sábado, 29 de dezembro de 2007

Roma - Segunda Temporada


Meu irmão me emprestou a caixa de DVDs contendo a segunda (e última) temporada da série “Roma” e assisti aos episódios ao longo desta semana. O primeiro ano contou a saga de dois legionários, Lúcio Voreno e Tito Pulo, em meio à ascensão de Júlio César ao poder. Esta temporada acompanha a descida de Voreno e Pulo ao mundo das gangues romanas, enquanto Otávio, Marco Antônio, Brutus e Cássio disputam o comando da República no caos que se segue ao assassinato de César.

A produção continua espetacular como sempre, mas a segunda fase é uma queda de qualidade com relação à primeira, pela opção dos roteiristas de se concentrarem nas disputas do crime organizado de Roma pelo controle dos bairros comerciais da cidade. Colocar Voreno e Pulo na história foi forçar a mão, eles entram no conflito após bater de frente com um dos líderes do submundo. É difícil imaginá-los resignados a essa vida, em vez de alistar nas legiões de Antônio e Otávio, enquanto a guerra civil estourava pela Gália, Grécia, Egito e Turquia. Além disso, o drama familiar de Voreno descamba num melodrama de má qualidade, que nada acrescente à trama.

O ponto alto da segunda temporada são as maquinações de Otávio para se consolidar como herdeiro de César, a partir do momento em que o surpreendente testamento de seu tio-avô o nomeia filho adotivo. Na ocasião ele era apenas um rapaz de 18 anos, sem muito dinheiro ou experiência política e militar, mas consegue manobrar oponentes muito mais astutos como Antônio e Cícero, basicamente porque eles subestimaram sua dedicação e inteligência. Otávio também se cercou de auxiliares muito competentes, como Mecenas e Agripa, que são mal-retratados na série: o primeiro, cujo amor à arte e à cultura era tão grande que seu nome virou sinônimo de patrono, é mostrado como um playboy cínico. O segundo, um gênio militar, aparece como um rapaz gordinho e tímido com um amor difícil pela irmã do chefe.

Também me desagradou a caracterização de Cleópatra. Ela deve ter sido uma mulher fascinante, para enredar César e Antônio, mas na série parece uma clubber que acabou de sair de uma rave barra pesada. O Egito é representado com todos os clichês de como os americanos atuais vêem um terceiro mundo: uma terra de clima quente, costumes sexuais relaxados e degeneração ética que enfraquece até grandes guerreiros. Daria um bom capítulo extra para o “Orientalismo” de Edward Said.

Não pensem, porém, que desgostei de Roma. Pelo contrário, me diverti muito vendo os 10 episódios, é entretenimento da melhor qualidade. Não consigo dizer três frases sem mencionar a “crise da República” ou fazer algum juramento pomposo em latim. Ainda assim, acho que o tema da Roma Antiga continua a merecer uma visão mais elaborada, em especial no momento em que seus sucessores imperiais estão atolados com o velho reino dos Partas.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Si ni puedo bailar, no es mi Revolución



Estou num raro período de folga nos meus três empregos (alguém tem que trabalhar neste país) e aproveitando para fazer muitas coisas, inclusive rever amigos fraternos como Fernando Paiva - jornalista, escritor, músico e sempre com muitas idéias interessantes em curso. A mais nova iniciativa do Fernando é o projeto "Si no puedo bailar, no es mi Revolución", uma rede de bandas de rock independente da América Latina.

Eles lançaram neste ano o disco "Porque este Océano es el tuyo, es el mío" (o título é um verso de Neruda), com canções de 17 bandas da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru, Uruguai e Venezuela. O grupo do Fernando, Luísa Mandou um Beijo, marca presença com uma música muito bonita feita para o irmão dele, que à época se encontrava num dilema vocacional entre cinema e geografia:

"Anselmo, faça cinema, por favor!
Planos cortados e beijos em PB
Tente filmar o que você sente!
Não enquadre a cena, focalize o fundo, quebre a narrativa
e distorça o mundo"


O curioso é que muita gente achou que o "Anselmo" da canção era o Anselmo Duarte, diretor do "Pagador de Promessas" e dois fãs fizeram um videoclipe espertíssimo para a música, a partir de colagens dos filmes do Cinema Novo e da Nouvelle Vague. A confusão criativa se justifica, porque além do nome, há em "Anselmo" referências ao cineasta Glauber Rocha, incluindo diálogos de seu filme.

A conversa com o Fernando foi muito boa e vimos o quanto nossos projetos acadêmicos e culturais tem em comum, no sentido de descoberta da riqueza da América Latina, da fascinação com o continente e do calor humano do contato com pessoas de outros países da região. Fiquei especialmente entusiasmado pelas possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias de informação e pela cultura de liberdade - creative commons, software livre - que tem florescido no ciberespaço.

Disse ao Fernando que meus instrumentos tradicionais como jornalista e cientista político simplesmente não conseguem dar conta da imensa riqueza que tenho visto em minhas viagens. "Por que você não escreve um livro?", ele perguntou. A idéia está aí, para amadurecer em 2008.

Ah, sim: não deixem de ouvir a cantora chilena Javiera Mena, que também está na coletânea e tem letras absolutamente líricas, embaladas por uma voz doce.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

A Culpa é do Fidel



Julie Gavras é filha do cineasta Costa Gavras e dirigiu e roteirizou o belíssimo “A Culpa é do Fidel”, que conta de maneira bem-humorada, inteligente e sensível a história de uma menina que vê seu mundo virar de pernas para o ar quando seus pais se tornam ativistas políticos de esquerda, na França dos anos 70. Embora o filme seja baseado num romance italiano, aposto que há muito de autobiográfico na trama.

A família De la Mesa vive confortavelmente em Paris, mas a paz esconde as inquietações do pai (interpretado por um ator italiano do qual gosto muito, Stefano Accorsi), um espanhol que não consegue lidar com o apoio que sua aristocrática estirpe dá a Franco. Ele se aflige com um forte sentimento de culpa quando seu cunhado anti-fascista é assassinado e resolve fazer algo. Como estamos em 1970, as coisas estão acontecendo é no Chile e papai e mamãe De la Mesa se tornam militantes em defesa de Salvador Allende e de outras causas progressistas, como o direito ao aborto.

A menina Anna precisa então entender uma série de fatos novos e inesperados que se sucedem em sua vida, como a alta rotatividade de suas babás (todas refugiadas de regimes de direita) e as reuniões inifinitas que passam a acontecer no apartamento da família, com tipos barbudos de discursos esquisitos, caixas cheias de papéis, brigas dos pais com os avós e o contraste entre seu cotidiano e a rotina do rígido colégio de freiras onde ela é educada.

O filme é de uma delicadeza e de uma poesia cotidiana digna dos melhores momentos de mestres como Ettore Scola. As situações vividas pela família são impagáveis e a carinha de enfezada de Anna já vale o ingresso. Para além da diversão, “A Culpa é do Fidel” trata de maneira muito bonita dos conflitos entre valores, ideais, afetos e a vidinha de classe média e faz uma bela discussão sobre o que significa ser solidário.

Os personagens cometem erros, hesitam, metem os pés pelas mãos e machucam as pessoas que amam. Mas são capazes de mudar. Ao fim, transformaram-se em novas pessoas, se defrontaram com aspectos negativos de si mesmos e do mundo e cresceram com a experiência, expandindo seus horizontes. E nós, maravilhados, saímos da sessão com a admiração por essa talentosa cineasta, para se acompanhar com atenção. Neste dia dedicado à solidariedade, fica esta dica. Feliz Natal a todos vocês.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Jacob Zuma riu por último?


Há poucos dias o Congresso Nacional Africano, mais importante partido da África do Sul, elegeu Jacob Zuma para ser seu presidente. No contexto do país, isso significa que provavelmente ele será o próximo chefe de Estado e que ganhou uma queda de braço de quase uma década com o atual mandatário, ex-aliado e desafeto político, Thabo Mbeki.

Zuma venceu as primárias do partido derrotando o próprio Mbeki, algo raro em qualquer parte, e ainda mais numa agremiação conhecida por sua disciplina férrea, herança dos tempos em que era uma organização clandestina na luta contra o apartheid. Zuma foi um ativista de base daqueles tempos heróicos, adolescente que se juntou a Mandela na luta armada e passou dez anos preso a seu lado na prisão de segurança máxima de Robben Island. Mbeki é filho de um dos líderes do movimento, mas cresceu no exterior, fez mestrado em economia na Inglaterra se tornou o principal diplomata do movimento anti-apartheid, que chegou a ter mais representações no estrangeiro do que a própria África do Sul.

Mbeki e Zuma trabalharam juntos na redemocratização do país e a parceria dos dois foi fundamental para chegar a um acordo com o influente partido dos zulus. Zuma pertence a esse grupo étnico, que com freqüência acusa o Congresso Nacional Africano de ser um bastião dos xhosa (como Mandela e Mbeki). Zuma foi vice-presidente sob Mbeki até 2005, quando ele o afastou após diversos escândalos de corrupção. Os tribunais afirmam que há provas suficientes para condená-lo.

Além disso, Zuma foi acusado de ter estuprado uma amiga. Ele afirma que o sexo foi consensual e a justiça o inocentou. A moça é HIV-positiva mas Zuma disse que isso não é problema, porque tomou uma boa chuveirada depois das relações com ela. Ele chefiou o serviço anti-AIDS de um país onde talvez 1/3 da população sofra com a doença. Há pouco conversava com uma amiga que voltou recentemente da África do Sul e que me prometeu o material utilizado para prevenir a doença - é terrivelmente falho, propondo combatê-la com abstinência e monogamia. Não é propriamente o comportamento sexual habitual da raça humana.

A força de Zuma vem da identificação popular com sua trajetória. As acusações de corrupção e mesmo de violência sexual pouco prejudicaram seu prestígio num país em que, lamentavalmente, ambos os problemas são extremamente comuns. Há uma cultura de permissividade com relação a tais crimes, de conseqüências trágicas para a África do Sul.

