.

domingo, 21 de outubro de 2007

Os Blogs na Guerra do Iraque



Os blogs são os novos atores da política internacional e já têm força suficiente para influir até mesmo no debate sobre a Guerra do Iraque. A edição atual da Military Review, editada pelo Exército dos Estados Unidos, traz excelente artigo sobre os blogs militares. O texto é da autoria da major Elizabeth Robbins, que trabalha como assessora de imprensa e professora para as Forças Armadas americanas.

Robbins defende os blogs militares como a “face humana” do Exército e louva sua capacidade de funcionar como elo de comunicação entre os soldados e uma sociedade que ela julga cada vez mais distante do cotidiano das Forças Armadas. Também elogia a capacidade dos blogs em fornecer uma válvula de desabafo emocional para pessoas em situações de tensão, como é obviamente o caso dos soldados servindo em guerras, em locais estranhos a sua cultura, como Iraque e Afeganistão.

É evidente que muito do que esses soldados têm a dizer pode ser embaraçoso, desagradável e mesmo perigoso para o Exército, desde fofocas sobre colegas de tropa até informações que comprometam a segurança de missões, ou mesmo denúncias de crimes cometidos pelas Forças Armadas. Robbins discute as melhores maneiras para censurar o material produzido pelos blogs militares, mas seu tom geral é que os benefícios superam os eventuais problemas.

Pouco depois de ler seu artigo, foi publicada a excelente entrevista que Elaine Guerini realizou com o cineasta americano Brian de Palma (outra do Valor, jornal do qual cada vez gosto mais). De Palma completou filme sobre o massacre de Mahmudiya, no qual cinco soldados americanos estupraram uma adolescente iraquiana e depois assassinaram ela, os pais e sua irmã caçula. Quem conhece a obra de De Palma percebe de imediato a semelhança com seu filme sobre o Vietnã, “Pecados de Guerra”. Todos os roteiros de atrocidades se parecem.

A novidade é que desta vez De Palma recorreu a muito material documental disponível na Internet, principalmente fotos, vídeos e blogs de soldados. Nas palavras do cineasta:

“Com a internet e as webcameras, os soldados agora fazem pequenos filmes sobre suas experiências no campo de batalha. Além daquelas mensagens protocolares do governo, anunciando como estamos fazendo progresso no Iraque, felizmente também temos acesso à verdade. A grande novidade nessa guerra é o fato de os soldados poderem se comunicar com o resto do mundo em tempo real. Eles estão na internet o tempo todo. Morrendo de tédio, acabam dando testemunhos, muitas vezes surpreendentes. Fiquei perplexo ao perceber que eles são os primeiros a contestar o ridículo discurso de que os Estados Unidos foram até lá para levar democracia ao povo iraquiano.”

Houve um tempo em que tarefas como essas eram desempenhadas pelos correspondentes de guerra e De Palma é bastante crítico em sua entrevista à acomodação da grande imprensa dos EUA com os atos de seu governo, em particular com a cobertura do que acontece no Iraque.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Malvinas: sal nas feridas


Minha mestra Maria Regina foi quem me indicou “Sal en las Heridas: las Malvinas en la cultura argentina contemporánea”, do cientista político Vicente Palermo. O livro recém-lançado reflete sobre os 25 anos da guerra pelas ilhas e é dura crítica ao nacionalismo do país vizinho.

Quando fui morar em Buenos Aires tinha curiosidade pelo conflito, mas não esperava que o interesse diletante fosse importante para a pesquisa da tese. Foi. Em grande medida porque, como me disse um embaixador que desempenhou importante papel na guerra, “as Malvinas continuam a ser um problema que atrapalha toda a política externa argentina”. De fato, os esforços para recuperar as ilhas perturbam as relações com o Reino Unido (e por tabela, com a União Européia), com os EUA, determinam posições na ONU (é preciso apoio do bloco afro-asiático na Assembléia Geral) e repercutem também na agenda latino-americana.

As ilhas haviam sido disputadas por Inglaterra, França e Espanha e foram ocupadas pelos britânicos em 1833. Palermo reconstrói a história de como a disputa territorial se tornou uma questão crucial para o nacionalismo de massas, basicamente nos turbulentos anos 1930/1940, quando a intensa proximidade que Argentina e Grã-Bretanha desfrutavam começou a ser questionada em função dos rearranjos da Grande Depressão.

O livro de Palermo se vincula aos estudos de autores como Carlos Escudé e Pablo Lacoste, que criticam o modo como se formou na Argentina uma ideologia nacionalista agressiva, baseada em visões de perda de país que deveria ter o tamanho do antigo Vice-Reinado do Prata, englobando também Paraguai, Uruguai, Bolívia e partes do Chile. E as ilhas Malvinas, as Geórgias do Sul e as Sandwich. O cerne desse imaginário é que a Argentina foi mutilada em função da perfídia das grandes potências, da corrupção de sua elite ou da incompetência de seus diplomatas, que teriam perdido na mesa de negociação o que os militares ganharam no campo de batalha.

O caso argentino está longe de ser único e é pena que Palermo não desenvolva o ponto. Visões assim são comuns no Chile (a “perda” da Patagônia para a Argentina), na Bolívia e no Peru (a disputa pelos despojos da guerra do Pacífico, em particular o acesso boliviano ao mar), na Colômbia, Equador e Venezuela (a fragmentação da “pátria grande” de Bolívar). Claro que no Brasil é diferente, pois tanto no Império (o nome do regime já diz tudo...) quanto na República o expansionismo foi muito eficiente em abocanhar território dos vizinhos, em geral através de negociações pacíficas.



O ponto alto do livro é a análise dos lugares-comuns sobre a guerra das Malvinas. Palermo examina as posições contraditórias entre os que rejeitavam a ditadura mas apoiaram a guerra, ou tentaram separar o que consideravam uma causa justa de meios torpes. Não faltaram momentos bizarros, como o chanceler Nicanor Méndes abraçando Fidel Castro em nome da luta conjunta contra o imperialismo.

No cenário confuso, destaca-se o bom humor de Jorge Luís Borges, que depois escreveria um tocante poema em prosa sobre a guerra. Durante o conflito, disse que era melhor ceder as ilhas à Bolívia, que desse modo ganharia sua sonhada saída ao mar, matando dois coelhos com um só tiro. Ou a lucidez de Julio Cortázar, ao afirmar que a questão não era os militares entrarem nas Malvinas, mas sim voltarem aos quartéis. Ponto semelhante ao das Mães da Praça de Maio: “As Malvinas são argentinas. Os desaparecidos também.” Ou da mãe de um rapaz, que o recebe com a notícia: “Afundamos um navio!”. O garoto escreve em seu diário, irônico, que mamãe torpedeara um destróier britânico.

