sexta-feira, 12 de outubro de 2007
Goya
O crítico de arte australiano Robert Hughes é um insólito biógrafo para Goya. Afinal, Hughes tornou-se conhecido por seus escritos sobre o modernismo e nunca demonstrou maior interesse pela cultura espanhola. Ele afirma que a idéia de se dedicar ao genial pintor espanhol veio após um terrível acidente de carro que quase o matou, e o lançou num abismo de dor e proximidade da morte por três anos. Espero que ninguém precise ir tão longe para apreciar Goya.
A biografia escrita por Hughes, “Goya” (publicada no Brasil pela Companhia das Letras) é um deslumbre visual que vale cada centavo dos muitos reais necessários para comprá-la. A análise do crítico é muito interessante e é capaz de ensinar artes plásticas até a um analfabeto no tema, como eu.
Hughes segue em seu livro o formato tradicional, narrando a vida de Goya passo a passo e contando um pouco do que acontecia na Espanha. O pintor viveu durante incríveis e longevos 80 anos (recorde para a época). Sua juventude e fase adulta transcorreu durante o reinado dos Bourbon, soberanos que representavam o “despotismo esclarecido” e iniciaram reformas tímidas para melhorar a emperrada economia espanhola.
Goya começou a se destacar como artista elaborando imagens para as tapeçarias dos reis espanhóis, e dedicando-se a uma série de gravuras inspiradas principalmente na cultura popular do país. Conhecidas como Caprichos, elas são uma crônica fascinante daqueles tempos. Eu já havia visto muitas delas, no Brasil e na Espanha, mas foi só lendo Hughes que consegui compreender seu contexto social. Por exemplo, a exaltação que Goya promove dos majos e majas, os típicos jovens rústicos espanhóis, e seu retrato um tanto irônico dos petimetres, os afrancesados que eram comuns na elite. Os caprichos também lançam visão satírica sobre a prostituição, a Igreja (Goya odiava a Inquisição, que só em seu tempo de vida parou de queimar pessoas) e abordagem da bruxaria que mistura fascínio e rejeição.
Nem só de sátiras vivem os Caprichos, que incluem algumas das imagens mais famosas de Goya, como a que reproduzo abaixo: o sono da razão produz monstros, retrato dos fantasmas que às vezes rondam nossas escrivaninhas, mesmo quando estamos acordados.
Muitas pinturas de Goya se destacam pela sensualidade e sempre se especulou sobre o real relacionamento com sua musa mais famosa, a duquesa de Alba, cujo rosto povoa várias de suas mulheres. Para minha decepção, Hughes afirma que o desejo do pintor por ela foi apenas platônico, embora ambos tenham sido amigos. Eu jurava que ela havia sido a modelo para A Maja Desnuda, mas segundo o biógrafo tal honra coube à amante favorita do então primeiro-ministro da Espanha, Manuel de Godoy, para quem o quadro foi pintado.
Ainda assim, os retratos que Goya pintou da duquesa exalam sedução. Gosto especialmente do que ela aparece vestida como maja, de negro, com um olhar malicioso e um gesto de "vem cá, meu rapaz" que é mais erótico do que letra de funk:
Dito assim, parece que Goya era um nacionalista fanático. Não era o tanto o caso. Ele valorizava o estilo majo e até se auto-retratava assim, como na célebre pintura em que aparece vestido de toureiro – o equivalente moderno, diz Hughes, seria um roqueiro. Mas Goya era estreitamente vinculado ao círculo de intelectuais e políticos iluministas, fortemente afrancesados, que aconselhavam os reis Bourbon, em especial Carlos IV. O artista retratou a vários, um dos melhores é o quadro que fez de Gaspar de Jovellanos, importante reformador da época. Sua expressão conjuga nobreza e inteligência, mas também a melancolia de “por que este país não dá certo?”, que soa familiar aos brasileiros.
O trecho da obra de Goya que mais me emociona são os Desastres da Guerra, que ilustram a terrível situação da Espanha durante a invasão Napoleônica, ao longo da qual os espanhóis inventaram o moderno conflito de guerrilha. As gravuras e pinturas de Goya sobre essa época são mais trágicas do que heróicas, ressaltando o impacto sangrento do combate para as pessoas comuns, e o quanto de selvageria alfora nos dois lados. Parece um prelúdio sombrio e profético para o século XX e de fato inspirou as obras-primas que Picasso e Salvador Dalí pintaram sobre a guerra civil espanhola de 1936-1939. Minha favorita é Os Fuzilamentos do Três de Maio, que abre este post, um brutal manifesto para o massacre que o Exército francês cometeu contra os rebeldes patriotas em Madri.
Aprendi com Hughes que os Desastres da Guerra só foram conhecidos muitos anos após a morte de Goya, pois o artista não era bem-visto pelo rei Fernando VII, o autoritário monarca da restauração espanhola. O rei chegou ao cúmulo de mandar “Os Fuzilamentos..” para o porão do palácio, pois em sua versão da história só havia espaço para seu próprio heroísmo (na verdade, ele viveu na França durante a invasão napoleônica, prisioneiro de luxo do imperador).
É a fase mais triste da vida de Goya, marcada por doenças como a surdez e a depressão. Sua obra se torna ainda mais sombria, com pinturas sobre loucura, velhice e solidão. Mas também a Tauromaquia que resgata sua paixão de juventude pelas touradas.
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2 comentários:
adoro o goya!
É seu lado gótico, querida, que gosta das trevas espanholas!
beijos
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