Uma amiga que é professora universitária no país e viveu também no Zimbábue e em Moçambique, analisa assim a atual liderença do Congresso Nacional Africano: "Tenho muitas discordâncias com relação a Mbeki, mas ao menos ele é um pensador, quando fala você percebe que ele fez uma análise do problema. Mas Zuma...".

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Da Pesquisa ao Conselho



Em Montevidéu, aproveitamos a Cúpula Social do Mercosul para divulgar as conclusões da pesquisa “Juventude e Integração Sul-Americana” , que foi minha principal atividade profissional em 2007. Reunimos os coordenadores de cada equipe nacional e conversamos bastante sobre os detalhes pendentes para a publicação do relatório que encerrará o projeto. Para mim, a foi a oportunidade de compartilhar com os colegas as expectativas para minha próxima responsabilidade na área: em fevereiro assumo a representação do IBASE no Conselho Nacional de Juventude, vinculado à Secretaria-Geral da Presidência da República.

Terei trabalho como conselheiro, envolvido com a I Conferência Nacional de Juventude. O Conselho segue o formato de outros órgãos do gênero e reúne membros do governo e representantes da sociedade civil com o objetivo de debater as políticas públicas de um setor específico.

A ida para o Conselho coincide com o fim do meu doutorado e o desejo de trabalhar mais diretamente com políticas públicas – foi o que motivou a estudar Ciência Política, em primeiro lugar. Aprendi muito com a pesquisa sobre juventude sul-americana, mas não sou um especialista no tema. Acredito que minha contribuição ao Conselho será mais no sentido de funcionar como uma ponte entre experiências interessantes que ocorrem em outros países do continente. A maioria deles criou órgãos especializados em jovens já na década de 1990, no Brasil isso só ocorreu em 2005. Espero, por exemplo, ajudar a consolidar a Reunião Especializada de Juventude do Mercosul como um fórum de diálogo para a integração regional.

O convívio com os colegas da pesquisa tem sido fundamental para esse interesse. É muito bom poder conversar com pessoas que têm histórias de vida tão ricas e que participaram com paixão de tantas lutas políticas em seus países. Nem falo das utopias de transformar o mundo. Me refiro a um sentimento mais simples, e talvez mais profundo: a idéia de que a vida importa, de que é algo mais do que pastar na frente da TV ou repetir as opiniões do senso comum.

Legal também perceber o quanto a América do Sul se tornou algo presente na minha maneira de ver o mundo, no aprendizado do idioma espanhol, no carinho pela arte do continente, na amizade fácil e calorosa com os companheiros da pátria grande. Quando comecei a trabalhar com cooperação internacional, ouvia os amigos cantaram as músicas de seus países e ficava em silêncio, pois não conhecia nenhuma. Hoje, fazemos coro nos refrões.

Foto: jovens piqueteros argentinos em manifestação diante do Edifício Mercosul, em Montevidéu.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Uruguai: a queda do Condor



Voltei ontem à noite do Uruguai. Minha estada coincidiu com a prisão do ex-ditador do país, general Gregorio Alvarez. A notícia foi saudada com festa na Plaza Libertad e o sentimento geral está resumido pela manchete do jornal La República: “A queda do Condor: primeiro Videla, depois Pinochet, agora Alvarez”. Faltou acrescentar Fujimori para celebrar a novidade: os tiranos sul-americanos não tem mais a garantia da impunidade.

Alvarez foi ditador entre 1981-1985, a fase final do regime militar uruguaio, mas havia ocupado uma série de altos cargos na repressão política ao longo da década de 1970, inclusive a chefia da perseguição ao principal grupo comunista, os Tupamaros. Estima-se que a ditadura tenha assassinado cerca de 200 pessoas, número expressivo num país tão pequeno. A maioria foi presa de maneira ilegal em outros países do Cone Sul e levados ao Uruguai pela tristemente célebre Operação Condor. Nossa anfitriã uruguaia foi uma sobrevivente da época, pois sua prisão no Brasil resultou numa campanha internacional por sua libertação, já nos estertores da ditadura.

Meus dias em Montevidéu também foram simultâneos ao congresso da Frente Ampla, a coalizão de partidos de esquerda que governa o Uruguai desde 2004. É uma das experiências mais interessantes na política sul-americana, região em que as forças progressistas só costumam se aliar quando dividem a cela. A Frente foi fundada em 1970 e conseguiu superar obstáculos enormes, como a repressão durante a ditadura, o domínio dos dois partidos tradicionais (Colorado e Nacional) e as rivalidades no seio da esquerda.

A Frente Ampla tem sido fundamental nos esforços de reforma do governo de Tabaré Vázquez, como nos processos abertos contra os líderes da ditadura militar. Apesar de uma dúzia deles estarem presos, as leis de anistia ainda não foram revogadas, como ocorreu na Argentina, embora se especule a possibilidade de um plebiscito nacional sobre o tema. Colorados e Nacionales são bem mais cautelosos a respeito, saudaram a prisão de Alvarez mas declararam que não é bom remexer o passado.

Conversei com militantes do PT brasileiro que acompanharam o congresso da Frente Ampla e ouvi análises muito interessantes sobre os debates, como a ótima impressão que tiveram da qualificação dos ativistas de base. Tributo à democracia mais sólida da América do Sul, que se destaca por uma população bem-educada (no sentido de instrução formal e do trato pessoal muito amável) e por partidos fortes e bem enraizados na sociedade.

A frente não conseguiu eleger sua nova presidente, basicamente por conta de manobra mal-sucedida do Movimento de Participação Popular, a principal organização da coalizão, que tentou impor um nome próprio. Mas houve decisões importantes, inclusive no campo da política externa, como o rechaço à negociação de um Tratado de Livre Comércio com os EUA – negociação, aliás, que nunca tomei a sério, os uruguaios sempre ameaçam com esse tipo de movimento para chamar a atenção da Argentina e do Brasil para suas demandas no Mercosul.

A Cúpula do bloco aconteceu num clima de tensão entre Argentina e Uruguai. Cristina Kirchner tomou posse com discurso em que culpou Vázquez pela crise das papeleras e enfrenta sua primeira turbulência política com as acusações do governo dos Estados Unidos de que teria recebido dinheiro de Chávez para financiar sua campanha. A imprensa uruguaia é muito crítica com relação ao Mercosul, às vezes com razão. O Brasil faz pouco pelos sócios menores do bloco, e como dissse aos meus amigos uruguaios, não esperem outra coisa de um dos países mais desiguais do planeta. Solidariedade com os mais fracos não é nossa virtude nacional.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

A Conferência de Bali



Nesta sexta termina a Conferência de Bali, (oficialmente, Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, UNFCCC) que iniciou as negociações para acordo que regulará as emissões de gases causadores do efeito estufa (GEE). O novo arranjo substituirá o Protocolo de Quioto da a partir de 2012. As negociações foram marcadas por impasses, embora tenham ocorrido avanços.

A UNFCC foi assinada durante a Rio 92 e refletiu os debates da época sobre “desenvolvimento sustentável”, o que se traduziu na fórmula de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” entre países ricos e pobres. Aos primeiros, coube a restrição de cerca de 5% nos GEE. Aos segundos, a possibilidade de utilizar uma série de mecanismos de incentivos financeiros para diminuir sua poluição. O mais importante foi o mercado de créditos de carbono, pelo qual empresas dos países ricos investem em projetos que reduzem as emissões de GEE no mundo em desenvolvimento e em troca não precisam fazer o mesmo em suas próprias instalações.

Os maiores poluidores mundiais – EUA e China – não assumiram compromissos de diminuição. Estados Unidos e Austrália eram os únicos países ricos a não terem ratificado o Protocolo de Quioto, isso mudou quando o novo premiê australiano assinou o acordo. Apesar do impacto da campanha pública de Al Gore, Washington manteve sua posição intransigente e alegou que os países em desenvolvimento deveriam assumir parte do fardo.



O Brasil criou recentemente o cargo de embaixador extraordinário para mudanças climáticas, ocupado pelo diplomata Sérgio Serra, que explica em artigo as posições do país. O Brasil é contra metas de redução dos GEE para o mundo em desenvolvimento e favorece medidas que facilitem a transferência de tecnologias limpas, propondo a inclusive a flexibilização da propriedade intelectual relacionada a elas. O tema não avançou em Bali, para frustração também da China e da Índia. Outro descontentamento brasileiro foi a exclusão dos biocombustíveis da lista de produtos "ambientalmente corretos" que ganharão preferências tarifárias dos EUA e da União Européia.

A maior parte das emissões de GEE do Brasil vêm do desmatamento, mesmo caso de outros países em desenvolvimento, como a Indonésia. Contudo, ambos estão no fim da fila dos 20 maiores poluidores e o Brasil vem reduzindo seu peso no aquecimento global. A destruição das florestas tropicais é um tema sensível e afeta os interesses do agronegócio brasileiro. A política externa é recusar compromissos internacionais na área, mas indicar metas domésticas de combate ao desmatamento. Elas foram anunciadas pela ministra do Meio Ambiente e pelo governador do Mato Grosso. A conferir, visto que o grupo de soja presidido por este é um dos piores devastadores do país.

O Brasil também defendeu a idéia de cabe aos países ricos ajudar os pobres a preservar suas florestas, principalmente por meio de fundos internacionais. Foram feitos pequenos avanços em Bali, com a alocação de mais recursos para esses instrumentos e melhorar seus processos de gestão.

Na imprensa e no meio acadêmico, as posições brasileiras foram classificadas como "anacrônicas", "atrasadas" e "favoráveis ao desmatamento". Não creio que sejam isso - mas são defensivas. O Brasil poderia ter ousado e feito da questão ecológica uma bandeira que lhe desse prestígio internacional - seria mais bem-sucedido do que seu pleito obsessivo pela vaga no Conselho de Segurança da ONU. O problema é que liderança acarreta custos, no caso a serem pagos pelo agronegócio.