Palermo faz excelente retrospecto de como os governos pós-redemocratização lidaram com o tema das ilhas e com certeza aproveitarei vários dos seus comentários sobre Kirchner, em especial o interessante paralelo que ele traça entre as Malvinas e as reações na Argentina à construção das papeleras no Uruguai, examinando o que chama de “nacionalismo vitimista”. E agora os britânicos querem apliar a zona de exploração econômica nas Malvinas e na Antártida. Claro que haverá tensões.



O livro é obra de polêmica, de combate, feito para atacar uma posição. Está bem, mas eu gostaria de ler um estudo um pouco menos comprometido, quero realmente entender os sentimentos que a guerra deixou. Penso no monumento aos mortos no conflito, construído bem frente à Torre com que a Inglaterra presenteou a Argentina no centenário de sua independência. Ou no memorial ao afundamento do cruzador General Belgrano, na estação de metrô de mesmo nome, onde eu saltava para ir à universidade. E também em obras de arte de alto nível, como os filmes “Los Chicos de la Guerra” e “Iluminados por el Fuego”, e o romance “Dos Veces Junio”, que merecem análises detalhadas.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A Turquia e o Genocídio Armênio


Quem hoje em dia fala dos armênios?
Hitler para seus generais, segundo Samantha Power, em “Genocídio

Nesta semana o Congresso dos EUA aprovou resolução condenando o genocídio que o Império Otomano realizou contra sua minoria armênia, durante a I Guerra Mundial. A decisão enfureceu a Turquia, que retirou seu embaixador dos Estados Unidos, queixando-se da intromissão estrangeira num assunto que diz respeito a sua história. A crise diplomática vem em momento particularmente sensível, pois as forças armadas turcas iniciaram ataques ao Iraque, contra os curdos, apesar dos pedidos americanos para que não o fizessem.

A Turquia negocia para entrar na União Européia e um dos temas que mais dificultam seu acesso ao bloco é exatamente o péssimo nível de respeito aos direitos humanos. Isso inclui a recusa do governo turco de lidar com o turbulento passado de perseguição étnica e religiosa aos armênios e cristãos, e também a violência cometida atualmente contra a minoria curda. Como os curdos são um povo sem Estado, espalhados por vários países do Oriente Médio, o problema se torna automaticamente internacional.

Como único membro da OTAN no Oriente Médio, a Turquia tem grande importância para a estratégia de segurança dos Estados Unidos. Bush condenou a resolução congressual afirmando que a questão deveria ser decidida pelos historiadores, não pelos políticos. Bobagem. Há muito o genocídio dos armênios é considerado caso clássico desse tipo de crime e o debate a respeito do tema na Turquia é inteiramente censurado pelo governo. Classificar os massacres dos armênios como genocídio viola o artigo 301 do Código Penal turco, e mesmo um homem de tanto prestígio como o escritor Orhman Pamuk, Nobel de Literatura de 2006, foi processado por falar sobre o tabu.



O voto no Congresso dos EUA foi motivado por eficiente ação do Lobby armênio naquele país (na foto, armênios lembram o genocídio) e aumenta o eco de resolução semelhante adotada pela Assembléia Nacional da França e ao monumento que será construído no Reino Unido. A própria presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, foi eleita por um distrito onde é forte a presença de imigrantes dessa nacionalidade. Naturalmente, é mais uma maneira do Partido Democrata incomodar o governo republicano, pois agora Bush terá que apaziguar os enfurecidos turcos, que ameaçam criar problemas para a logística das tropas americanas no Iraque e no Afeganistão.

Por falar em genocídio, vocês conhecem algum louco que passaria as férias na Sérvia?

Bem, há meu irmão...

terça-feira, 16 de outubro de 2007

O Nobel de Al Gore



O Nobel da Paz concedido a Al Gore e ao Painel Internacional sobre Mudança Climática (IPCC) me interessa mais pela transformação na maneira de se pensar os temas de segurança do que pelo impacto à carreira do político americano.

Durante muito tempo, a segurança internacional foi analisada academicamente pelo prisma do poder militar. O que ameaçava um Estado era a capacidade de um exército inimigo derrotar suas tropas no campo de batalha. O Comitê do Nobel dava o prêmio da paz a quem evitava/encerrava guerras (Teddy Roosevelt, Woodrow Wilson, Carlos Lamas, Ralph Bunche) ou a instituições internacionais que desenvolviam trabalho na área de ajuda humanitária em conflitos (Cruz Vermelha, Anistia Internacional, ACNUR, Missões de Paz da ONU, Médicos sem Fronteiras).

O enfoque começou a mudar no ano 2006, quando o Nobel da Paz foi concedido ao criador do programa de microcrédito em Bangladesh, o economista Muhammad Yunus. O Comitê descobriu o que a reflexão acadêmica afirmava há mais de uma década: a paz é multidimensional e tem componentes relacionados ao bem-estar econômico, à conservação do meio ambiente e até ao modo como a identidade cultural é cultivada em cada comunidade. Na Teoria de Relações Internacionais, a maior contribuição para esse prisma múltiplo veio da Escola de Copenhague, em especial dos excelentes livros de Barry Buzan.

Os riscos à segurança internacional trazidos pela mudança do clima são enormes, porque tais transformações podem levar a migrações, desastres agrícolas e conflitos por recursos naturais escassos. Problemas como esses estiveram entre os estopins das crises em Darfur e Ruanda, e também estão presentes nos confrontos no Haiti.

O IPCC reune cerca de 3 mil cientistas é o fórum mundial mais importante para o debate sobre o tema. Al Gore tornou-se o porta-voz mais eficiente da necessidade de ação política quanto ao tema, mesmo que algumas de suas conclusões sejam incorretas ou apocalípticas. O Nobel vem no momento em que o governo dos EUA assumiu posições obscurantistas de negação do problema, que envolvem até perseguições a cientistas que trabalham para instituições federais.



