quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Invenção do Desenho


Se os discípulos de Alberto Costa e Silva somos poucos, nosso pequeno número é mais ilustrativo do estado atual da cultura brasileira do que do talento do mestre. Como não se maravilhar diante de seus estupendos livros sobre a África? Não falo de A Enxada e a Lança, cujo tamanho pode assustar, mas dos volumes elegantes de Um Rio Chamado Atlântico, Das Mãos do Oleiro ou a incrível biografia do traficante de escravos Francisco Félix de Souza, o Chachá. E ainda o extraordinário perfil do poeta Castro Alves. E para quem prefere a política às belas-letras, o importante papel que o embaixador desempenhou na formulação da diplomacia africana do Brasil, dos anos 1960 aos 1980. Com este prólogo, fácil entender meu entusiasmo por sua autobiografia dos anos de juventude, Invenção do desenho – ficções da memória.

Em livro que se lê como romance, temos a vida de Costa e Silva de 1945 a 1961. Começa com o adolescente presenciando a queda do Estado Novo e termina com o autor nos seus trinta anos, diplomata a servir no Portugal de Salazar e a viajar pela África onde explodem os movimentos de libertação colonial. O pano de fundo íntimo são as dores de família – a loucura mansa do pai, a morte da mãe, o divórcio da irmã, a tuberculose que atinge o protagonista e, acima de tudo, a formação cultural pelas leituras intensas e depois pelas viagens do início da carreira diplomática.



Costa e Silva escreve numa prosa clara, de emoções contidas, mas poderosas. Tomemos como exemplo o parágrafo em que a relação do pai, já louco, quando o filho publicou o primeiro artigo em jornal:

Havia meses, ele deixara de ler. Não o via mais de óculos. Nem tomar um papel para o rabisco de lápis. Meninote de 15 anos, nunca mais lhe pedira que me fizesse desenhos. Com o jornal na mão, diante dele, senti nas veias o remorso de haver crescido. E me sentei em seu colo.

A vida intelectual e cultural do Rio de Janeiro descrito por Costa e Silva ainda guarda muito da capital da Belle Époque, com ranço do positivismo e dos pequenos círculos de amigos e revistas literárias tecidas por mansos funcionários públicos, no tédio das horas vazias nas repartições. O melhor é sua amizade com Guimarães Rosa, que começava a despontar – o boato no Itamaraty era que o embaixador Rosa escrevia um romance interminável sobre bandidos no sertão – e anedotas sobre Manuel Bandeira, Lygia Fagundes Telles, Raul Bopp, Josué Montello, Afrânio Coutinho.

Os relatos sobre o ingresso no Itamaraty são semelhantes aos de muitos diplomatas, meus alunos no Clio talvez se consolem em saber que o concurso de admissão era bem mais difícil – uma das perguntas da prova de cultura geral era dissertar sobre Wagner e, em seguida, abordar o bumba-meu-boi.

Costa e Silva começou na carreira num momento em que a política externava começava a renovar-se, com o lançamento da Operação Pan-Americana por JK. Há ótimas observações sobre esse presidente e também a respeito de Jânio Quadros, que é retratado como um louco inteligentíssimo, capaz de fascinar os ouvintes e ao mesmo tempo sumir na noite de Lisboa atrás de uma corista, ou de tentar visitar a cidade incógnito, já como chefe de Estado eleito do Brasil. Disserta muito sobre Salazar (foto), o crescimento da oposição democrática e o fascínio que despertava na maioria dos brasileiros, inclusive JK.



O principal relato de Costa e Silva na política é a ambigüidade da posição brasileira com relação à descolonização africana. O Brasil queria apoiá-la, mas era tolhido pela proximidade que mantinha com Portugal. Há uma ótima passagem na qual o autor e outros jovens diplomatas criticam essa abordagem com JK, que lhes dá uma aula de realpolitik: o presidente lhes chama a atenção para o fato de que quase todas as famílias brasileiras tinham parentes portugueses e olhariam com hostilidade ações contra o país, ao passo que poucos eleitores conseguiriam apontar Angola no mapa, embora pudessem ser simpáticos à causa da independência do país.

Isso não impediu a diplomacia brasileira de acompanhar com interesse o que se passava na África e Costa e Silva narra de maneira emocionante suas viagens por Egito, Etiópia, Gana, Nigéria, Togo, Daomé e Angola. Os primeiros passos da sua brilhante trajetória intelectual como estudioso da história e das culturas do continente.

4 comentários:

IgorTB disse...

É a história de um homem, sem dúvidas, brilhante. Daqueles capazes de nos empurrar para frente na hora em que mais hesitamos face aos estudos.

Quanto a Wagner e ao bumba meu boi, acho que falaria melhor deles do que de certos assuntos que hoje sou obrigado a dominar...

Abração, Mau!

André Luiz Nahon Góes disse...

... eu ia meio-que-dizer algo similar ao Igor! Meus anos de Antropologia me facilitariam, em alguma medida, dissertar sobre o "boi arredio"...

Em relação ao mestre de "Um Rio Chamado Atlântico", é uma senhora injeção de ânimo ouvir as intempéries que atravessou.

Forte Abraço!

mariluca disse...

Passei para dizer que foi renovador te encontrar depois de tanto tempo! E digo o mesmo sobre ler seus textos!
:)

Bjs de Brasília,
Mariana

Maurício Santoro disse...

Caros Igor e Autor,

acreditem, o concurso ao Itamaraty já foi bem mais difícil... Mas o ambiente era sem dúvida mais estimulante. Imaginem o que seria para aqueles rapazes conviver com Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto. Como dizia o Baena Soares, "parecia a Grécia antiga". Hoje é muito diferente.

Querida Mari,

também adorei ter te reencontrado. Espero que a gente consiga se ver de novo daqui a 15 dias, quando eu voltar a Brasília. Falo com você antes disso, para te passar algumas coisinhas.

Grande beijo