Os cientistas dizem que é necessário reduzir as emissões de GEE em 50% até 2050. A conferência de Bali é apenas o primeiro passo num processo que certamente culminará num acordo menos abrangente. Lamentável, sem dúvida, mas pelo menos o diálogo prossegue. Há bons sinais sobre o aumento da consciência ambiental nos Estados Unidos e na China, atores fundamentais para resolver esse jogo.

Bem, viajo ao Uruguai logo mais, à tarde. Fico fora por alguns dias, na Cúpula Social do Mercosul. Depois conto como foi em Montevidéu.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Nos Passos de Hannah Arendt



Uma amiga certa vez exclamou em minha biblioteca: “Você tem os livros da Hannah Arendt!”. E folheava-os, deslumbrada. Curioso como a filósofa alemã é capaz de despertar reações entusiasmadas (na mesma estante estavam as obras de Tocqueville, a quem minha visitante não deu sequer um “oh!”). A excelente biografia “Nos Passos de Hannah Arendt”, da escritora francesa Laure Adler, ajuda a entender o porquê: poucos filósofos viveram com tanta paixão, em um século tão turbulento.

Arendt nasceu em 1906, numa família de classe média, judia e ativista de esquerda. Cresceu na Alemanha dos anos traumáticos da I Guerra Mundial, da crise econômica e da ascensão do nazismo. Muito da sua reflexão sobre a ruptura da civilização européia com a criação dos totalitarismos veio desse contexto histórico.

O ponto forte da biografia é esmiuçar a relação de Arendt com os movimentos políticos judaicos. Ela teve simpatia pelo sionismo e amigos emigraram para a Palestina e ajudaram a criar Israel. Contudo, percebeu já nos anos 1930 que o ódio entre árabes e judeus estava se tornando insustentável e passou a questionar a validade do projeto de reconstruir a nação judaica. O auge de suas críticas ocorreu na década de 1950, quando Israel se aliou à França e à Grã-Bretanha para atacar o Egito, mas suas opiniões se tornaram mais favoráveis ao sionismo com a vitória na Guerra dos Seis Dias.

Outro excelente capítulo: os anos de juventude de Arendt na Berlim disputada por nazistas e comunistas em meio a um círculo de amizades que incluía Karl Jaspers, Walter Benjamin, Theodor Adorno. Os dramas políticos são tão bem narrados que quase podemos escutar os tiros e as vidraças sendo quebradas, à medida em que a estudante se tornava destacada militante anti-Hitler, fugindo do país após 1933. Viveu anos difíceis como exilada pobre na França, onde os judeus foram muito, muito perseguidos, mas conseguiu escapar para os Estados Unidos. Muitos não tiveram a mesma sorte, como seu amigo Benjamin, que se suicidou para não ser preso. Na América, Arendt floresceu como professora, escritora, jornalista e conferencista de renome internacional.

A vida amorosa de Arendt foi igualmente rica. Sem ser uma mulher bonita, despertou grandes paixões. A mais famosa foi com seu professor Martin Heidegger – um dos mais importantes filósofos do século XX, e também um nazista, egocêntrico e covarde da pior categoria. Os dois tiveram um caso curto, mas a amizade e a colaboração intelectual entre ambos durou toda a vida, atravessando os dois casamentos de Arendt. O primeiro, breve, com o escritor Gunther Stern. O segundo, longo, com o ativista comunista (e posteriormente, professor universitário nos EUA) Heinrich Blücher.

É possível que o livro mais famoso de Arendt seja “As Origens do Totalitarismo”, mas o que mais gosto é “Eichmann em Jerusalém – relato sobre a banalidade do mal”. Foi escrito como jornalismo político de primeira qualidade, quando a autora cobriu para a revista New Yorker o julgamento do burocrata nazista responsável pelas ferrovias que levavam os judeus aos campos de extermínio. Ele fora capturado de modo ilegal na Argentina, pelo serviço secreto israelense e levado ao Oriente Médio para um grande processo (foto). Foi nessa época que o Holocausto deixou de ser um tema tabu e se tornou parte central da cultura e da identidade israelense. Adler conta bem a polêmica que o livro provocou e narra o comportamento nem sempre digno de Hannah Arendt ao longo do caso.



Ainda assim, a biografia peca pela ausência de análises aprofundadas sobre a obra de Arendt. Gostaria de ter lido algo mais sobre livros como “Homens em Tempos Sombrios” e “A Condição Humana”, ou mesmo de averiguar eventuais influências de Arendt sobre os neoconservadores nos Estados Unidos. Me parece que eles assinariam muito do que ela escreveu a respeito da União Soviética, da Revolução Francesa e da democracia. Não por acaso, Leo Strauss, o guru do movimento também influenciou muito Arendt.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

EUA: em busca de inteligência



A comunidade de inteligência dos Estados Unidos poucas vezes foi tão importante para o país quanto no pós-11 de setembro, mas enfrenta séria crise, motivada por erros monstruosos. A "guerra contra o terror" depende muito mais de informações confiáveis do que de poder militar no campo de batalha. Ainda assim, diversos escândalos envolvendo a CIA e outras agências enfraqueceram a confiança do público no trabalho de coleta e análise das informações que servem de base às estratégias do governo.

A história de como a rivalidade entre CIA e FBI impediu que as duas organizações cooperassem para evitar os atentados de 11 de setembro está narrada de maneira magnífica nos livros "O Vulto das Torres", do jornalista Lawrence Wright e em "Contra Todos os Inimigos", memórias do czar anti-terrorismo de Clinton e Bush, Richard Clarke. Hoje sabemos que nenhuma delas, sozinha, era capaz de identificar o que acontecia com a Al-Qaeda, mas que esconderam informações uma da outra e o resultado trágico foi a incapacidade de agir.

As análises que afirmavam que o Iraque possuía armas de destruição em massa, fornecendo o pretexto para a invasão do país, foram outro exemplo clássico de manipulação política da atividade de inteligência. As agências disseram aquilo que os líderes queriam ouvir.O documentário "Truth Uncovered", de Robert Greenwald, examina em detalhes como a mentira foi tecida, a partir de entrevistas com ex-diplomatas, militares e analistas de inteligência.

Nas últimas semanas, o escândalo foi a CIA ter destruído fitas de vídeo que mostravam o que o New York Times chamou de "harsh interrogatories", coisa que quando acontece nos países em desenvolvimento costuma ser descrita como tortura. O caso trouxe à tona figuras polêmicas como a de José Rodriguez Jr., que foi alçado pelo governo Bush a um cargo de chefia na ação da CIA contra o terrorismo, apesar de nunca ter lidado com o tema, nem com o Oriente Médio - toda sua carreira na agência fora nos assuntos da América Latina.

Além disso, houve a publicação da Estimativa de Inteligência Nacional, que afirma que o Irã abandonou seu programa de armas nucleares em 2003 e que mesmo que o retomasse agora não poderia produzir a bomba antes de 2015. O relatório foi elaborado por um conselho de 16 agências de inteligência, presidido por notável acadêmico, ex-militar e ex-diplomata: Thomas Fingar.

Fingar conta uma lição que aprendeu do general Colin Powell: "Sua responsabilidade como oficial de inteligência é me contar o que você sabe. Em seguida, conte-me o que você não sabe. Depois você tem permissão para me dizer o que você acha. Mas sempre mantenha essas três coisas separadas".

A contradição: o país mais rico e mais poderoso do mundo, com amplas capacidades e recursos humanos, não foi capaz de criar um serviço de inteligência de primeiro nível. Essa é a conclusão sombria de "Legacy of Ashes", história da CIA escrita pelo jornalista Tim Weiner, que acaba de ganhar o National Book Award nos EUA por essa obra. Está no topo da minha lista de leituras para 2008.

Weiner afirma que os Estados Unidos precisam enfrentar o desafio que compatibilizar inteligência e democracia e que o mundo será um lugar mais seguro se eles conseguirem. Concordo inteiramente.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Pedindo uma Cerveja no Zimbábue


Keynes disse certa vez que numa situação de hiperinflação é melhor pedir três cervejas ao entrar num bar, porque o preço da bebida irá subir ao longo da noitada. Pensei na frase do economista ao ler o post de Chris Blattman (que toca um dos melhores blogs que conheço a respeito de desenvolvimento e questões afircanas) sobre o Zimbábue, país que vive uma terrível crise política e econômica. A foto mostra a quantidade de dinheiro necessária para comprar um copo de cerveja. Há polêmicas sobre o índice de inflação, mas acredita-se que possa ser de mais de 10.000% anuais - os piores na América Latina estiveram em torno de 3.000%. A expectativa de vida baixou para 37 anos.

Na época colonial, o Zimbábue se chamava Rodésia, batizado em homenagem ao empresário e explorador britânico Cecil Rodes, que se tornou conhecido por sua declaração de que ficava angustiado ao ver o céu estrelado, porque ali estavam vários planetas que ele nunca poderia colonizar. Para azar dos africanos, boa parte do continente estava disponível. A África Austral, com seu clima ameno, foi especialimente propícia ao estabelecimento de milhões de colonos brancos. Não por acaso, foi lá que as independências não puderam ser negociadas e tiveram que ser conquistadas à bala: África do Sul, Angola, Moçambique, Namíbia, Zimbábue.

No Zimbábue, a minoria branca fez uma célebre declaração unilateral de independência dos britânicos, porque acreditava que Londres iria chegar a algum tipo de acordo com a maoria negra. Esta, evidentemente, não gostou da perspectiva de viver num regime racista e o resultado foi uma feroz guerra civil. O líder do governo branco, Ian Smith, morreu há poucas semanas. O chefe dos rebeldes, Robert Mugabe (foto) governa o pais desde os anos 1980.


E o faz pessimamente. Mugabe é ao lado do ex-presidente do Congo, Mobuto Sese Seko, o exemplo clássico do líder de um movimento de libertação que se tornou um magnata corrupto e autoritário.