Há muita especulação sobre se o Nobel concedido a Al Gore o levaria a disputar novamente a presidência dos Estados Unidos. A melhor análise que li a respeito foi editorial do Financial Times, que afirma que Gore realizou o sonho americano da “volta por cima”, inventando um novo papel para si mesmo depois de não ter levado a Casa Branca em 2000.

Acrescento que a admiração que conquistou na campanha de alerta sobre o aquecimento global desapareceriam no contexto de uma disputa presidencial que precisa tratar de vários temas. As pessoas querem que os candidatos se manifestem sobre seguro saúde, aborto, casamento gay, guerra no Iraque. Temas que dividem e polarizam. Se Gore ficar de fora da contenda, poderá desempenhar uma função muito mais influente como especialista em questões ambientais e conselheiro do futuro mandatário.

Além do mais, o sujeito ganhou o Oscar de documentário e o Nobel da Paz no mesmo ano. Chega, né?

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

O Último Mitterand


Os americanos adoram retratar seus presidentes na ficção, desde os filmes de ação em que Harrison Ford explode terroristas a bordo do Air Force One até séries de excepcional qualidade dramática como The West Wing, ou as Narrativas do Império de Gore Vidal. É incomum que isso ocorra na arte européia, daí o interesse de “O Último Mitterand”, de Robert Guédiguian, no qual um jovem jornalista é escolhido pelo presidente francês para entrevistá-lo e recolher material para uma biografia.

No filme, Mitterand - em interpretação impressionante de Michel Bouquet - está nos meses finais de seus longos 14 anos como presidente. Velho e bastante doente, no entanto mantém a mente lúcida e os instintos aguçados de animal político, que usa numa batalha para se defender das acusações que teria sido cúmplice (ou se omitido diante) de crimes contra a humanidade durante a ocupação nazista da França, entre 1940-1944.

Mitterand, então com menos de 30 anos, foi funcionário de certa importância na República de Vichy, o regime colaboracionista que governou o sul da França numa relação que muitas vezes foi de conluio com os nazistas. Até hoje se discute quando Mitterand se juntou à Resistência. Acabou se tornando assessor de De Gaulle, embora se afastasse progressivamente do general nos anos 50 e 60, e seguisse para a esquerda, até se tornar o primeiro presidente socialista da França, em 1981.

Filho de prósperos comerciantes de província, Mitterand tinha origem social incomum para o partido. No filme, ele compara-se a outros líderes socialistas e comunistas e comenta que não era um intelectual judeu como Léon Blum, nem de família operária como Maurice Thorez. Brinca com a idéia de ser um “traidor de classe”, e por isso a direita francesa o odiaria tanto.

Não sei se o rancor é real. Franceses têm reverência pelo Estado, e por seus representantes. Uma das melhores cenas do filme é Mitterand em visita aos túmulos dos reis na catedral de Chartres. Está claro que se considera mais um na linhagem.



Além disso, os socialistas ganharam a presidência com o programa clássico da esquerda européia pós-II Guerra Mundial, com nacionalizações e aumento do gasto público para gerar empregos, mas aplicaram políticas bem mais conservadoras, de austeridade fiscal. “Por causa da globalização? Da Europa?”, pergunta-se o jovem jornalista.

Mitterand diz no filme que a cor da França é o cinza, e de fato o tom melancólico predomina na fotografia e nas reflexões do roteiro. O país é rico, materialmente confortável, mas há mal-estar no ar, a inquietação de que as coisas não estão como deveriam. Os momentos mais emocionantes vêm de citações literárias: Victor Hugo, Chateaubriand, Lamartine, Rimbaud, Valéry, Antelme, Marguerite Duras... Tradição que muitas vezes pesa, e parece fossilizar os personagens num mundo de sentimentos frios e convenções formais.

Curioso como tantos jovens nos filmes franceses são retratados como pessoas confusas, perdidas entre fumaças de uma retórica progressista e a vida mais ou menos acomodada no alto padrão de conforto da classe média européia. O jornalista de “O Último Mitterand” é outro exemplo dessa lista. Seu nome, Antoine Moreau, tem ressonâncias literárias: o prenome é o mesmo do rebelde alter ego dos filmes de Truffaut, o sobrenome, o do herói do grande romance francês das ilusões perdidas, “A Educação Sentimental” de Flaubert. Acho que não está à altura dos modelos e é somente um rapaz demasiadamente fascinado pelo Poder, umas férias na América Latina lhe fariam bem.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Goya


O crítico de arte australiano Robert Hughes é um insólito biógrafo para Goya. Afinal, Hughes tornou-se conhecido por seus escritos sobre o modernismo e nunca demonstrou maior interesse pela cultura espanhola. Ele afirma que a idéia de se dedicar ao genial pintor espanhol veio após um terrível acidente de carro que quase o matou, e o lançou num abismo de dor e proximidade da morte por três anos. Espero que ninguém precise ir tão longe para apreciar Goya.

A biografia escrita por Hughes, “Goya” (publicada no Brasil pela Companhia das Letras) é um deslumbre visual que vale cada centavo dos muitos reais necessários para comprá-la. A análise do crítico é muito interessante e é capaz de ensinar artes plásticas até a um analfabeto no tema, como eu.

Hughes segue em seu livro o formato tradicional, narrando a vida de Goya passo a passo e contando um pouco do que acontecia na Espanha. O pintor viveu durante incríveis e longevos 80 anos (recorde para a época). Sua juventude e fase adulta transcorreu durante o reinado dos Bourbon, soberanos que representavam o “despotismo esclarecido” e iniciaram reformas tímidas para melhorar a emperrada economia espanhola.

Goya começou a se destacar como artista elaborando imagens para as tapeçarias dos reis espanhóis, e dedicando-se a uma série de gravuras inspiradas principalmente na cultura popular do país. Conhecidas como Caprichos, elas são uma crônica fascinante daqueles tempos. Eu já havia visto muitas delas, no Brasil e na Espanha, mas foi só lendo Hughes que consegui compreender seu contexto social. Por exemplo, a exaltação que Goya promove dos majos e majas, os típicos jovens rústicos espanhóis, e seu retrato um tanto irônico dos petimetres, os afrancesados que eram comuns na elite. Os caprichos também lançam visão satírica sobre a prostituição, a Igreja (Goya odiava a Inquisição, que só em seu tempo de vida parou de queimar pessoas) e abordagem da bruxaria que mistura fascínio e rejeição.

