sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Malvinas: sal nas feridas


Minha mestra Maria Regina foi quem me indicou “Sal en las Heridas: las Malvinas en la cultura argentina contemporánea”, do cientista político Vicente Palermo. O livro recém-lançado reflete sobre os 25 anos da guerra pelas ilhas e é dura crítica ao nacionalismo do país vizinho.

Quando fui morar em Buenos Aires tinha curiosidade pelo conflito, mas não esperava que o interesse diletante fosse importante para a pesquisa da tese. Foi. Em grande medida porque, como me disse um embaixador que desempenhou importante papel na guerra, “as Malvinas continuam a ser um problema que atrapalha toda a política externa argentina”. De fato, os esforços para recuperar as ilhas perturbam as relações com o Reino Unido (e por tabela, com a União Européia), com os EUA, determinam posições na ONU (é preciso apoio do bloco afro-asiático na Assembléia Geral) e repercutem também na agenda latino-americana.

As ilhas haviam sido disputadas por Inglaterra, França e Espanha e foram ocupadas pelos britânicos em 1833. Palermo reconstrói a história de como a disputa territorial se tornou uma questão crucial para o nacionalismo de massas, basicamente nos turbulentos anos 1930/1940, quando a intensa proximidade que Argentina e Grã-Bretanha desfrutavam começou a ser questionada em função dos rearranjos da Grande Depressão.

O livro de Palermo se vincula aos estudos de autores como Carlos Escudé e Pablo Lacoste, que criticam o modo como se formou na Argentina uma ideologia nacionalista agressiva, baseada em visões de perda de país que deveria ter o tamanho do antigo Vice-Reinado do Prata, englobando também Paraguai, Uruguai, Bolívia e partes do Chile. E as ilhas Malvinas, as Geórgias do Sul e as Sandwich. O cerne desse imaginário é que a Argentina foi mutilada em função da perfídia das grandes potências, da corrupção de sua elite ou da incompetência de seus diplomatas, que teriam perdido na mesa de negociação o que os militares ganharam no campo de batalha.

O caso argentino está longe de ser único e é pena que Palermo não desenvolva o ponto. Visões assim são comuns no Chile (a “perda” da Patagônia para a Argentina), na Bolívia e no Peru (a disputa pelos despojos da guerra do Pacífico, em particular o acesso boliviano ao mar), na Colômbia, Equador e Venezuela (a fragmentação da “pátria grande” de Bolívar). Claro que no Brasil é diferente, pois tanto no Império (o nome do regime já diz tudo...) quanto na República o expansionismo foi muito eficiente em abocanhar território dos vizinhos, em geral através de negociações pacíficas.



O ponto alto do livro é a análise dos lugares-comuns sobre a guerra das Malvinas. Palermo examina as posições contraditórias entre os que rejeitavam a ditadura mas apoiaram a guerra, ou tentaram separar o que consideravam uma causa justa de meios torpes. Não faltaram momentos bizarros, como o chanceler Nicanor Méndes abraçando Fidel Castro em nome da luta conjunta contra o imperialismo.

No cenário confuso, destaca-se o bom humor de Jorge Luís Borges, que depois escreveria um tocante poema em prosa sobre a guerra. Durante o conflito, disse que era melhor ceder as ilhas à Bolívia, que desse modo ganharia sua sonhada saída ao mar, matando dois coelhos com um só tiro. Ou a lucidez de Julio Cortázar, ao afirmar que a questão não era os militares entrarem nas Malvinas, mas sim voltarem aos quartéis. Ponto semelhante ao das Mães da Praça de Maio: “As Malvinas são argentinas. Os desaparecidos também.” Ou da mãe de um rapaz, que o recebe com a notícia: “Afundamos um navio!”. O garoto escreve em seu diário, irônico, que mamãe torpedeara um destróier britânico.

Palermo faz excelente retrospecto de como os governos pós-redemocratização lidaram com o tema das ilhas e com certeza aproveitarei vários dos seus comentários sobre Kirchner, em especial o interessante paralelo que ele traça entre as Malvinas e as reações na Argentina à construção das papeleras no Uruguai, examinando o que chama de “nacionalismo vitimista”. E agora os britânicos querem apliar a zona de exploração econômica nas Malvinas e na Antártida. Claro que haverá tensões.



O livro é obra de polêmica, de combate, feito para atacar uma posição. Está bem, mas eu gostaria de ler um estudo um pouco menos comprometido, quero realmente entender os sentimentos que a guerra deixou. Penso no monumento aos mortos no conflito, construído bem frente à Torre com que a Inglaterra presenteou a Argentina no centenário de sua independência. Ou no memorial ao afundamento do cruzador General Belgrano, na estação de metrô de mesmo nome, onde eu saltava para ir à universidade. E também em obras de arte de alto nível, como os filmes “Los Chicos de la Guerra” e “Iluminados por el Fuego”, e o romance “Dos Veces Junio”, que merecem análises detalhadas.

6 comentários:

Anônimo disse...

Boas dicas, reafirma que blog também é cultura.

Maurício Santoro disse...

Espero que sim!

Abraços

Rodrigo Cerqueira disse...

"Los Chicos..." é um filme muito bom, vi recentemente no Futura. Vou tentar comprar o livro.

Você vai ao Seminário no Itamaraty dias 5 e 6 de novembro? Se for, a gente se vê por lá. Grande abraço.

Maurício Santoro disse...

Olá, Rodrigo.

Provavelmente estarei em São Paulo no dia da conferência da FUNAG. Me conte como foi.

Abs

José Elesbán disse...

Grande resenha!

Unknown disse...

Maurício, sou Vicente, obrigado pela resenha! Posso te enviar muitas coisas sobre Malvinas e sobre a crise das "papeleras", mas, não espere nada "menos comprometido", embora tenho a certeza de ser em meu trabalho inteletualmente muito rigoroso. Pode me escrever ao endereço vicentepalermo@gmail.com Abraço, Vicente