terça-feira, 20 de novembro de 2007

Burgueses e Boêmios



Neste longo feriadão – 6 dias para nós, cariocas – assisti ao ótimo musical “Rent”. O filme é uma adaptação do espetáculo da Broadway e no Brasil não foi exibido nos cinemas, sendo lançado direto em vídeo. Basicamente, conta um ano na vida de um grupo de aspirantes a artistas que vivem no East Village de Nova York. “Rent” celebra a cultura boêmia de criatividade, ruptura dos padrões e da vanguarda artística, mesmo que isso singnifique pouca grana. Se o enredo lhe parece familiar, não estranhe: há muitas citações à ópera La Bohéme que trata mais ou menos da mesma coisa, só que na Paris do século XIX.

Rent é um barato, com canções muito bonitas – destaque para o tema de abertura, “Seasons of Love”, e para “Light my Candle”, o grande momento da personagem interpretada por Rosario Dawson. Os atores estão visivelmente entusiasmados com os papéis e é o tipo de show que os americanos sabem fazer tão bem. Só que lá pelas tantas fiquei um tanto incomodado com a contradição: um musical da Broadway, totalmente mainstream, que louva exatamente o oposto do que esse mundo representa. Ok, nada de tão diferente dos industriosos burgueses europeus que ouviam as óperas de Puccini sobre artistas sem dinheiro, gueixas japonesas ou qualquer exotismo que os distraíssem da rotina da semana. Mas ainda assim, contradição.

Estamos além da mera válvula de escape ou da hipocrisia e a melhor análise que conheço é o brilhante ensaio de David Brooks, “Bubos no Paraíso – a nova classe alta e como chegou lá”. Brooks é um jornalista de currículo impressionante que inclui New York Times, Wall Street Journal, New Yorker, Washington Post, Newsweek e Weekly Standard.

Seu livro é um comentário bem-humorado e irônico sobre a nova elite americana, que ele afirma ser uma mistura de “burgueses e boêmios” (Bubos), fruto da contracultura dos anos 60 e da expansão do ensino universitário meritocrático, aberto ao talento. Muito instruída do ponto de vista formal, ela levou à economia da informação valores mais libertários e questionadores do sistema, mesmo quando ganham milhões – pense em Bill Gates, Steven Spielberg, o que seja. Aliás, também se comenta o mesmo em outros países. Na França Luc Boltanski escreveu obra parecida sobre "Le Nouvel Espirit du Capitalisme".

Uma das canções mais divertidas de Rent é, justamente, La Vie Bohéme, que parece uma daquelas list songs de Cole Porter, com a enumeração do que consiste o estilo boêmio. Engraçado comparar com a descrição de Brooks, porque os itens coincidem em diversos pontos, da preferência por alimentos orgânicos ao dramaturgo tcheco Vaclav Havel. Aliás, a área de Nova York onde se passa Rent deixou de ser um reduto de artistas pobres há 10 anos e virou uma zona para profissionais sofisticados e ricos, muito na linha do que Brooks descreve.

No fim das contas, diz Brooks, os Bubos são muito moderados politicamente e detestam a polarização partidária. Bem, o livro foi publicado em 2000 e muita coisa mudou após os atentados do ano seguinte. Sobretudo, Brooks contou um lado da história – a ascensão da nova elite – mas não abordou o quadro de desigualdades sociais crescentes que deixou tantos americanos para trás e tornou amargo e virulento o debate político do país. Na realidade, muito do crescimento dos republicanos se deve à conquista desse eleitorado, como os brancos pobres do sul dos EUA, que até os anos 1960 eram majoritariamente democratas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Só uma pequena correção: Rent passou nos cinemas - poucos e por pouquíssimo tempo, mas eu vi no Armazém Digital. E tenho o filme, de tanto que gosto.

Fora das questões político-econômicas, o filme tem um grande mérito - todos, exceto a Rosario Dawson e a Traci Thoms (Joanne) reprisaram no filme seus papéis na montagem original de 1996, o que explica muito da qualidade do filme. Não que elas sejam ruins - ambas são excelentes, mas o seu maior mérito deve ter sido conseguir se entrosar tão bem com um grupo que, obviamente, é mais do que azeitado para funcionar bem junto.

Para o seu banco de dados: o autor, Jonathan Larson, morreu aos 36 anos na véspera da estréia da peça - ele nunca chegou a ver sua obra em cartaz.

Aproveitando: parabéns pelo fim da tese! Quando comemoramos?

Um abraço,
Júlio

Maurício Santoro disse...

Salve, Júlio.

Obrigado pela correção, eu não sabia do lançamento do filme nos cinemas, o próprio pessoal da locadora tinha me dito que saiu direto em DVD. Gostaria de ter visto o filme em tela grande, porque é uma bela história e você está certo em destacar o espírito de equipe que marca o musical.

Vamos marcar um chope, porque há algumas conspirações que quero discutir com você. Como está sua vida na próxima semana?

Abraços