Nem só de sátiras vivem os Caprichos, que incluem algumas das imagens mais famosas de Goya, como a que reproduzo abaixo: o sono da razão produz monstros, retrato dos fantasmas que às vezes rondam nossas escrivaninhas, mesmo quando estamos acordados.



Muitas pinturas de Goya se destacam pela sensualidade e sempre se especulou sobre o real relacionamento com sua musa mais famosa, a duquesa de Alba, cujo rosto povoa várias de suas mulheres. Para minha decepção, Hughes afirma que o desejo do pintor por ela foi apenas platônico, embora ambos tenham sido amigos. Eu jurava que ela havia sido a modelo para A Maja Desnuda, mas segundo o biógrafo tal honra coube à amante favorita do então primeiro-ministro da Espanha, Manuel de Godoy, para quem o quadro foi pintado.

Ainda assim, os retratos que Goya pintou da duquesa exalam sedução. Gosto especialmente do que ela aparece vestida como maja, de negro, com um olhar malicioso e um gesto de "vem cá, meu rapaz" que é mais erótico do que letra de funk:



Dito assim, parece que Goya era um nacionalista fanático. Não era o tanto o caso. Ele valorizava o estilo majo e até se auto-retratava assim, como na célebre pintura em que aparece vestido de toureiro – o equivalente moderno, diz Hughes, seria um roqueiro. Mas Goya era estreitamente vinculado ao círculo de intelectuais e políticos iluministas, fortemente afrancesados, que aconselhavam os reis Bourbon, em especial Carlos IV. O artista retratou a vários, um dos melhores é o quadro que fez de Gaspar de Jovellanos, importante reformador da época. Sua expressão conjuga nobreza e inteligência, mas também a melancolia de “por que este país não dá certo?”, que soa familiar aos brasileiros.



O trecho da obra de Goya que mais me emociona são os Desastres da Guerra, que ilustram a terrível situação da Espanha durante a invasão Napoleônica, ao longo da qual os espanhóis inventaram o moderno conflito de guerrilha. As gravuras e pinturas de Goya sobre essa época são mais trágicas do que heróicas, ressaltando o impacto sangrento do combate para as pessoas comuns, e o quanto de selvageria alfora nos dois lados. Parece um prelúdio sombrio e profético para o século XX e de fato inspirou as obras-primas que Picasso e Salvador Dalí pintaram sobre a guerra civil espanhola de 1936-1939. Minha favorita é Os Fuzilamentos do Três de Maio, que abre este post, um brutal manifesto para o massacre que o Exército francês cometeu contra os rebeldes patriotas em Madri.

Aprendi com Hughes que os Desastres da Guerra só foram conhecidos muitos anos após a morte de Goya, pois o artista não era bem-visto pelo rei Fernando VII, o autoritário monarca da restauração espanhola. O rei chegou ao cúmulo de mandar “Os Fuzilamentos..” para o porão do palácio, pois em sua versão da história só havia espaço para seu próprio heroísmo (na verdade, ele viveu na França durante a invasão napoleônica, prisioneiro de luxo do imperador).

É a fase mais triste da vida de Goya, marcada por doenças como a surdez e a depressão. Sua obra se torna ainda mais sombria, com pinturas sobre loucura, velhice e solidão. Mas também a Tauromaquia que resgata sua paixão de juventude pelas touradas.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Chile: a panela de pressão


Uma amiga certa vez tomou o táxi em Santiago e perguntou ao motorista com qual povo latino-americano os chilenos mais se identificavam. O homem pensou um pouco e respondeu: “Com os ingleses”. Por essas e outras, muitos de nós os consideravam a mais tediosa população do continente. Algo mudou no país e o Chile tem vivido “tempos interessantes”, sem querer dar à expressão o mesmo peso dos antigos chineses, que a usavam para amaldiçoar os inimigos.

A notícia mais recente é a prisão da família do ditador Augusto Pinochet e mais de 20 pessoas de seu círculo íntimo, incluindo oficiais militares da ativa. A turma é acusada de roubar mais de US$20 milhões dos cofres públicos.

A segunda leva de notícias é a enorme quantidade de protestos sociais que têm ocorrido no governo da presidenta Michelle Bachelet.

A meu ver, as duas coisas estão ligadas.

A ditadura chilena teve caráter personalista que contrasta com suas contrapartes na Argentina e Brasil. Não há paralelo no Cone Sul ao culto de personalidade ao Tata, o “paizinho” Pinochet como o chamavam seus partidários. Pelo contrário, homens como o ditador argentino Jorge Videla são ilustrativos da tese da “banalidade do mal” de Hannah Arendt, justamente por seu aspecto apagado, nada carismático. Em outras circunstâncias seriam burocratas pacíficos que passariam a vida cumprindo suas obrigações rotineiras e regando o jardim aos domingos.

Não há nada parecido na Argentina e no Brasil com as velhinhas que idolatram Pinochet. O escritor Ariel Dorfmann observou o componente sexual desse tipo de manifestação. Não fosse a faixa etária das suplicantes, poderíamos tomá-las pela platéia de um show do High School Musical ou da Shakira. Veja a foto abaixo e diga se você concorda comigo e com Dorfmann:



Quando Pinochet morreu, em 2006 , sua desaparição de cena teve o efeito da retirada da tampa de uma panela de pressão. As pessoas se sentem mais seguras e confiantes na democracia e resolveram ir às ruas protestar, diz a Economist. Ou seja, deram vazão a sentimentos de descontentamento há muito latentes. Em grande medida são demandas por maior fatia no bolo da prosperidade da alta do cobre (movimento dos mineiros em la Escondida) e as greves da central sindical do país. Mas também os conflitos durante o aniversário do golpe militar, em 11 de setembro, as manifestações ambientais, as passeatas criticando a péssima reforma do sistema de transporte em Santiago e, claro, a Revolta dos Pingüins, o levante estudantil de 2006 que foi precursor da seqüência de protestos.



Bachelet cometeu erros de gestão em muitas dessas crises, mas em grande medida simplesmente deu azar de estar na presidência quando a torrente de insatisfação reprimida foi liberada. Sua popularidade caiu para apenas 35%.

Minha curiosidade com relação aos protestos é dupla: conseguirão remover as limitações à democracia no Chile? Provocarão alterações no modelo econômico do país? Quanto ao primeiro ponto, Pinochet legou aos seus compatriotas vários freios institucionais que limitam o controle civil sobre as Forças Armadas (incluindo a importantíssima questão das receitas do cobre, um percentual vai direto aos militares), além de impor um sistema eleitoral que favorece as zonas rurais, onde a direita é mais forte.

