quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Na Prisão com Mandela


No sábado dei aula sobre o uso do cinema para o estudo das relações internacionais. Entre outros pontos, comentei que os filmes sobre a África tratavam menos da realidade do continente do que dos esforços de algum branco bem-intencionado (nativo ou estrangeiro) para melhorar a qualidade de vida dos negros. Disse aos alunos que era uma perspectiva muito limitada, e que bastava a comparação com a produção artística e intelectual dos próprios negros africanos para constatar esses problemas. Bom exemplo é contrastar o filme “Mandela – a luta pela liberdade” (Goodbye Bafana, no título original) do diretor dinamarquês Bille August com a autobiografia do ex-presidente, “Long Walk to Freedom”.

O filme é baseado em fatos reais e conta a amizade entre Mandela e um de seus carcereiros, James Gregory. O guarda foi o censor responsável pela correspondência dos líderes do Congresso Nacional Africano presos na ilha Robben (foto abaixo), um antigo leprosário próximo à Cidade do Cabo que virou a prisão de segurança máxima do apartheid. Com o tempo, Gregory passou a admirar Mandela, tornou-se seu amigo e acabou se convencendo da justiça de sua causa. Teve papel importante em garantir a segurança de Mandela no fim da década de 1980, quando suas condições de detenção foram relaxadas e ele negociou com o governo a transição do apartheid para a democracia.



É uma bela histórica, rica em relações humanas. A crítica brasileira detestou o filme, mas a meu ver os comentários foram injustos. É verdade que o roteiro tem problemas, e que as mudanças de atitude dos personagens ocorrem muito rapidamente. As atuações também poderiam ser melhores. Mas, para além de seus defeitos, é um retrato poético de um período essencial na história da África do Sul, cujos detalhes são pouco conhecidos no Brasil.

Minha objeção principal ao filme é que o foco é no carcereiro de Mandela. Assim como no longa sobre Steve Biko, que comentei recentemente no blog, os roteiristas europeus e americanos estão mais interessados nos dramas de consciência dos brancos do que na luta dos negros contra o apartheid. E com freqüência, este segundo aspecto é bem mais interessante.

Gregory, o carcereiro de Mandela, é retratado como um racista que aos poucos muda de opinião, em função do carisma de seu prisioneiro e de suas próprias experiências de uma infância passada na zona rural xhosa, próxima ao local onde nasceu Mandela. Essa é uma licença poética um tanto desnecessária. Em suas memórias, o ex-presidente cita Gregory algumas vezes, sempre com admiração e carinho, e ressalta que ele se destacava desde o início dos outros guardas, por sua gentileza e educação. Mandela elogia especialmente o respeito que Gregory devotou a Winnie, sua esposa e na cordialidade com que a recebia durante suas visitas às prisões.

O filme se concentra nos problemas familiares de Gregory, que vive uma rotina de classe média baixa e sonha em enviar os filhos à universidade (que eram muito caras durante o apartheid), embora mal tenha dinheiro para as despesas essenciais. Sua esposa teme que a amizade com Mandela acabe prejudicando sua carreira.

É um enfoque válido, mas não entendi por que deixar de lado o universo dos presos políticos, que levavam uma existência bastante movimentada na ilha Robben. Mandela descreve em detalhes as negociações e mobilizações incessantes que ele e os demais membros da liderança do Congresso Nacional Africano conduziram com os sucessivos diretores da prisão para melhorar as condições de vida. Aos poucos conquistaram vitórias expressivas, como a instalação de cursos educacionais – eram tantos que o lugar ficou conhecido como “a universidade”.

Outro ponto que valeria ser explorado é a relação entre a velha guarda da resistência ao apartheid, como o próprio Mandela (preso em 1962) e a nova geração que começou a ser detida após a rebelião de Soweto (1976), já influenciada pelo movimento da consciência negra de Biko. As discordâncias eram profundas e o regime do apartheid fez tudo para estimulá-las. Enfim, tudo isso está muítissimo bem narrado na autobiografia de Mandela, um livro extraordinário que é um dos meus favoritos.

A ilha Robben é hoje um ponto turístico muito visitado e com freqüência ex-prisioneiros e ex-guardas convivem como guias, num exemplo notável de conciliação política, dificilmente observado em outros países. Eu teria encerrado o filme com uma cena que mostrasse um encontro desse tipo.

6 comentários:

Patricio Iglesias disse...

"Entre outros pontos, comentei que os filmes sobre a África tratavam menos da realidade do continente do que dos esforços de algum branco bem-intencionado (nativo ou estrangeiro) para melhorar a qualidade de vida dos negros."
Sim, a África sempre é vista como um lugar donde há que fazer caridade, rasgar as vestiduras ante a pobreça... uma sorte de favela mundial. Mas, tentar saver cómo pensam os africanos... ah, isso näo é tarefa dos "brancos bons". Odéio issa visäo. Todos falam da África, mas poucos têm interés verdadeiro em conhecer mais deles.
Saludos!

Anônimo disse...

Maurício, eu não entendi. Você gostou ou não do filme?

Maurício Santoro disse...

É Patricio, o espírito dos filmes é esse. Às vezes não é assim tão diferente no que diz respeito às produções sobre América Latina. A minha cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, costuma ser retratada como uma mistura de bordel e praça de guerra.

Leandro, de modo geral gostei do filme, me fez lembrar de muitas coisas legais que vi na África do Sul. Mantenho, porém, várias ressalvas e acho que poderia ter sido um drama bem mais interessante se tivesse dado mais voz aos personagens negros.

Abraços

Enzo Mayer Tessarolo disse...

Realmente, praticamente todos os filmes que tratam de questões africanas têm um branco como personagem central. Um americano ou um europeu que se simpatizam (ou se chocam?) com algum problema da África e mudam sua vida pessoal para tentar deixar a realidade africana menos cruel. Acho que algumas exceções são os famosos filmes sobre Ruanda, "Abril Sangrento" e "Hotel Ruanda".

Me interessei, também, pelo que o senhor disse sobre o uso do cinema para o estudo das relações internacionais. Estou escrevendo minha monografia sobre a noção do "Inimigo" mostrada por filmes hollywoodianos e pelo governo norte-americano, no contexto da Guerra Fria e atual, e gostaria de saber se o senhor teria algum livro ou artigo para me indicar...

obrigado,
Enzo Tessarolo

Maurício Santoro disse...

Salve, Enzo.

É um belíssimo tema o que você escolheu. Te recomendo "American History and Contemporary Hollywood Film", uma coletânea de artigos organizada por Trevor B. McCrisken e Andrew Pepper.

Você tem um material muito rico para analisar no período dos anos 90/2000. Era o momento em que os Estados Unidos estavam à busca do novo inimigo, pós-URSS, e valia de tudo: terroristas árabes, rebeldes somalis, ou os alienígenas de Independence Day.

Abraços

Enzo Mayer Tessarolo disse...

opa, obrigado pela dica, Maurício!

De fato, vários artigos que eu li falam dessa busca por novo um inimigo, na década de 90.

Vou procurar essa coletânea!

Muito obrigado