Mugabe esteve no centro de uma crise diplomática nesta semana. Houve uma Cúpula entre África e União Européia em Lisboa e o primeiro-ministro britânico basicamente disse "ou ele ou eu". Optou-se por Mugabe, para grande constrangimento dos trabalhistas britânicos, que se viram excluídos do que deveria ter sido uma vitrine para suas políticas com relação à África.

A razão da opção por Mugabe é ilustrada na fala de uma amiga minha, que nasceu no Zimbábue mas como milhares entre seus compatriotas mais educados, emigrou para a África do Sul: "Não gosto de Mugabe, mas qualquer coisa é melhor do que ter os ingleses novamente se intrometendo por aqui". Os países africanos foram contra qualquer tipo de ação que representasse embargo ou intervenção estrangeira no continente, a pretexto de defesa dos direitos humanos.

Mugabe também divide os movimentos sociais africanos. Em seminário que fizemos em Johannesburgo, levamos sindicalistas do Zimbábue que contaram sobre as perseguições e ameças que sofrem. Colegas sul-africanos lhes responderam de maneira agressiva que não entendiam como eles podiam ser contra um governo que estava realizando uma reforma agrária. A situação ficou tensa. Eles se referiam aos confrontos entre trabalhadores sem terra e fazendeiros brancos, que tem sido manipulado por Mugabe, evidentemente em seu próprio benefício. A questão fundiária na África Austral é um barril de pólvora, não poderia deixar de sê-lo numa região onde até há pouco os negros não podiam ser proprietários de terra.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O Julgamento de Fujimori


Começa nesta segunda no Peru o julgamento do ex-presidente Alberto Fujimori por violações de direitos humanos durante os 10 anos em que governou o país. O processo é longo e pode durar até um ano, concentrando-se nas ações dos esquadrões da morte e em casos emblemáticos do terrorismo de Estado peruano, como os massacres de Barrios Altos e da Universidade La Canuta. O ex-presidente também é acusado do seqüestro de opositores, como o jornalista Gustavo Gorriti.

Fujimori tem longa e pouco edificante história. Foi eleito presidente em 1990 e deu um autogolpe em 1992. Ficou no poder até 2000, depois fugiu para o Japão e o Chile, cuja justiça o extraditou ao Peru em setembro deste ano. Apesar de sua ficha criminal, ainda é considerado um herói por muitos peruanos, por derrotar o grupo terrorista Sendero Luminoso e debelar a alta inflação do país. Ironicamente, Fujimori mantém popularidade mais alta do que a do atual presidente, Alan García. E como boa parte da elite política peruana apoiou a ditadura, seu julgamento será ameaçador para muita gente no país.

O Sendero Luminoso começou suas atividades no início dos anos 1980, quando o Peru vivia seu primeiro governo democrático após 12 anos de ditadura militar. O grupo assassinou milhares de pessoas e a repressão governamental foi igualmente brutal, torturando e matando muitos inocentes. As estimativas são de 70 mil mortos, a maoria camponeses de origem indígena da região andina, sobretudo de Ayacucho. A violência destruiu uma geração de líderes potenciais no país e criou cenário de pavor que abriu caminho para o autoritarismo de Fujimori. Durante seu decênio no poder, o Exército recebeu carta branca para combater o Sendero e o Tupac Amaru e como sempre acontece nessas ocasiões o abuso de poder tornou-se regra. Muitos militares, em particular dos serviços de inteligência se envolveram no crime organizado, com tráfico de drogas e contrabando. O homem que simboliza essa época é Vladmir Montesinos (foto), ex-oficial do Exército que se tornou o braço direito de Fujimori para a guerra suja e os negócios escusos.



Muita coisa mudou para melhor no Peru. O país teve uma Comissão da Verdade e Reconciliação que realizou trabalho primoroso em reconstituir as principais violações dos direitos humanos no período. E mais: as milhares de entrevistas que conduziu são um acervo impressionante sobre a história oral das pessoas mais pobres, aquelas que raramente são ouvidas pela História Oficial. Os acadêmicos já começaram a descobrir a riqueza do material e há planos de disponibilizá-lo num grande museu.

Como outros países da América do Sul, o Peru se beneficiou da alta demanda internacional por seus produtos de exportação, em particular minérios. Há boa base econômica para o presidente Alan García executar suas políticas. O IUPERJ publicou recentemente ótima análise da situação peruana, escrita por Ademar Seabra, diplomata que chefiou o setor político da embaixada do Brasil em Lima.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Think Tanks e Política Externa dos EUA



Como você muda o mundo? Bem, existem os caminhos óbvios, como tomar o poder, ser absurdamente rico ou trabalhar pesado por meio do processo eleitoral. E existem os atalhos, como o terrorismo ou formar um think tank.
Steve Waters


Minha amiga Tatiana Teixeira acaba de lançar o livro “Os Think Tanks e sua influência na política externa dos EUA” (Editora Revan). O texto recebeu o Prêmio Franklin Roosevelt 2007 da embaixada americana no Brasil como melhor dissertação de mestrado brasileira (defendida no program de Relações Internacionais da UFF) sobre Estados Unidos. Não é para menos: o excelente estudo da Tatiana examina de maneira brilhante a interlocução entre meio acadêmico, consultorias e a política externa americana, concentrando-se na ação dos neoconservadores no governo George W. Bush.

Os thinks tanks são instituições muito importantes em qualquer debate sobre políticas públicas nos Estados Unidos. Contudo, o termo não tem definição clara. Tatiana nos ensina que a expressão nasceu das salas onde se discutiam planos de guerra e foram utilizadas para denominar organizações que se dedicam à pesquisa, estudo e consultoria, visando a influenciar a opinião pública e os líderes políticos americanos. São cerca de 1.500, só nos Estados Unidos. Produzem análises e informações, realizam debates e procuram pautar a imprensa. Empregam acadêmicos, jornalistas, políticos que deixam o governo e funcionam como rede de contatos pessoais entre as elites de determinados setores políticos.

Os primeiros think tanks surgiram após a I Guerra Mundial e Tatiana conta a história de sua expansão, examinando os momentos principais de crescimento e transformação, como a Grande Depressão e os anos 1970. Ela ressalta o papel que as crises políticas tiveram nessas mudanças e mostra os diversos tipos de think tanks e sua vinculação com as principais correntes de opinião dos EUA – conservadores, liberais, centristas - tais como Council on Foreign Relations, Brookings Institution, RAND Corporation.

O governo Bush é um estudo de caso particularmente interessante pela grande influência desempenhada pelos think tanks dos neoconservadores, como Project for the New American Century, Heritage e American Enterprise Institute. Sua influência pode ser medida pelo discurso do presidente num jantar desta última organização: “Vocês fazem um trabalho tão bom que minha administração pegou emprestadas 20 destas mentes.” Na foto do post - Bush cumprimenta membros da organização.

Tatiana analisa as distinções entre os necons e a direita tradicional dos EUA – aprendi muito com seu estudo, ignorava vários dos pontos que ela destaca, sobretudo na área de política econômica. Ela examina com brilhantismo o casamento de conveniência entre neocons e setores como a direita cristã, do governo Reagan em diante e como os necons conquistaram poder após os atentados de 11 de setembro, ao oferecer uma agenda pronta para a diplomacia americana no Oriente Médio.

A autora é uma jornalista experiente com passagens pelo Globo, Agência Efe e atualmente na France Presse. Isso significa, além do texto claro e objetivo, muitas observações pertinentes sobre as relações entre imprensa e think tanks. Como repórteres apressados por prazos curtos freqüentemente recorrem aos “suspeitos de sempre” como entrevistados e como a obsessão de muitos think tanks com presença na mídia os leva a simplificações perigosas, transformando análises em slogans políticos facilmente memorizáveis e empobrecendo o debate democrático. Alerta importante que merece consideração de jornalistas e de acadêmicos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Condoleezza Rice... e depois


Interessante artigo da escritora Candace Allen no Guardian discute o impacto de Condoleezza Rice, a secretária de Estado americana, para a comunidade negra dos Estados Unidos. Rice é a segunda pessoa negra a ocupar o cargo – a primeira foi seu antecessor, o general Colin Powell. Ambas as trajetórias mostram que muita coisa mudou para melhor no que diz respeito às relações raciais americanas.

O Exército dos EUA só aboliu a segregação racial em 1948, dez anos antes de Powell juntar-se à instituição. Ainda assim, a maioria das bases militares americanas fica no sul e a região permaneceu com suas leis racistas até 1964. As memórias de Powell tem relatos tocantes da “vida dupla” que ele levava: um oficial admirado pelos superiores e pelos subordinados dentro do quartel, mas um cidadão de segunda classe fora dos muros, não podendo sequer usar o banheiro do posto de gasolina ou pedir o hamburguer na lanchonete. Imagino que não deva ter sido fácil para ele enfrentar as tensões raciais nos dois períodos em que serviu no Vietnã, embora não comente o assunto no livro – fala apenas dos problemas organizacionais e de liderança política do Exército.

A carreira de Rice também impressiona. Ela ascendeu na elite americana através do meio universitário, tornando-se respeitada cientista política especializada na União Soviética. Li alguns de seus ensaios – discute o pensamento militar de Lênin e Trótski, citando os jornais bolcheviques da era revolucionária no original em russo. Conquistou a admiração de dois poderosos mentores que abriram seu caminho a Washington - Josef Korbel (ex-diplomata tcheco, pai da secretária de Estado de Clinton, Madeleine Albright) e do general Brent Scowcroft, Conselheiro de Segurança Nacional de Bush pai.

Rice veio de uma família de classe média, mais próspera do que os imigrantes jamaicanos que eram os pais de Powell. Mas enquanto o futuro general cresceu no ambiente relativamente seguro de Nova York, Rice vivia na conturbada cidade de Birmingham, no Alabama. Uma de suas colegas de escola primária foi morta no célebre atentado da Ku Klux Klan contra uma igreja da comunidade negra.