O segundo item é mais complexo, pois a economia chilena é presa a diversos compromissos internacionais (como mais de 50 tratados de livre comércio) que tornam difícil qualquer mudança significativa. O que os governos socialistas têm feito desde 1999 é intensificar os gastos com política social, para amenizar os efeitos mais brutais da desigualdade que se tornou comparável à brasileira.

Também é o caso de se perguntar se a liberalização dos costumes no Chile é causa ou conseqüência dos protestos, ou se vem tudo tão misturado que não dá para saber. Afinal, o país legalizou o divórcio, passa anúncios anti-AIDS na TV (para eles, foi uma tremenda ruptura!), elegeu uma mulher para a presidência. Andam cheios de saliência, os chilenos. Daqui a pouco resolvem organizar até carnaval.

E tomara que tenham uma política externa um pouco menos conflitiva com o resto da América do Sul. Até onde sei é o único país do continente que cogitava seriamente a possibilidade de guerrear simultaneamente contra todos os seus (três) vizinhos.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

A Guerra Latino-Americana no Iraque


Nas últimas semanas, a ação das empresas de segurança privada no Iraque ganhou enorme destaque na imprensa internacional depois de um massacre de civis em Bagdá cometido por mercenários. O que poucos sabem é que há muitos latino-americanos envolvidos no negócio, como analisa o ótimo artigo de Kristina Mani para a revista americana Foreign Policy. Segundo ela, 1/3 dos soldados privados no Iraque vêm do nosso continente.

O que explica o altíssimo índice de participação? Várias razões. Mão-de-obra qualificada – militares e policiais, muitos deles com experiência de combate no conflito colombiano ou nas guerras sujas do Cone Sul e da América Central. Desemprego e pobreza, que tornam atraente a possibilidade de um tour bem pago no Oriente Médio. Proximidade ideológica com os Estados Unidos. Por essas e outras, as grandes empresas do ramo, como Blackwater e Triple Canopy, recrutam extensamente no Chile, Peru, Colômbia, Nicarágua, Honduras e El Salvador.

O artigo não menciona o Brasil, mas está claro que as condições presentes entre os hermanos também são fortes por aqui. Conversando sobre o tema com meus alunos, eles brincaram que quando a Blackwater descubrir o BOPE, nunca mais sairá do Brasil. Ironia ou não, o irmão de um colega professor, oficial da Polícia Militar, está de malas prontas para a missão de paz em Darfur. A família é só alívio: acha que ele estará mais seguro em meio ao genocídio naquela região inóspita do Sudão do que nas incursões pelas favelas do Rio. O pior é que concordo, apesar da situação em Darfur continuar péssima.

A reação dos governos latino-americanos é um tanto ambígua. Muitos países centro-americanos apóiam a Guerra do Iraque e têm ajudado os EUA nas operações bélicas, alguns inclusive com tropas regulares. Outros, como o Chile, são contra e iniciaram debate sobre legislação para regulamentar a ação dos mercenários.



A discussão também acontece nos Estados Unidos, devido ao furor provocado pelos massacres recentes. Eu sabia da importância dos soldados privados no país, mas desconhecia que eles operam num limbo jurídico – não estão sujeitos nem às leis do Iraque, nem à legislação americana. Isso deve mudar: o Congresso dos EUA acabou de aprovar, por acordo bipartidário, projetos para impor algum controle sobre os mercenários.

Não é pouca coisa. Com o anúncio de que os britânicos irão se retirar do Iraque até o fim de 2008 (antes das eleições gerais de 2009, Gordon Brown não é bobo), provavelmente vai ser um peruano ou guatemalteco que ficará para apagar a luz dessa guerra estúpida.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Personal Che



Hoje é o aniversário de 40 anos da morte de Ernesto Guevara e aproveito a data para comentar o excelente documentário “Personal Che”, que vi no Festival do Rio. O filme é dirigido pelo brasileiro Douglas Duarte e da colombiana Adriana Mariño e aborda as interpretações que as pessoas dão ao mito do Che, em diferentes partes deste planeta maluco. Tenho uma grande amiga em comum com o Douglas e batemos ótimos papos sobre suas aventuras, algumas das histórias também estão em seu blog, como as agressões de espectadores revoltados com o que julgaram falta de respeito diante de Guevara.

Na Bolívia, em especial na região na qual o guerrilheiro foi assassinado, há um culto religioso a sua figura, que o venera como santo. Os fiéis frisam a semelhança do Che morto com a imagem de Jesus Cristo e falam sobre o “livro mágico” que ele carregava durante a luta armada e que o permitia transformar-se em pássaro e fugir dos perseguidores. A mescla de Harry Potter com Revolução Cubana tem explicação: numa região de camponeses analfabetos, a figura de um guerrilheiro que levava uma sacola com 15 Kg de livros só pode ser entendida em termos místicos. Eu sabia sobre o culto, mas não imaginava que os fiéis ignorassem que Che era comunista e ateu, para eles tratava-se de um líder religioso. Quando o diretor do filme os questiona sobre isso, leva um chega-para-lá de uma criança.



No Líbano, os cineastas entrevistam a equipe de uma superprodução musical com mais de 100 dançarinos sobre a vida do Che. O espetáculo é muito bonito, assim como a declaração do autor da peça, também médico como Guevara. Ele afirma que precisou colocar uma cena na qual o guerrilheiro discute com sua consciência a respeito das mortes que cometeu, e se pergunta se fez a coisa certa. O motivo: “Sou de um país que passou 30 anos em guerra civil, não posso defender violência política num palco”. , Guevara é um ídolo para os milhares de palestinos que vivem em campos de refugiados no Líbano e que obviamente se identificam com suas lutas.

Na China, o entrevistado é um deputado de Hong Kong, conhecido como Long Hair, um marxista que usa Guevara como um símbolo para atacar o governo chinês e exigir democracia. Em sua própria época, o Che foi admirador de Mao e da China, cujo regime comunista comparava favoravelmente à URSS, que sempre criticou como burocrática e emperrada. Ironias da história, mas o fado dos mitos é sofrer as múltiplas interpretações de seus admiradores, muitas das quais contrariam suas trajetórias de vida.

