terça-feira, 23 de outubro de 2007

Sarlo no Roda Viva


Um dos meus maus hábitos é nunca lembrar de assistir ao programa Roda Viva, na TV Cultura. Felizmente ontem o Alexandre me avisou de que a entrevistada era a escritora e crítica literária argentina Beatriz Sarlo, de quem sou fã. Embora as perguntas que os jornalistas lhe fizeram não favorecessem, o papo foi muito inteligente.

Sarlo é autora de livros primorosos sobre os enlaces entre cultura e política na Argentina, como A Paixão e a Exceção – Borges, Evita, Montoneros, Cenas da Vida Pós-Moderna e Una Modernidad Periférica – Buenos Aires, 1920-1930. O problema é que aparentemente seus entrevistadores não leram essas obras e o resultado foi uma dúzia de perguntas-clichês sobre o que ela pensa a respeito de Kirchner, Chávez e Morales.

Como Sarlo é muito inteligente e lúcida, a conversa foi interessante, ainda que em muitos casos os jornalistas parecessem estar à busca da confirmação de seus preconceitos relacionados à América Latina. Mistura de arrogância, ignorância e notável ausência de curiosidade sobre o continente. Nessas ocasiões, penso no extraordinário filme “Passageiro: Profissão Repórter”, de Michelangelo Antonioni, quando num dado momento o africano que está sendo entrevistado pelo personagem de Jack Nicholson toma a câmera de TV de suas mãos e a aponta na direção do jornalista: “Suas perguntas falam mais sobre você do que sobre mim”.

Se eu estivesse entre os entrevistadores do Roda Viva, perguntaria a Sarlo sobre como a literatura contemporânea da Argentina reflete sobre a crise de 1998-2002. Gostaria de saber sua opinião sobre os romances recentes de Tomas Eloy Martinez, Cesar Aira, Martin Kohan. Houve um momento em que começou a se discutir a relação do cinema argentino com a memória a respeito da ditadura militar, mas infelizmente o assunto promissor não foi desenvolvido. Ou quem sabe falar de sua experiência na formação da Frente País Solidário, uma das esperanças frustradas da política argentina dos anos 1990. Que diabos, eu colocaria o Idelber Avelar para debater com dona Beatriz. Bem queria vê-los trocar idéias sobre Juan José Saer.

Por fim, mas não menos importante, pediria a Sarlo para falar do que me parece a reinvenção da identidade nacional argentina pós-crise, com uma espantosa guinada na direção de outros países latino-americanos. Aliás, não conheço outra nação do continente que discuta tão a fundo questões de identidade, inclusive na política externa. Prato cheio para reflexões acadêmicas.

10 comentários:

IgorTB disse...

Mau, meu caro,

Entrevistadores que não leram nada da obra do entrevistado envergonham a classe jornalística. Infelizmente, estes têm sido a regra...
:-(

Excelente referência ao filme do Antonioni!

Abração

Paulo Gontijo disse...

Alguma pergunta sobre a rivalidade Brasil-Argentina nos campos de futebol?

Anônimo disse...

Puxa, que pena eu não estar no Brasil para ver esse programa. Beatriz é gigante, genial. Não há palavras para descrever a admiração que tenho por essa mulher. Que pena que, pelo que parece, os entrevistadores não estiveram à altura. Abraços, Maurício.

Maurício Santoro disse...

Salve, Igor.

Olhe, acho que seria a mesma coisa se a entrevistada fosse uma crítica européia. Provavelmente iriam enchê-la de perguntas sobre o que ela acha do divórcio do Sarkozy.

Caro Paulo,

Quase. Ela começou uma análise muito interessante sobre o futebol e o nacionalismo na ditadura militar argentina, contando um caso de quando torcedores da seleção de lá agrediram as Mães da Praça de Maio. Mas os entrevistadores não desenvolveram.

Mestre Idelber,

Pelo bem desta pátria e da nação vizinha, você precisa participar desse tipo de programa. Ou pelo menos escrever cartas aos principais jornais do país informando que Borges não é o único escritor da Argentina.

Abraços

Anônimo disse...

Eu peguei a entrevista pelo meio, e gostei bastante. Infelizmente nossos jornalistas só querem saber de política partidária, intrigas palacianas e tal.

Mas ela fez alguns comentários bem pertinentes sobre o presidente Kirchner. Ela disse que nós, brasileiros, vivemos reclamando das brigas em Brasília, mas isso é bem melhor do que a total falta de negociação entre o presidente argentino e a oposição.

Maurício Santoro disse...

Sim, Marcus e penso que ela tem razão. Embora eu ache que os conflitos na política argentina transcendem Kirchner e mesmo o peronismo, faz falta à cultura política do país vizinho um pouco dos hábitos de negociação e consenso que temos no Brasil - apesar de que os temos até exageradamente...

Abraços

Fabio disse...

Caro Maurício!
Há quanto tempo! Venho por meio desta comentar sobre um post antigo seu, mais especificamente sobre o filme Tropa de Elite. A sua análise é perspicaz e rigorosamente sóbria como a dos grandes críticos da sétima arte, mas o brilhantismo do texto é inteferido por um pequeno lapso de informação.
O nome do personagem interpretado pelo igualmente magistral André Ramiro é Matias e não homoninamente André.
Fiz hoje uma remissão sobre o filme (talvez não tão brilhante como a sua) mas ficaria grato se fosses se juntar aos meus 5 fiéis leitores que sempre o acompannham.
Forte abraço!

Fabio disse...

Pois é Maurício.
Graças ao seu post me vem um bom exemplo de como uma pesquisa e um pré-estudo são importantes na condução de uma boa entrevista. Refiro-me a feita com o sociólogo Domenico de Masi para o livro Ócio Criativo. Por mais que a teoria defendida seja um tanto utópica para o cotidiano prático de nossas atribuladas vidas.
Abraços

Fabio disse...

Pois é Maurício.
Graças ao seu post me vem um bom exemplo de como uma pesquisa e um pré-estudo são importantes na condução de uma boa entrevista. Refiro-me a feita com o sociólogo Domenico de Masi para o livro Ócio Criativo. Por mais que a teoria defendida seja um tanto utópica para o cotidiano prático de nossas atribuladas vidas.
Abraços

Maurício Santoro disse...

Salve, meu caro Fábio.

Conversava outro dia com o Gui sobre você. Agora vives em Brasília, não é? Que tal a vida na Corte?

Gostei muito do seu texto sobre o Tropa de Elite, mas ambos estamos corretos quanto ao nome do personagem interpretado por André Ramiro, pois ele é André Matias - ainda que, salvo engano, o nome completo só conste da ficha técnica e no filme ele só seja chamado pelo nome de guerra.

Quanto à preparação prévia para entrevista, é fundamental no jornalismo, mas igualmente importante é a boa base cultural e a curiosidade em relação ao mundo. O Pedro Doria está com um ótimo texto no blog dele sobre isso.

abraços