quinta-feira, 25 de outubro de 2007
A Aprendizagem de Wilhelm Meister
Ele era um menino
Valente e caprino
Um pequeno infante
Sadio e grimpante
(...)
Amava a mulher
A mais não poder
Por isso fazia
Seu grão de poesia
E achava bonita
A palavra escrita
Por isso sofria
De melancolia
Sonhando o poeta
Que quem sabe um dia
Poderia ser
Vinicius de Moraes e Toquinho, “O Poeta Aprendiz”
Aprendi com Lukacs que o romance é “a epopéia de um mundo sem Deus”, expressão da crise da modernidade, em que herói com grandes expectativas se defronta com mundo mesquinho, demasiado estreito para suas ambições e sonhos. Dom Quixote, sem cavalaria, contenta-se com moinhos de vento. Emma Bovary busca nos amantes a vida que o casamento não preenche. Os fabulosos arrivistas de Stendhal e Balzac quase sempre fracassam em suas escaladas sociais. Os alemães desenvolveram um sub-gênero muito próprio a tal história de desilusões: Bildungsroman. Em geral traduz-se por “romance de formação”, mas a expressão deixa escapar algo. Bildung não tem equivalente em português, é educação completa, construção da personalidade, assimilação da cultura. Precisamos do grego e do latim: paidéia, humanitas.
No romance de formação, a aventura do herói é ser ele mesmo. Ou por outra, descobrir às custas de erros, enganos e desvios, quem de fato é. Qual o sentido de sua vida e que papel ocupa na sociedade. Em geral são enredos que começam com um jovem que deixa a cidade natal, e acabam com seu casamento, e/ou ascensão a posição de destaque. Há belíssimos exemplos em Rousseau (Emílio), Flaubert (Educação Sentimental), Hesse (Demian), Thomas Mann (Montanha Mágica). E, claro, Goethe - abaixo, em sua melhor pose de conselheiro de Weimar - com seu estupendo “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister”, que me rendeu horas felizes ao longo desta última semana.
Wilhelm é um rapaz da classe média alta, filho de comerciante de posses. Ele se apaixona por uma atriz e pelo teatro e se junta a uma trupe de atores mambembes na Alemanha. Viaja por povoados rurais, cidades, conhece a vida nas cortes dos pequenos Estados da época.
E descobre que a vida de artista não é para ele, que seu temperamento é o de um burguês, de curtir as coisas simples da existência e sonhar em criar filhos e ter um casamento feliz. Reflexão de um Goethe mais maduro e seguro de sua posição social, em contraste com o angustiado burguesinho que escreveu Werther, ressentido porque as jovens aristocratas não lhe davam bola.
As artes cênicas não estão à toa na vida de Wilhelm. Naquela época fervia o debate na Alemanha sobre a criação do “teatro nacional”, que seria a principal esfera para os debates daquele emaranhado de cidades, principados, ducados e feudos mais ou menos ligados pela vassalagem ao Império Romano-Germânico. Todos os grandes escritores do período, como Lessing e Schiller, envolveram-se nas lides do palco. Goethe chegou mesmo a dirigir um teatro e com certeza recolheu muitas dos casos saborosos que conta ao longo do romance, como as intrigas e fofocas entre os atores. O jovem Wilhelm nunca cansa de se espantar em como seus ideais artísticos chocam-se com a realidade tão prosaica da trupe mambembe, com seus colegas mais interessados em beber e ganhar dinheiro.
Outro ponto alto do romance é a valorização de Shakespeare, autor então considerado bárbaro e selvagem. O bom gosto era apreciar Corneille, Racine, os clássicos franceses. É toque de gênio de Goethe que quem introduz Wilhelm ao Bardo seja um personagem ambíguo, um militar filho bastardo de príncipe. Muitos dos melhores momentos do livro vêm das discussões sobre Shakespeare, incluindo uma esplêndida apresentação de Hamlet, descrita de maneira tão poderosa que temos vontade de aplaudir, como crianças.
Há muito sexo no romance – o século XVIII não era tão pudico quanto épocas posteriores. As aventuras amorosas com atrizes, burguesas e aristocratas são parte essencial da história de Wilhelm, ainda que possamos reclamar de como suas amadas sempre são tão nobres e dedicadas. Mas gostei da amizade colorida dele com Philine, sua colega de trupe, uma mulher sensual, irreverente e incontrolável, que rende ótimas passagens do livro.
Também há política, mas ela entra aos poucos, de maneira sutil. Wilhelm Meister foi escrito na década de 1790, período em que a Revolução Francesa oscila de sua fase mais radical (o terror jacobino) até a guinada conservadora sob o Diretório e seu jovem general Napoleão. A principal figura política do romance é Lothario, aristocrata idealista, com planos de reforma social, que lutou na América ao lado de Lafayette e Washington. E ao voltar à terra natal, descobre que a América pode estar em qualquer parte. É Lothario quem conduzirá Wilhelm à Sociedade da Torre, uma espécie de maçonaria que acompanhava seus passos e o convencerá de que não basta desenvolver a personalidade individual, a realização plena do ser humano só se dá com a participação na esfera pública, nos destinos comuns.
Está certo de um modo bem idealizado, a Torre é uma espécie de embrião da sociedade futura. É significativo que o romance termine, tal qual novela das 20h, num monte de casamentos entre classes sociais diferentes, porque no novo mundo (a América é em qualquer parte) tais fronteiras não teriam sentido e como diz um personagem, "Grandes transformações nos esperam".
Eu diria, como na oração budista, que é preciso participar alegremente das tristezas deste mundo. Vida longa a Wilhelm, que somos todos nós!
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7 comentários:
Como criança, aplaudo sua sensibilidade ao escrever este post. Nestas horas me dou conta do longo caminho que ainde tenho de trilhar...
Abração
Este "post" é um primor! Muito bom.
Obrigado, meus caros. Goethe eh um mestre.
Abs
Salve nobre paladino das relações internacionais.
Saiu uma matéria na Entre Livros exatamente sobre isso. Aliás citam alguns livros interessantes como O Ateneu. Me lembre que te entrego no próximo almoço. Ah sim, viu a participação fenomenal do Mockus no debate para prefeitos de Bogotá?
Abs
Paulo
Caro Paulo,
para a próxima semana, menos terça. Quarta estaria OK?
Rapaz, estou há dois dias num seminário e um tanto afastado das notícias. Mas o Mockus é um showman.
Abraços
É bela e contagiante a sua paixão por literatura. :)
Larissa, minha cara.
Espero que seja contagiante mesmo. Se eu conseguir fazer alguém ler um bom livro, a criação deste blog já está justificada.
Abraços
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