O máximo da bizarrice é um movimento neonazista na Alemanha que afirma que Che e Hitler lutavam pelos mesmos ideais – como o combate ao imperialismo! - e que não vê problemas em conciliar o internacionalismo de um argentino que lutou em Cuba, Congo e Bolívia com seu próprio ultra-nacionalismo. Como explica o líder do bando: “Não há contradição, os sul-americanos são muito homogêneos.” Claro que prefiro a interpretação dos manifestantes de Mar del Plata, que formaram o rosto de Guevara com bandeiras de diversos países:



Também há espaço no filme para sentimentos mais doces, como o taxista em Cuba que idolatra Che (como todo mundo no país), batizou de Ernesto seu filho e presenteia o moleque com vários uniformes guerrilheiros, mais ou menos como os pais brasileiros dão fantasias do Batman ou do Super-Homem a seus rebentos. A diferença é que o herói dos meninos cubanos existiu. Ou do salvadorenho que emigrou para Nova Jersey, nos EUA, em pleno coração da comunidade cubana anti-Castrista e vive entre um museu pessoal de Che, uma vaga retórica revolucionária, a venda de automóveis usados e brigas com os vizinhos que o acusam de pregar o terrorismo.

O mais legal do filme são os personagens, mas também há entrevistas com jornalistas e professores universitários que de algum modo se dedicam ao Che, como dois de seus biógrafos (o americano John Lee Anderson e o mexicano Jorge Castañeda), o polemista Cristopher Hitchens (sempre provocador e inteligente). O historiador da arte David Kunzle protagoniza um dos melhores momentos do documentário, ao mostrar as diversas representações do Che em cartazes, pinturas e fotos e comentar que aos poucos os artistas foram sumindo com as armas e símbolos militares. Che passou de ícone da guerrilha para um símbolo de rebeldia, justiça e até paz e amor, com direito a pombas e corações.

Qual o seu Che Guevara? Pergunta implícita do filme. Tenho o meu, claro. Repito as palavras de um artigo que escrevi em 2004, ao analisar “Diários de Motocicleta”: “Se o Che dos anos 60 era o mártir da guerrilha, nos primeiros anos do século XXI os latino-americanos redescobrimos um Ernesto que nos lembra valores importantes: inquietude diante da vida, revolta perante as injustiças, necessidade de superar os limites estreitos da classe social e da nacionalidade, vontade de compreender a América Latina em seu conjunto.”

domingo, 7 de outubro de 2007

Tropa de Elite



O capitão Roberto Nascimento (Wagner Moura) comanda uma equipe do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Seu primeiro filho está prestes a nascer e ele está à beira de um ataque de nervos, pressionado pela mulher a largar a instituição. Mas precisa encontrar um substituto e se divide entre dois jovens oficiais da PM: o cerebral e reflexivo André (André Ramiro) e o impulsivo Neto (Caio Junqueira). A metade inicial do filme é uma disputa entre polícia e bandido no qual aquele papel cabe ao BOPE e este, ao resto da polícia, com a mãozinha dos traficantes. A segunda parte foca no treinamento dos dois oficiais e numa tragédia pessoal que mistura suas vidas à guerra sem fim do tráfico de drogas carioca. Por coincidência, o clímax é a favela mais próxima da minha casa, o morro dos Prazeres, em Santa Teresa.

A música popular e o cinema sempre contaram as histórias do crime no Rio de Janeiro pela ótica dos bandidos e dos malandros. É mais do que bem-vinda a iniciativa do diretor José Padilha e de seus colegas de roteiro – o ex-capitão do BOPE Rodrigo Pimentel e o escritor Bráulio Mantovani – de narrarem o conflito pela ótica da polícia. Atingiram o nervo. “Tropa de Elite” é provavelmente o filme mais pirateado da história cinematográfica brasileira. Antes mesmo da estréia estima-se que tenha sido visto por mais de 1 milhão de pessoas. As primeiras exibições públicas foram marcadas pela controvérsia – houve aplausos às cenas em que o BOPE tortura traficantes, o batalhão foi ovacionado nas ruas do Rio, suas fardas negras se tornaram sucesso em bailes à fantasia e há até uma campanha pela Internet de “capitão Nascimento para presidente.” Abaixo, paródia feita pelo criador do site "Eu podia tá matando":




O filme é mais ambíguo do que uma ode à violência.

Wagner Moura é um dos grandes atores de sua geração, e um dos mais queridos até no papel de vilão de novela das 20h. Seu capitão Nascimento é um personagem e tanto. Primeiro, tem as duas características básicas de qualquer herói: excelência (é muito bom no que faz) e honra – tem um rígido código de conduta. O problema é que essas regras são incompatíveis com o Código Penal. Nascimento não rouba e odeia policiais corruptos. Mas tortura, assassina e tem sua vida em frangalhos. Sofre de síndrome do pânico, falta de ar, toma tranquilizantes e a violência aflora com tanta freqüência que ele sequer consegue conversar com sua mulher e cuidar do filho recém-nascido. Arrisca a pele em missões que muitas vezes são sem sentido, para satisfazer caprichos dos líderes políticos ou conduzir vinganças pessoais e institucionais. Como o capitão Rodrigo Pimentel dizia num excelente documentário de João Moreira Salles, o conflito do Rio é “uma guerra quase que particular”.

O contraponto de Nascimento são os dois jovens oficiais que treina em busca de um substituto. Neto se parece com que ele foi, André é um policial com alta capacidade intelectual, que cursa Direito na Universidade Católica e tem uma relação que mistura atração e repulsa com seus colegas da classe média alta. Esse, aliás, é o ponto fraco, fraquíssimo do filme. Os amigos de André são representados como hipócritas, drogados que dirigem uma ONG mantida por um político e agem em conivência com o traficante -um deles inclusive revende drogas na faculdade. É difícil encontrar tantos defeitos concentrados em tão poucas pessoas e o roteiro acaba sugerindo (ou mesmo impondo) ao espectador escolher entre o BOPE e a cumplicidade com o crime. Ora, claro que todos escolhemos o capitão Nascimento, que aliás narra o filme com um discurso de ou-você-está-comigo-ou-está-contra-mim. O filme funcionaria melhor sem essa narrativa em off.