Historicamente, o Partido Democrata dos EUA se saiu melhor com minorias (negros, judeus, católicos) e pode causar estranhamento que os dois negros de maior destaque na política americana sejam republicanos. Acredito que isso mostra que a questão racial nos EUA extrapolou as linhas partidárias – muitos negros de classe média passaram a votar nos republicanos porque se tornaram mais conservadores em temas familiares e religiosos. E tem a ver, claro, com a capacidade da atual elite americana em recrutar indivíduos talentosos de diversas origens étnicas. O caso dos hispano-americanos é semelhante.

Candace Allen também é negra, mas afirma que Condoleezza Rice lhe provoca repulsa, por conta da política externa que implementa. Talvez. Mas Rice e Powell eram vozes de moderação em meio a figuras como Rumsfeld, Cheney e sei lá qual outro psicopata no gabinete Bush. Desconfio que o julgamento da história será mais ameno para ambos, e que continuarão a ser visto como “role models”, como exemplos de sucesso e oportunidades, para os jovens negros nos EUA e fora do país.

Claro que Barack Obama também representa a mesma mensagem. O Center for Global Develpoment faz uma análise entusiasmada de suas idéias sobre cooperação internacional, algumas das quais são bem interessantes. Em tom mais sóbrio, a Economist desta semana comenta as propostas de política externa dos pré-candidatos à presidência dos EUA. A maioria das iniciativas oscila entre o lugar comum e a insanidade. A revista destaca a parca experiência que os pretendentes à Casa Branca têm dos assuntos internacionais. Deveras preocupante. Contudo, a Economist também publica boa pesquisa de opinião pública sobre a agenda diplomática entre os eleitores americanos, divididos por partido.



Os dados mostram a polarização crescente entre democratas/republicanos em torno à guerra do Iraque – não era assim há quatro anos – um apoio relativamente elevado aos aspectos mais duros do combate ao terrorismo, incluindo uso da tortura. As dificuldades econômicas se manifestam na rejeição aos acordos de livre comércio, embora eu ache que o Nafta está levando a culpa por problemas que nada tem a ver com ele, como as turbulências no mercado imobiliário.

Por fim, um link delicioso: Roger Cohen escreve no International Herald Tribune sobre o que os EUA podem aprender com a democracia na Venezuela. Pequeno trecho: “As credenciais democráticas da Venezuela são robustas para a América Latina – a democracia prevaleceu desde 1958 – mas tímidas para os padrões americanos. Ainda assim, houve sinceridade, sentido e responsabilidade cívica nos procedimentos [do referendo] que fazem a disputa inicial da eleição [presidencial] americana parecer lamentável.”

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Cinema e Direitos Humanos na América do Sul


Começou ontem a II Mostra sobre Cinema e Direitos Humanos na América do Sul. Nem soube da primeira, mas esta ficou muito interessante. O cineasta gaúcho Giba Assis Brasil, curador do evento, selecionou cerca de 40 filmes que tratam do tema, e relacionou cada um com os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa seu sexagésimo aniversário em 2008.

Os filmes vêm de diversos países sul-americanos e foram lançados entre 2004 e 2008. São uma amostra do excelente momento vivido pelo cinema do nosso continente, em particular nos documentários, e ilustram como a sétima arte regional está muito atenta para os temas sociais. Aliás, não só aqui. A Human Rights Watch organiza até um Festival Internacional de Cinema sobre o assunto.

Como era de se esperar, boa parte da produção lida com os traumas das ditaduras militares recentes, às vezes fazendo a ponte com as mazelas contemporâneas, como a violência urbana. A questão da discriminação racial também está presente em vários filmes, tanto no aspecto dos negros quanto no dos índios. Há também a agenda sócio-econômica, configurando panorama bastante completo. A maioria das pessoas só associa direitos humano ao combate ao abuso de poder por parte do Estado, mas essa é uma dimensão reduzida dos tratados internacionais sobre o tema.

Por coincidência, no sábado lecionei na pós-graduação sobre cultura e relações internacionais. Não é a parte do programa sob minha responsabilidade, mas assumi a tarefa por razões de doença de um colega. Expus aos alunos três maneiras de pensar o ponto: 1) Cultura como extensão do poder/influência do Estado (soft power); 2) Cultura como comércio exterior, com os impactos nas negociações internacionais; 3) A dimensão artística e humanista que leva ao questionamento das ações dos governos.

A turma da Candido Mendes é excelente e o debate foi muito rico, com várias discussões sobre os conceitos, críticas às políticas brasileiras da área e muitas citações a filmes e livros clássicos. É um privilégio ser pago para coordenar esse tipo de coisa!

Esta mostra é uma iniciativa da Secretaria Especial de Direitos Humanos, vinculada à Presidência da República. Com alguma freqüência trabalho com o pessoal de lá, é gente muito boa, entusiasmada com o tema, e que muitas vezes enfrenta a falta de recursos e até a má vontade dos colegas de governo. A mostra prossegue até o dia 16 de dezembro em oito cidades (Rio, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Brasília, Belém, Belo Horizonte e Fortaleza). No Rio ela está no Museu de Arte Moderna. Pena, porque o local não é muito acessível para quem não tem carro, em especial à noite, e um evento tão importante deveria estar mais próximo da população, sobretudo dos estudantes.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Democracia é governo perder eleições


A democracia é o sistema político no qual o governo perde eleições. A derrota de Chávez no referendo sobre a reforma constitucional na Venezuela exemplifica o funcionamento do regime. O presidente venezuelano teve diversas atitudes autoritárias durante a campanha, ameaçando opositores e qualificando-os como traidores da pátria. Contudo, a votação ocorreu com lisura e o governo aceitou a derrota, embora ela tenha ocorrido pela mínima margem de cerca de 125 mil votos, entre 9 milhões de votos. A abstenção foi alta, em torno de 45%.

É a primeira vez que Chávez perde uma eleição. O percentual de votos contrários a ele subiu de 40% para quase 51%. A coalizão de oposição é formada por pequenos partidos (novidade com relação ao binômio AD/Copei, que dominou a política venezuelana entre 1958-1989), pela Igreja Católica e pelo novo movimento estudantil, sem dúvida a novidade mais interessante do país neste momento.

Contudo, há consenso entre os analistas internacionais de que muitos chavistas votaram contra seu líder no referendo. Ou por outra, deram-lhe o recado de que seu apoio não se estende à medidas tão radicais quanto a reeleição ilimitada e a politização das Forças Armadas. São pessoas que querem a continuidade das políticas sociais, mas desejam mais tranqüilidade e menos radicalismo na vida pública. Conheci muita gente assim na Venezuela. E rejeitam o retorno ao status quo ante, a elite corrupta e incompetente do acordo de Punto Fijo, que morreu politicamente após a repressão aos protestos do Caracazo, em 1989.

O ponto polêmico é que Chávez fez um discurso dizendo que este é outro “por ahora”. O comentário desperta preocupações, porque se refere à célebre declaração que o então tenente-coronel deu à TV venezuelana em fevereiro de 1992, quando sua tentativa de golpe militar fracassou:

“Compañeros: Lamentablemente, por ahora, los objetivos que nos planteamos no fueron logrados en la ciudad capital. Es decir, nosotros, acá en Caracas, no logramos controlar el poder. Ustedes lo hicieron muy bien por allá, pero ya es tiempo de reflexionar y vendrán nuevas situaciones y el país tiene que enrumbarse definitivamente hacia un destino mejor. Así que oigan mi palabra. Oigan al comandante Chávez, quien les lanza este mensaje para que, por favor, reflexionen y depongan las armas porque ya, en verdad, los objetivos que nos hemos trazado a nivel nacional es imposible que los logremos.”

Por ahora, por enquanto, nossos objetivos fracassaram, dizia Chávez. A expressão acabou virando uma espécie de “a luta continua” de seu movimento, que seis anos depois daquele discurso chegaria à presidência, eleito pelo voto popular.

Oxalá a Venezuela possa encontrar uma saída e pacífica de sua crise política. Agradeço vivermos em época de pós-Guerra Fria e democracia regional na América do Sul. Em circunstâncias como a dos anos 1950-1970, um conflito como esse resultaria certamente em golpe militar.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A Vida dos Outros



Grande cinema na praça: "A Vida dos Outros", produção alemã que venceu o Oscar de filme estrangeiro em 2006, mas só agora chegou ao circuito brasileiro. É um drama sobre um oficial da Stasi, a polícia política de Alemanha Oriental, que recebe a missão de investigar um casal de artistas. Ele acaba se fascinando pelos dois, mudando sua forma de pensar e alterando seus relatórios para tentar protegê-los.

Tudo no filme é primoroso - roteiro, atuações, direção, ambientação política. A trama se passa em meados da década de 1980. O regime socialista da Alemanha Oriental já está desmoronando e até os membros da Stasi fazem piadas sobre a decrepitude do sistema. Contudo, ainda estamos longe da abertura na URSS e o medo e a apatia são disseminados entre a população.

Wiesler, o oficial da Stasi, é um burocrata exemplar, embora não seja fanático. Tem uma vida tediosa e solitária e acredita em regras e no cumprimento da lei. Mas também sabe que o Partido Comunista se corrompeu e virou abrigo de carreiristas como seu chefe, o tenente-coronel Grubitz, um cínico que faz tudo para subir na carreira. Quando o filme começa, Grubitz aceita uma "sugestão" do ministro da cultura para vigiar o dramaturgo Georg, conhecido por sua lealdade ao regime. Mas o ministro mantém um caso com a atriz Christa-Maria, namorada do escritor, e quer tirar o rival do caminho.



Georg é um artista que caminha no fio da navalha, devido a sua amizade com dissidentes políticos. Ele ainda crê na Alemanha Oriental, mas se sente cada vez mas tolhido pelas listas negras e censuras, que acabam afetando seu trabalho - sua nova peça, por exemplo, é prejudicada por um diretor medíocre, ao passo que o artista talentoso que ele gostaria de ter no comando do espetáculo está proscrito pelo governo. Christa-Maria também vive num perigoso limitar: talentosa, mas insegura, e consciente do risco que desavenças com as autoridades trariam para sua carreira.