O retrato que da PM no filme é igualmente radical. Neto e André são mostrados como idealistas que procuram se manter honestos em meio ao caos e à corrupção que dominam o batalhão onde servem, em Copacabana. A roubalheira é generalizada: o coronel e os demais oficiais levam dinheiro de traficantes, bicheiros, bordéis, clínicas de aborto, extorquem comerciantes por proteção, vendem peças dos automóveis, negociam apoio a políticos corruptos etc. Até para tirar férias os soldados precisam entrar no esquema e subornar os superiores.

Nesse contexto, os homens do BOPE surgem como os cavaleiros vestidos de negro que protegem a sociedade do crime e da própria polícia. São sérios, competentes, bem armados, bem treinados. Mas é difícil afirmar que o filme prega a moral de que “os fins justificam os meios” porque ao fim as missões da tropa de elite parecem inúteis, o que chamamos no Rio de “enxugar gelo”. As cenas de tortura e execução são fortes: a mais usada é a asfixia com um saco plástico, junto com espancamentos, ameaças de execução (algumas concretizadas) e uma quase impalação com cabo de vassoura. No entanto, o BOPE do cinema só tortura culpados e sempre que o método é utilizado, produz resultados, gera informações que ajudam os protagonistas. Será que haveria entusiasmo popular com Nascimento e seus homens caso o roteiro os exibisse torturando e matando inocentes?

O personagem interpretado por Wagner Moura ficou no foco das atenções, mas chamo a atenção para o excelente desempenho de André Ramiro, que antes do filme era porteiro de cinema. O rapaz dá um show como o aspirante André, o protagonista que mais se transforma ao longo do filme. Olho nele: ainda o veremos em outras ótimas atuações.

PS – Flávia, minha colega de IBASE, realizou uma entrevista com José Padilha, diretor e roteirista de “Tropa de Elite”. Cliquem no link para acessar o texto.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Doutor Jegue e os Biocombustíveis


A idéia deste post veio de uma descoberta do meu amigo Alexandre Freitas - economista, conspirador emérito, cinéfilo. Alexandre revelou que o verdadeiro pai do programa brasileiro de biocombustíveis é o doutor Jegue, o protagonista do filme "O Incrível Monstro Trapalhão". Nesse épico injustamente esquecido, o dr. Jegue, interpretado por Renato Aragão, inventa um combustível revolucionário a partir da rapadura e o utiliza para construir uma equipe nacional de Fórmula 1, em parceria com Dedé, Mussum e Zacarias, mecânicos que tocam o projeto com competência digna da TAM e da GOL.

O quarteto enfrenta a cobiça estrangeira, com direito até a conflitos geopolíticos com o mundo árabe. Quero dizer, é o quadro ideológico do nacionalismo dos anos 70, do desenvolvimento por substituição de importações etc. Hoje em dia eles seriam acusados pelo Reinaldo Azevedo de afugentar o investimento externo e difundir o anti-americanismo, Ali Kamel bradaria em defesa das nossas crianças, submetidas à doutrinação de livros didáticos comunistas e à pregação anti-capitalista de Didi Mocó e a Veja faria edição especial sobre a farsa dos Trapalhões, com direito a artigo do Diogo Mainardi dizendo que a culpa é do cinema brasileiro. A base governista no Congresso talvez se identificasse com as trapalhadas do quarteto, no entanto o mais provável é que disputassem a marca em plenário, tão logo o Renan libere o parlamento.

Pensei muito no dr. Jegue nos últimos dias, ao ler o discurso do presidente Lula à Assembléia Geral da ONU. Segundo nosso primeiro mandatário, os biocombustíveis preservam o meio ambiente, combatem o aquecimento global, equilibram a balança comercial e geram desenvolvimento sustentável. Não sei se também curam resfriado e dão mais disposição física, ou se isso é exclusivo do biotônio Fontoura, aliás centro de inolvidável campanha publicitária estrelada pelo mesmo Renato Aragão. O Brasil é o país da piada pronta, natural que os humoristas estejam no centro da agenda pública.

Por coincidência, nesta semana saiu o novo número da revista do IBASE, a Democracia Viva, cuja edição atual é dedicada aos biocombustíveis e ao meio ambiente. Há vários artigos muito bons na publicação, meu favorito é "Bioenergia e inclusão social na agenda política", do economista René de Carvalho, professor da UFRJ. A política do governo é estimular a inserção da agricultura familiar na cadeia produtiva dos biocombustíveis, principalmente a partir do plantio de oleaginosas - mamona, girassol, dendê. As empresas que compram essa produção ganham benefícios fiscais.

O problema é a dificuldade da agricultura familiar em competir com as economias de escala e com a mecanização do agronegócio, que prefere utilizar a soja e a cana como matéria-prima para biocombustíveis. Também há preocupação com a demanda por terras para plantar cana e o impacto sobre a alta do preço dos alimentos. Embora nada tão trágico quanto o desastroso programa dos EUA, baseado no milho.

E agora, quem poderá nos socorrer? Sou mais o dr. Jegue. Ou talvez ouvir intelectuais da direita esclarecida, como Hebe Camargo e Ivete Sangalo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Cortina de Açúcar


Camila Guzmán é filha do cineasta chileno Patrício Guzmán ("A Batalha do Chile", "Salvador Allende") e estreou como diretora com um documentário autobiográfico muito bonito: "Cortina de Açúcar". Ela conta a história de sua infância e adolescência em Cuba, de sua saída da ilha nos anos 90 e de seu reencontro com os amigos de juventude, que vivem num país muito diferente após década e meia de profunda crise econômica. Assisti ao filme na noite de ontem, na excelente mostra de documentários latino-americanos do Festival de Cinema do Rio de Janeiro.

Guzmán pai foi muito envolvido com o governo Allende e teve que se exilar do Chile após o golpe de Pinochet, em 1973. Foi para Cuba com a mulher e duas filhas pequenas - a futura cineasta tinha apenas dois anos. O casamento terminou pouco depois e Guzmán trocou a ilha pela Espanha. Mas as crianças tiveram uma infância feliz, no que Camila descreve como "o período de ouro da Revolução Cubana". É curioso, porque a maioria dos historiadores classifica aquela época de outra maneira, como o tempo do "Quinqüênio Cinza", das perseguições a artistas, escritores, homossexuais e do fracasso em aumentar a colheita de cana ao ponto em que fosse possível industrializar a ilha com esses recursos.