A maior parte do filme se passa em 1984, mas há um pequeno - e excelente epílogo - ambientado após a queda do muro de Berlim, na qual os personagens refletem sobre o confuso episódio que viveram e procuram lidar com as memórias daquele tempo. Me lembrou muito uma extraordinária peça alemã que vi em Buenos Aires, "Democracia", de Michael Frayn, que seguia uma estrutura semelhante.

Detalhes do filme: ele foi o primeiro escrito e dirigido por Florian von Donnersmarck. Na realidade, foi seu trabalho de formatura na Escola de Cinema! Entre outras grandes sacadas de seu filme - ir ao cinema, como espionar, é dar uma olhadinha na vida dos outros. E, às vezes, sair profundamente modificado pela experiência.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Meu Reino por uma Reforma Constitucional


No século XIX, a América Latina passou por guerras civis que opuseram liberais e conservadores em temas como as relações poder central/províncias e Estado/Igreja. Ao fim de cada conflito, os vencedores promulgavam nova constituição. No século XX, direita e esquerda se enfrentaram nas urnas e com freqüência o desafio representado pelas forças de mudança social era resolvido por golpes militares. Neste início de século XXI os confrontos políticos se dão na Venezuela, na Bolívia e no Equador em batalhas por novas constituições, opondo presidentes com amplo apoio popular às instituições de mediação política: parlamentos e partidos. A conseqüência são mandatários carismáticos que recorrem a instrumentos de democracia direta, como referendos, e passam por cima dos direitos das consideráveis minorias oposicionistas, que com freqüência chegam a 40%, 45% do eleitorado.

Chávez começou a falar sobre a necessidade de nova constituição para a Venezuela na campanha presidencial de 1998 e a carta magna foi promulgada em 1999. Agora o presidente propôs 69 mudanças. As principais propostas, resumidas e analisadas em ótimo especial da BBC: 1)Aumento do mandato presidencial para sete anos e ausência de limites para reeleições; 2) Possibilidade de governar com mais poderes em situações de emergência de um ano, renováveis pelo parlamento; 3) Forças Armadas passariam a ser responsáveis por segurança doméstica, mudariam de nome (incorporando o adjetivo "bolivarianas") e teriam por inimigas o "imperialismo"; 4) Jornada de trabalho reduzida de 8 para 6 horas diárias.

O essencial da agenda é a concentração de poderes nas mãos de Chávez, incluindo as ferramentas para politizar (ainda mais) as Forças Armadas. Tem havido muita resistência por parte da sociedade venezuelana, como a marcha de 100 mil opositores em Caracas, críticas ferrenhas de ex-chavistas - como antigos ministros da Defesa e procuradores-gerais da República - e a ascensão de um movimento estudantil bastante combativo, que tem se mantido desvinculado dos partidos tradicionais.

A reforma constitucional precisa ser aprovada pela população no referendo de domingo e as pesquisas de opinião estão confusas e indicam todos os resultados: vitória do governo, derrota, empate técnico. Ontem eu conversava com um amigo que voltou há poucos dias da Venezuela, cobrindo o país para um grande jornal, e compartilhamos a preocupação de que o resultado - seja ele qual for - será por pouca margem, e dificilmente será aceito pelo lado perdedor.

Na Bolívia, a demanda por nova constituição é reivindicação dos movimentos sociais desde os anos 90, e foi promessa de campanha de Evo Morales. O presidente fez a concessão à oposição de aceitar a necessidade de 2/3 dos votos para aprovar a carta (o normal nesses casos é 50%+1), mas não esperava que fosse encontrar tanta resistência. O texto deveria ter sido votado em agosto. Há poucos dias houve aprovação irregular, num quartel de Sucre, sem presença da oposição e com muita violência de rua, resultando em centenas de feridos. De nada adiantou para o governo, porque a constituição precisa ser votada de novo, artigo a artigo, e submetida a referendo popular.

O projeto boliviano também prevê a possibilidade de reeleição ilimitada ao presidente - algo inusitado num país em que nos últimos 10 anos, nenhum completou o mandato. Isso não serve de consolo para os departamentos da Media Luna, que se opõem ao governo Morales. Pesam fatores econômicos (são mais ricos) e étnicos (são brancos). As disputas pelo controle dos lucros oriundos da exploração dos hidrocarbonetos são o cerne da questão - quanto caberá ao poder central, aos departamentos, aos municípios. Trata-se de profunda clivagem regional e étnica, comparável àquelas enfrentadas por muitos países africanos. A constituinte discute um pouco de tudo, parece o Brasil em 1988 - resolveram até atacar a FIFA.


No Equador, o modelo da reforma é próximo ao da Venezuela de Chávez. Correa foi eleito presidente sem ter nenhum deputado no Congresso. Propôs um referendo para criar uma Assembléia Constituinte, que ganhou com 80% dos votos. No novo órgão, o governo tem 80 dos 130 parlamentares e 8 meses para apresentar a nova carta. Ontem a Assembléia declarou o fechamento do Congresso oposicionista e também há muitos conflitos com a Suprema Corte (nomeada pelo Congresso). A província petrolífera de Orellana está em estado de emergência porque manifestantes ocuparam refinarias em protestos contra o desemprego.

Nos três países conheci pessoas muito envolvidas com a atual onda de mobilização política e muito entusiasmadas ao discutir - às vezes, choravam de tanta emoção. A política está nas ruas. Caso dos camelôs venezuelanos, que oferecem exemplares baratíssimos da constituição e das novas leis (foto). Ou o modo como os bolivianos incorporaram o debate constitucional ao seu cotidiano, até nas associações de moradores. É uma experiência muito rica para ser reduzida à compulsão de alguns presidentes de agir como vilões de Shakespeare, sempre em busca de poder. Meu reino por uma reforma constitucional.



Há muitas maneiras de se organizar a democracia e em países de instituições frágeis, como na América Andina, é praticamente inevitável a presença de um Poder Executivo hipertrofiado com relação ao Legislativo e ao Judiciário. Contudo, me parece que os andinos poderiam aprender muito com a experiência de outras regiões, buscando nelas inspiração para criar instrumentos de equilíbrio, negociação, consenso e continuidade nas políticas públicas. Funcionalismo público estável, com acesso por concurso, como existe no Brasil, faria bela diferença para amenizar crises, sobretudo no caso de juízes e promotores. Iniciativas africanas de resolução de conflitos étnicos, com a realização das grandes "conferências nacionais" (a África do Sul é o exemplo mais famoso) também poderiam ser de grande valia.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Caminhos da China


Os melhores livros sobre relações internacionais quase sempre são escritos por jornalistas. A inquietação e curiosidade que caracterizam bons repórteres ajudam mais no entendimento de sociedades estrangeiras do que a rigidez de modelos teóricos abstratos, que com freqüência buscam em outros países apenas a confirmação de uma tese definida de antemão. “Caminhos da China – a vida de cinco estudantes, da Revolução Cultural aos dias de hoje” é uma excelente análise escrita pelo americano John Pomfret, que foi chefe da sucursal chinesa do Washington Post e também cobriu o país para a Associated Press.

Pomfret cursava estudos asiáticos em Stanford quando surgiu a oportunidade de fazer um intercâmbio na China, em 1981. O país havia iniciado as reformas econômicas e a sociedade apenas despertava da violência e do pesadelo da Revolução Cultural, a feroz disputa pelo poder entre Mao e a velha guarda do Partido Comunista. Os colegas de Pomfret na universidade haviam passado fome, sido torturados, enviados para trabalhos forçados no campo e ficado anos sem estudar, por conta do fechamento das escolas e universidades. Com a reabertura do ensino superior, dedicaram-se com paixão ao estudo e tinham pelos estrangeiros – sobretudo americanos e europeus – mistura de fascínio, medo, curiosidade e desprezo. Havia algo em seus amigos chineses que os permitiu seguir adiante: personalidade forte diante das injustiças, capacidade de adaptação e negociação, misturas de passividade e resistência ou simplesmente o instinto de sobrevivência política de como escapar das turbulências totalitárias.



Zhou Lianchun queria se tornar um intelectual, mas problemas políticos e um casamento desastroso o empurraram para o mundo empresarial, onde ele se tornou razoalvemente bem-sucedido com uma fábrica de processamento de urina para retirada de enzimas (!). Guan Yongxing abandonou a perspectiva de uma boa carreira em Pequim para dedicar-se a um marido muito amado e também ascendeu socialmente. Wu Xiaoqing virou um respeitado professor na mesma universidade em que seus pais lecionaram, e onde foram assassinados na Revolução Cultural, desenvolvendo uma estranha e por vezes deprimente relação com o Partido Comunista. Song Liming envolveu-se com o movimento pela democracia e se exilou na Itália, onde se destacou como jornalista especializado numa das novas paixões chinesas – futebol. Ye Hao seguiu carreira no Partido, destacando-se como líder regional, reformador econômico e político corrupto.

No panorama traçado por Pomfret, todos os seus amigos deixaram para trás a pobreza extrema em que cresceram como meninos camponeses e se tornaram parte da nova elite chinesa. Do ponto de vista dos valores morais, a história de sucesso é mais limitada. Somente Guan Yongxing e Song Liming viveram de acordo com um código de ética claro, o comportamento dos outros é bastante ambíguo e não raro, repulsivo.

O tom geral do livro de Pomfret é sombrio, ressaltando os aspectos negativos da China – a enorme corrupção, o autoritarismo, a desconfiança e as trapaças nas relações pessoais e a febre de consumo temperada pela busca de compensações espirituais para o vazio moral de uma geração que não sabe mais em que acreditar, e que descobriu que o conforto material não lhe trouxe a felicidade. Há ótimas informações sobre vários temas e momentos decisivos da nova China: a liberalização nos costumes, inclusive sexuais, as tensões políticas, os problemas ambientais, a epidemia de SARS e o conflito de gerações – com os filhos ultra-mimados de seus colegas tentando descobrir seu lugar no mundo.