No entanto, Camila - e os amigos que entrevista no filme - falam daqueles anos com tranqüilidade e alegria, lembrando das brincadeiras de escola, do excelente nível educacional, dos serviços sociais fornecidos pelo Estado e do sentimento de pertencimento, de fazer parte de um projeto de construção de uma sociedade. Há apenas algumas reclamações ao excesso de burocracia e à chatice dos rituais de autocrítica, mas no tom bem-humorado de quem recorda um professor rabugento, mas querido.

Se esse era o "antes", o "agora" do documentário é o chamado "Período Especial", o eufemismo oficial cubano para a catástrofe econômica que se abateu sobre a ilha com o fim da URSS e do patrocínio que ela dava ao país. As condições de vida pioraram muito, da escassez de comida e combustível à deterioração das moradias. Tornou-se impossível manter uma boa qualidade de vida apenas com a combinação dos parcos salários e dos benefícios governamentais e as pessoas passaram a recorrer cada vez mais aos dólares enviados por parentes que emigraram. Ao mesmo tempo, a economia foi aberta a investimentos estrangeiros, principalmente no turismo, e as desigualdades sociais aumentaram na proporção em que alguns cubanos têm acesso às benesses do dinheiro que vem do exterior.

Tudo isso está bem captado em "Cortina de Açúcar", talvez com uma nostalgia algo exagerada do passado, mas um sentimento bastante compreensível diante das enormes dificuldades cotidianas enfrentadas pelos cubanos. Uma das cenas que mais me impressionou foi um rapaz falando dos amigos de escola que emigraram: são dezenas de nomes, para todo o planeta. Uma lista dolorosa à medida que ele aponta as pessoas numa velha fotografia de colégio.

O que é notável em Cuba é que a penúria econômica não se refletiu na qualidade da educação, que continua muito alta. Camila Guzmán mostra várias escolas e conversa com os alunos. Os prédios são limpos, arrumados, todas as salas têm livros, aparelhos de TVs etc. As crianças e jovens recebem material escolar e uniformes - a decadência é porque no passado ganhavam ainda mais. De fato, o que mais me impressionou quando visitei Cuba foi a alegria e as roupas impecáveis dos estudantes. Dá o que pensar para um país bem mais rico, como o Brasil, mas com péssimo nível educacional.



Outro ponto curioso do filme de Guzmán é como seus entrevistados falam com desenvoltura e criticam o governo. São todos muito articulados e chama a atenção como relacionam de maneira precisa as transformações na política internacional e em seu próprio país com as mudanças em sua vida íntima. Claro, efeitos da boa educação. Essas posturas coexistem com o autoritarismo e a repressão das autoridades cubanas, numa contradição que não consigo compreender. O Brasil, afinal, é uma democracia, mas as pessoas têm tanta dificuldade de conversar sobre política com um mínimo de conhecimento (que não seja o habitual niilismo de "sou contra tudo que aí está") que às vezes parece que nós é que vivemos numa ditadura, com cidadãos assustados e desconfiados.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

As Viúvas das Quintas-Feiras



Começa a melhorar a vida dos brasileiros que se interessam pela literatura latino-americana. Com a entrada em nosso país da editora espanhola Alfaguara, uma das maiores difusoras internacionais dessa produção, temos à disposição excelentes lançamentos de todo o continente. O mais recente exemplar da riquíssima tradição da Argentina é o romance “As Viúvas das Quintas-Feiras”, da jornalista Claudia Piñeiro (foto). É uma história premiada sobre o cotidiano da elite que optou por se encastelar atrás dos muros dos condomínios fechados (que lá, como em outros países hispano-americanos, são chamados de countries). O pano de fundo é a ascensão e queda do Menemismo, culminando na grande crise de 2001.

Claudia Piñeiro começa seu romance com a morte misteriosa de três moradores do country Altos de la Cascada, perto de Buenos Aires, que são encontrados mortos na piscina da casa de um deles, depois do tradicional encontro que tinham toda quinta-feira à noite, para beber, conversar e jogar enquanto suas mulheres iam ao cinema ou ao shopping. A tragédia é o ponto de partida para uma sucessão de flaskbacks dos vizinhos, que reconstituem a história daquela pequena comunidade – bastante representativa, aliás, de certa elite latino-americana.



Os condomínios fechados viraram moda na Argentina nos anos 90 e foram escolhidos como lar por muitos dos novos ricos do Menemismo. Em geral estão localizados nas proximidades de grandes cidades como Buenos Aires e Córdoba (e não dentro delas, como ocorre no Rio de Janeiro). Os personagens do romance acompanham a onda de prosperidade daqueles anos, seja pelos que ganharam dinheiro honestamente, como executivos de empresas ou empresários, seja por aqueles que se envolveram nas inúmeras falcatruas e escândalos de corrupção que caracterizaram a época.

Uns e outros apostaram num estilo de vida de consumo ostentatório, imitando o padrão de vida dos subúrbios residenciais dos EUA (por exemplo, enormes caminhonetes esportivas, férias em Miami) seja pela adoção dos hábitos mais antigos da elite tradicional argentina (golfe, colégio britânico para os filhos).

O retrato que Claudia Piñeiro faz de seus personagens é o de uma crítica social dura, mas não desumana. Muitos são fúteis e desonestos, outros – sobretudo as mulheres – são bastante infelizes, presos a uma fachada de riqueza que com freqüência não corresponde exatamente à realidade. O abismo vai aumentando à medida que a crise que se inicia nos anos 90 vai piorando e muitos dos personages ficam desempregados, mas não aceitam a queda no padrão de consumo. Alguns, pela primeira vez na vida, num nítido contraste com a Argentina do pleno emprego e da ascensão social que existiu ao longo da maior parte do século XX.

Muito desse panorama poderia ser ambientado no Brasil, mas o livro lança um olhar bastante atento para o que há de peculiar na elite argentina, como a presença cada vez maior de empregados domésticos de outros países sul-americanos (Paraguai, Peru) e o racismo e a discriminação a que são submetidos. O anti-semitismo, problema nunca de todo solucionado na Argentina, também aparece no romance.

A esperança da trama é representada por um casal de adolescentes rebeldes e desajustados, Juani e Ramona, que com sua inadaptação ao ambiente ajudam a mostrar o que está errado por lá. Ao fim da história, terão um papel decisivo no mistério das mortes da piscina, que de um certo modo simboliza as mobilizações sociais recentes na Argentina, questionando a corrupção e a hipocrisia que dominam as práticas políticas do país. E não só lá, evidentemente.