É ótimo ser leitor de Pomfret, mas não gostaria de ser seu amigo. É um tanto chocante como expõe a intimidade de seus colegas, revelando detalhes muito particulares de suas vidas. Ele não menciona se pediu sua autorização ou mesmo se lhes contou que escrevia um livro. A bem da verdade, Pomfret também mostra bastante seu lado desagradável e às vezes se retrata como um gringo à cata de prostitutas chinesas, ou um sujeito que bajula os chefes e os mandarins comunistas. Se você quer educação e bons modos, compre um manual de etiqueta.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

16 Dias contra a Violência de Gênero


Entre 25 de novembro e 10 de dezembro, pessoas em todo o mundo realizam a campanha “16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres”. A data se explica porque nesse período se comemoram vários fatos importantes na história das lutas pelos direitos femininos.

Esta é uma época particularmente oportuna para a campanha devido à barbárie registrada em nosso país, no caso da adolescente paraense presa durante um mês numa cela com mais de 20 homens. O episódio ilustra o coração das trevas da ausência do Estado de Direito no Brasil, do total descaso das autoridades pelos pobres. Mas também revela o que pode melhorar: nos últimos dias, pela primeira vez em minha vida, vi o país inteiro indignado e revoltado pela dignidade de um ser humano, uma moça miserável do interior. Por alguns momentos, a sociedade rejeitou os piores aspectos do Brasil e quis que o país fosse diferente.

Infelizmente, relatório da Pastoral Carcerária apresentado à Organização dos Estados Americanos informa que o caso da jovem paraense não é isolado, foram observadas situações semelhantes em outras cinco regiões brasileiras. O relatório foi divulgado antes do caso do Pará, mas só depois do fato a imprensa se interessou pelo tema.

Também temos motivos para celebrar. Como a Lei Maria da Penha, que está em vigor desde 2006. Ela trata dos casos de violência de gênero e se aplica não só às mulheres. Foi criada por uma recomendação da OEA e pela pressão dos movimentos feministas, que demandavam legislação específica para crimes de agressões domésticas. O nome da lei homenageia uma mulher que ficou paraplégica após agressões do ex-marido e passou 19 anos lutando por sua condenação na justiça.

Você deve ter observado a freqüência de citações à OEA e isto não é à toa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos é um dos mais importantes instrumentos do sistema internacional de proteção a essas garantias e suas sentenças realmente tem influência e poder. O governo brasileiro perdeu um caso na Corte, envolvendo más condições na prisão de Urso Branco, em Rondônia. As autoridades brasileiras sentem bastante receio de novas condenações e levam a sério as recomendações da OEA.

Isso ilustra uma tendência mais ampla. Desde a II Guerra Mundial se construiu um amplo sistema internacional de proteção aos direitos humanos, centrado na ONU mas que também abrange organizações regionais como OEA, Mercosul, União Européia. Esses acordos tornaram os indivíduos sujeitos do direitos internacional e deram às pessoas a possibilidade de recorrer a tribunais no exterior para se proteger de suas próprias autoridades. Resultado das experiências traumáticas do século XX e uma arma, ainda que frágil, para fazer as mudanças avançarem na América Latina.



Os direitos das mulheres estão entre os protagonistas dos debates internacionais sobre temas sociais e os movimentos feministas são muito articulados no plano global. Para quem lê inglês, recomendo visitar o blog da campanha dos “16 dias” mantido pelo site britânico Open Democracy. Conta com depoimentos e histórias de todo o planeta.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A Democracia na América Latina



Há poucos dias o Latinobarômetro divulgou seu relatório anual sobre a democracia na América Latina. O resultado: os cidadãos mais satisfeitos com esse regime político estão nos regimes de forte tradição democrática, Costa Rica e Uruguai (83% e 75%). Em seguida, estão os governos mais à esquerda: Venezuela, Bolívia, Equador (entre 65% e 67%). A Argentina está com 63%, taxa baixa para seus padrões históricos, que em geral estiveram acima de 70%. Brasil, México, Chile, Colômbia e Peru estão todos em situação ruim - menos da metade (43%-48%) consideram a democracia o melhor sistema. Nos países da América Central e o Paraguai esse percentual sequer chega a 40%.



Em sua análise do relatório, a Economist afirmou que ele é "um alerta para os reformadores": as pessoas no continente não acreditam que o mercado irá lhes trazer a prosperidade e confiam no Estado para distribuir renda e prestar serviços sociais básicos. Dificilmente essa avaliação surpreende quem conhece a região, mas a revista faz uma observação interessante sobre o porquê do descontentamento: "Crescimento econômico e democracia melhoraram as vidas de muitos latino-americanos. Mas por sua vez isso parece ter elevado suas expectativas, ao invés de fazê-los mais satisfeitos com a situação de suas nações. ´Depois de quatro anos de crescimento as pessoas querem uma fatia maior do bolo´, diz a [diretora do Latinobarômetro] sra. Lagos."

E elas acham que o bolo não está muito gostoso. Só 21% dos entrevistados consideram que seus países passam por bom momento econômico e apenas 30% crêem que irá melhorar. No que toca aos problemas sociais, as preocupações principais são desemprego (18%) e crime (17%). Em geral os dois vêm juntos, mas na Venezuela se destaca o crime e na Bolívia e Equador, o desemprego.

Apenas 35% acreditam que as privatizações foram benéficas para seus países, mas 52% vêem a economia de mercado como o melhor sistema econômico. O percentual é quase o mesmo dos que acham que o Estado pode resolver muitos ou a maioria dos problemas (55%) o que aponta para uma população bastante centrista, avessa à fórmulas que puxem para um ou outro lado. Preocupa o baixo índice de participação em organizações políticas: apenas 15% em média, com poucos países subindo acima dos 20%.

O estudo do Latinobarômetro tem conclusões parecidas com aquele que o PNUD realizou em 2004 sobre a democracia na América Latina - participei de um seminário organizado pela instituição em Brasília para discutir aquele texto e as discussões se parecem muito com o que ocorre hoje. Basicamente, o contraste entre uma situação macroeconômica bastante boa e o desencanto dos cidadãos com seus sistemas políticos e econômicos, que são percebidos como distantes das pessoas comuns. O PNUD falava na necessidade de passar de "uma democracia de eleitores para uma de cidadãos". Em outras palavras, que houvesse mais envolvimento com os assuntos públicos.

Acredito que é justamente isso que explica o ótimo resultado obtido no Latinobarômetro por Venezuela, Equador e Bolívia. Estive nos três países entre 2004 e 2007 e não considero nenhum como modelo em termos de administração e políticas públicas. Mas há neles lições fascinantes sobre mobilização social, participação e sentimento bastante difundido entre os mais pobres de que finalmente o Estado faz algo por eles. Será que o preço disso é o alto nível de conflito político? Não creio. As circunstâncias na América Andina é que são diferentes, com o colapso de sistemas partidários e ascensão de lideranças carismáticas, que aspiram a falar diretamente à população - a Bolívia é a exceção, pois Evo Morales tem sólida base social.

Há tempos escrevi pequeno artigo sobre "o descompasso da América da Sul" em que tratei da distância "entre sociedades que se tornaram mais abertas e participativas e os sistemas político-partidários que não foram capazes de acompanhar o ritmo da transformação.". Concluía dizendo que "As recentes crises colocam dois desafios às democracias sul-americanas. O primeiro é a construção de instituições capazes de absorver os novos atores sociais e integrá-los ao jogo político. O segundo é a necessidade de fortalecer o Estado. Em sociedades marcadas por imensas desigualdades e graves problemas sociais, é urgente o aumento da capacidade governamental em responder de maneira eficiente às demandas por melhores condições de vida (...) Sem transformações efetivas, a democracia corre o risco de ser encarada pela população como mera encenação entre as elites de sempre."

O texto já tem dois anos e meio, mas continuo a pensar assim.

A imagem do post é de Mirko Ilic e mostra o regime político dos meus sonhos: a liberdade num caso de amor com a justiça.

sábado, 24 de novembro de 2007

O Parlamento do Mercosul



Passei os últimos dias em Brasília, no seminário “O Parlamento do Mercosul e os Direitos Humanos”. Ajudei a organizar o evento – entre outras 15 milhões de ocupações profissionais, coordeno o Grupo de Trabalho sobre Mercosul do Comitê de Direitos Humanos e Política Externa, que realizou o debate em parceria com o Parlasul e com o Congresso Nacional do Brasil.

Fizemos dois dias de discussões de alto nível, com parlamentares, representantes de órgãos públicos, acadêmicos e ativistas de direitos humanos. Vocês podem acompanhar os debates pela TV Câmara, que gravou todo o evento e o exibirá em sua programação. Garanto que o nível das apresentações foi muito mais elevado do que aquilo que se vê habitualmente nos canais a cabo – é covardia fazer comparações com a televisão aberta.

Revisamos todo o processo de formação do Parlamento do Mercosul, com os deputados e consultores contando como foram as negociações com os presidentes do bloco e entre os parlamentares, para se chegar a um modelo comum de regimento interno. Discutimos os mecanismos de participação da sociedade, cogitamos fórmulas para organizar as eleições para a instituição e avaliamos as políticas regionais de direitos humanos para diversas áreas, como saúde, direitos das mulheres e migrações internacionais. Me surpreendi em ver como há iniciativas interessantes em curso, que precisam ser melhor conhecidas.

Minha palestra tratou da questão da juventude no Mercosul. Apresentei um pouco da experiência da pesquisa na qual estou envolvido e usei os exemplos para debater o potencial do Parlamento do Mercosul. Ressaltei que é necessário maior harmonização entre as políticas públicas dos países do bloco (inclusive no que diz respeito aos métodos de coleta de estatísticas) e afirmei que não é mais possível pensar nos grandes temas sociais do Mercosul de maneira isolada para cada país. Problemas e soluções só fazem sentido no plano regional. Expressei a esperança de que o Parlasul possa contribuir para essa aproximação, mas frisei que é necessário que ele estabeleça uma assessoria técnica competente, capaz de realizar pesquisas e análises sobre a integração regional. Só assim o Parlasul terá relevância política e visibilidade para a opinião pública.

O ponto provocou polêmica – algumas pessoas julgam que o Parlamento não deveria se dedicar à produção de informações, que ficaria melhor sob condução da sociedade. Contudo, tenho a ótima experiência de trabalhar com o excelente instituto de pesquisa vinculado ao Parlamento do Canadá e vejo como faz falta aos Congressos latino-americanos uma organização semelhante, capaz de apoiar a ação parlamentar. Muitas vezes boas intençõe se perdem na falta de boas informações e ficam reduzidas a clichês. Acredito que isso será ainda mais importante no caso do Parlasul pelos pouquíssimos poderes dos quais ele dispõe, ao menos em sua fase inicial. O Parlamento terá que inventar um papel para si mesmo.

Também destaquei que é preciso ter cuidado para não repetir estruturas que já existem em outros órgãos internacionais. Citei o exemplo do Relatório sobre Direitos Humanos no Mercosul que o Parlamento quer realizar, que se parece muito com os que já existem no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Afirmei que o ideal seria que os processos se reforçassem mutuamente, e não que competissem entre si por recursos (tempo, verbas, interesse) escassos.

Outro bom ponto de discussão foi a questão da representação. Os membros do Parlasul devem falar em nome da população do bloco e não de cada Estado. A idéia é excelente, mas como contrariar toda a tradição política existente nos diversos países? E como conciliar com as carreiras parlamentares? Por exemplo, se um político é eleito pelo estado de São Paulo ou pela província de Buenos Aires, como seus eleitores reagirão se ele tomar decisões que favoreçam outra região, em nome da redução das assimetrias do bloco?

As controvérsias não têm respostas simples, mas para um jovem acadêmico foi um privilégio estar presente à criação de uma instituição que pode vir a ter um papel tão importante na política da América do Sul.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

O Jardim do Vizinho



Mestre Idelber postou o link para artigo do jornal La Nación sobre a ascensão do Brasil ao status de grande potência. O texto está muito comentado na blogosfera brasileira (chequem Pedro Doria e o Hermenauta) que oferecem ótimas sínteses do artigo. Portanto, vou apenas dar a contribuição do meu testemunho.

Quando morei na Argentina, realizei entrevistas com pessoas que haviam ocupado cargos de ministros, embaixadores e outras altas posições numa série de governos do país vizinho, em particular o período de Carlos Menem (1989-1999). Todos me diziam a mesma coisa: a de que o Brasil estava no caminho de se transformar numa grande potência, porque havia feito as escolhas corretas e perseguido políticas públicas coerentes, em particular nas áreas do desenvolvimento econômico e da política externa. Em contraste, criticavam a Argentina por sua extrema instabilidade e pelas constantes mudanças de rumo.

A comparação não é novidade para os especialistas na comparação entre os dois países. A quem se interessa pelo assunto, recomendo o soberbo livro "Ideas and Institutions: developmentalism in Brazil and Argentina", da minha querida mestra Katryn Sikkink, que aliás conheci em Buenos Aires. O início é uma obra-prima: a autora comenta a visita que fez ao Memorial JK em Brasília (que ela compara ao túmulo de Napoleão) com sua experiência de pesquisa no modesto centro de estudos dedicado a Arturo Frondizi. O ex-presidente argentino entre 1958-1962 teve programa muito semelhante ao nosso Juscelino, mas foi derrubado por um golpe militar ao qual se seguiram anos de turbulência e crise.

O que deu certo no Brasil? Basicamente, aqui houve desde a Revolução de 1930 um esforço consciente em criar uma elite no funcionalismo público dedicada aos temas econômicos mais importantes. Começou de maneira hesitante com o DASP e depois resultou na criação da Petrobras, do BNDES, e no fortalecimento do processo de treinamento nas Forças Armadas, no Ministério da Fazenda e no Itamaraty. Esse corpo permanente de tecnocratas manteve um alto grau de continuidade, mesmo nas transições (sempre muito negociadas) entre democracias e ditadura.

No fim dos anos 1950 o PIB do Brasil era apenas levemente superior ao da Argentina. Hoje, é cerca de quatro vezes maior. O crescimento da economia brasileira foi acelerado e constante, enquanto a Argentina seguiu um ciclo instável de stop-and-go, muito motivado por suas repetidas crises políticas. Afinal, foram 6 golpes militares entre 1930 e 1976, fora diversas insurreições mal-sucedidadas, guerrilhas, a guerra das Malvinas e a quase-guerra com o Chile. Não há prosperidade que resista. Alguns falam do "milagre do sudesenvolvimento argentino" e a maioria trata com nostalgia da era de ouro do início do século XX, quando a renda per capita do país era mais alta do que a da Espanha ou a da Itália. O célebre economista sueco Gunnar Myrdal chegou a dizer que só existiam quatro tipos de países: desenvolvidos, em desenvolvimento, Japão e Argentina.

Contudo, os argentinos ignoram algumas das continuidades negativas da política brasileira, como a incapacidade de enfrentar o tema da desigualdade social e a ausência de investimentos na educação básica, embora os brasileiros tenhamos um bom sistema de pós-graduação universitária. Ao passo que a Argentina montou uma rede invejável de escolas públicas desde o século XIX, e um sistema de universidades que já foi o orgulho do continente, apesar de estar em crise desde a década de 1960.

O interessante é que com todas as dificuldades, a qualidade de vida da Argentina (medida pelo Índice de Desenvolvimento Humano) continua a melhor da América Latina. Depois temos Uruguai e Chile. O Brasil-potência, como a Rússia do Czar, não transforma sua influência internacional num bom padrão de moradia, saúde ou educação. Será que o Brasil-Arábia Saudita conseguirá melhorar nesses aspectos?

Em geral eu comentava com meus entrevistados argentinos que era preciso levar em conta o lado sombrio do Brasil, e que a sociedade daqui não era exatamente modelo de desenvolvimento social para ninguém. Ainda que o jardim do vizinho sempre seja mais verde. O ideal, claro, seria uma síntese das virtudes dos dois países. Quem sabe um dia?

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Burgueses e Boêmios



Neste longo feriadão – 6 dias para nós, cariocas – assisti ao ótimo musical “Rent”. O filme é uma adaptação do espetáculo da Broadway e no Brasil não foi exibido nos cinemas, sendo lançado direto em vídeo. Basicamente, conta um ano na vida de um grupo de aspirantes a artistas que vivem no East Village de Nova York. “Rent” celebra a cultura boêmia de criatividade, ruptura dos padrões e da vanguarda artística, mesmo que isso singnifique pouca grana. Se o enredo lhe parece familiar, não estranhe: há muitas citações à ópera La Bohéme que trata mais ou menos da mesma coisa, só que na Paris do século XIX.

Rent é um barato, com canções muito bonitas – destaque para o tema de abertura, “Seasons of Love”, e para “Light my Candle”, o grande momento da personagem interpretada por Rosario Dawson. Os atores estão visivelmente entusiasmados com os papéis e é o tipo de show que os americanos sabem fazer tão bem. Só que lá pelas tantas fiquei um tanto incomodado com a contradição: um musical da Broadway, totalmente mainstream, que louva exatamente o oposto do que esse mundo representa. Ok, nada de tão diferente dos industriosos burgueses europeus que ouviam as óperas de Puccini sobre artistas sem dinheiro, gueixas japonesas ou qualquer exotismo que os distraíssem da rotina da semana. Mas ainda assim, contradição.

Estamos além da mera válvula de escape ou da hipocrisia e a melhor análise que conheço é o brilhante ensaio de David Brooks, “Bubos no Paraíso – a nova classe alta e como chegou lá”. Brooks é um jornalista de currículo impressionante que inclui New York Times, Wall Street Journal, New Yorker, Washington Post, Newsweek e Weekly Standard.

Seu livro é um comentário bem-humorado e irônico sobre a nova elite americana, que ele afirma ser uma mistura de “burgueses e boêmios” (Bubos), fruto da contracultura dos anos 60 e da expansão do ensino universitário meritocrático, aberto ao talento. Muito instruída do ponto de vista formal, ela levou à economia da informação valores mais libertários e questionadores do sistema, mesmo quando ganham milhões – pense em Bill Gates, Steven Spielberg, o que seja. Aliás, também se comenta o mesmo em outros países. Na França Luc Boltanski escreveu obra parecida sobre "Le Nouvel Espirit du Capitalisme".

Uma das canções mais divertidas de Rent é, justamente, La Vie Bohéme, que parece uma daquelas list songs de Cole Porter, com a enumeração do que consiste o estilo boêmio. Engraçado comparar com a descrição de Brooks, porque os itens coincidem em diversos pontos, da preferência por alimentos orgânicos ao dramaturgo tcheco Vaclav Havel. Aliás, a área de Nova York onde se passa Rent deixou de ser um reduto de artistas pobres há 10 anos e virou uma zona para profissionais sofisticados e ricos, muito na linha do que Brooks descreve.

No fim das contas, diz Brooks, os Bubos são muito moderados politicamente e detestam a polarização partidária. Bem, o livro foi publicado em 2000 e muita coisa mudou após os atentados do ano seguinte. Sobretudo, Brooks contou um lado da história – a ascensão da nova elite – mas não abordou o quadro de desigualdades sociais crescentes que deixou tantos americanos para trás e tornou amargo e virulento o debate político do país. Na realidade, muito do crescimento dos republicanos se deve à conquista desse eleitorado, como os brancos pobres do sul dos EUA, que até os anos 1960 eram majoritariamente democratas.