terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Rússia Pós-Soviética



"Terra Negra - uma viagem pela Rússia pós-comunista", Andrew Meier (Ed. Globo)

"A Era dos Assassinos - a nova KGB e o fênomeno Vladmir Putin", Yuri Felshtinsky (Ed. Record)

"Rússia - o ressurgimento da grande potência", Roberto Colin (Ed. Letras Brasileiras)

"A morte das formas contemporâneas da ordem social precisa alegrar, e não perturbar a alma. Mas o que dá medo é que o mundo que se vai deixa para trás não um herdeiro, mas uma viúva grávida."

Alexander Herzen, pai do socialismo russo, em meados do século XIX

Um dos temas que mais têm me interessado nas relações internacionais é a ascensão dos BRICs. E dos membros que formam a sigla, o país sobre o qual menos conheço é a Rússia. Ou melhor: li muito a respeito do império czarista e do século soviético. Estou no escuro quando o assunto é a situação do país após o comunismo. Por isso mergulhei em lançamentos recentes, listados acima.

A década de 1990 foi a transição de choque para o capitalismo. Na farra das privatizações fraudulentas, o resultado foi a ascensão de um grupo de altos funcionários soviéticos e/ou chefes de máfias que se tornaram empresários milionários na base de fraudes e negociataso que os russos chamam de "oligarcas". Eles já existiam desde os dias difíceis da era Brejnev, mas deram as cartas no país durante o governo Ieltsin, até a grave crise econômica de 1998.

Com Putin, tiveram licença para continuar a ganhar dinheiro, mas foram excluídos do jogo político e aqueles que se opuseram ao Kremlin foram perseguidos, presos, assassinados ou exilados. O Estado se (re)fortaleceu e ganhou destaque uma rede de funcionários das Forças Armadas e dos serviços de segurança e inteligência, que retomaram a política externa belicosa no Cáucaso e no Báltico.

Internamente, a frágil democracia russa tem sofrido em suas mãos. Perseguiram opositores, tomaram o controle da mídia privada e nomearam funcionários do Kremlin para substituir políticos eleitos, tanto nas províncias como no parlamento. Ainda assim, Putin e os seus têm significativo apoio popular, pois a população ansiava por um mínimo de lei e ordem, após anos de caos e violência, e a classe média queria crescimento após a destruição de suas economias na hiperinflação de meados dos anos 90.

Dos livros que citei acima, o que melhor captura esse período turbulento de 20 anos é o de Meier, uma obra-prima sobre o cotidiano do povo russo ao longo dessas décadas difíceis. O autor é um brilhante jornalista americano que escreveu para Time, Washington Post, New York Times e foi comentarista na BBC e na CNN. Tem um profundo conhecimento sobre o país e um amor autêntico por sua cultura e sua gente.

Seu livro é soberbo: uma viagem pelos quatro cantos da Rússia, organizada segundo os principais marcos geográficos: oeste (São Peterburgo e o movimento democrático na cidade); leste (a Ilha de Sakhalina, a indústria do petróleo e as tensões entre Rússia, China e Japão); norte (um cruzeiro pela Sibéria a um antigo campo de concentração de Stalin, num grande centro de mineração) e sul (o Cáucaso e as duas guerras na Chechênia - a foto abaixo retrata as ruínas de Grozny, capital chechena). Há dois capítulos especiais sobre Moscou e os hábitos do poder na capital.



Meier entrevistou todo mundo: veteranos de guerra, ex-prisioneiros de Stálin, escritores alternativos, oligarcas, gangsters, trabalhadores, empresários. Com freqüência, traça retratos humanos inesquecíveis, meu favorito é o da sobrevivente do cerco dos nazistas a Leningrado, na Segunda Guerra Mundial, que lhe fala sobre seu trabalho numa padaria, durante aquele conflito. As descrições sobre o Cáucaso são particularmente boas e ele aborda em detalhes as circunstâncias atuais - a luta para preservar a integridade territorial da Federação Russa, um mosaico de dezenas de etnias, os choques entre Estado e Islã.

O historiador russo Yuri Felshtinsky é duas vezes dissidente. Trocou a URSS pelos EUA na década de 1970 e na era pós-comunista se destacou como critico feroz de Putin. É um ofício perigoso. Ele escreveu um livro com Alexander Litvinenko, um ex-espião russo que acusou o presidente de diversos crimes. Litvinenko fugiu para o Reino Unido, mas foi assassinado por lá, com veneno radioativo. Outros inimigos de Putin tiveram destino semelhante, como a jornalista investigativa Anna Politkovskaya.

O livro de Felshtinsky é informativo, mas duro, difícil de ler. Basicamente, é um apanhado de denúncias contra Ieltsin, Putin e seus aliados. O argumento do autor é que Putin foi colocado no poder pelos serviços de segurança e de inteligência, para gerenciar um gigantesco esquema de compadrio e loteamento do Estado e das empresas privadas. Visão bem distinta é a oferecida pelo diplomata brasileiro Roberto Colin, que examina a ascensão de Putin muito mais em função de sua habilidade em fornecer segurança e estabilidade a uma população ansiosa por esses dois bens públicos.



De fato, há problemas na tese de Felshtinsky. Um deles é que a carreira de Putin na KGB foi modesta. Ele serviu em Dresden, uma cidade provinciana da Alemanha Oriental, quando os melhores agentes eram enviados para os EUA e a Europa Ocidental. Seu ponto de virada ocorreu quando era tenente-coronel e estava em Leningrado, onde se tornou um dos principais assessores do prefeito Anatoli Sobchak, que à época era um dos mais importantes líderes democráticos da URSS. De lá, Putin foi para o Kremlin, trabalhar com Ielstin, que o nomeou para dirigir o Serviço Federal de Segurança (FSB), uma das organizações na qual a KGB se fragmentou. Ficou apenas um ano no cargo, foi promovido a coronel, e o presidente inesperadamente o nomeou primeiro-ministro, e depois fez dele seu sucessor.

Putin não é bom orador, nem carismático, mas é conhecido por sua capacidade como administrador. Seu estilo sóbrio, militar, é bastante admirado na Rússia. Pessoalmente, acho que ele tem se mostrado um político hábil, conseguindo navegar entre o saudosismo da grandeza perdida da URSS e o repúdio ao pior daquele passado. O que resultou em frases como: "Quem não lamenta o desmoronamento da União Soviética não tem coração, mas quem deseja a volta dela não tem cabeça."

Para além de suas qualidades pessoais, Putin foi beneficiado pela conjuntura econômica que multiplicou o preço do petróleo - a Rússia é a segunda maior produtora mundial, só está atrás da Arábia Saudita. O barril do ouro negro chegou a valer US$140, agora caiu abaixo de US$70. Cada dólar de queda representa menos US$1 bilhão no orçamento russo. Como o país liderá com a crise?

Foto que abre o post: monumento a vítimas de um dos quase 500 campos de concentração de Stalin, na cidade de Magadan, famosa pelas minas de ouro.

9 comentários:

Anônimo disse...

Pode pedir sua comissão à Globo: "Terra Negra" entrou na minha lista depois da sua indicação.

Um abraço, e parabéns pelo blog.
Rafael

Maurício Santoro disse...

Se a Globo disponibilizar o livro com mais força nas livrarias (é bem difícil de achar) já me dou por satisfeito, Rafael.

Abraços

Patricio Iglesias disse...

Caro Maurício:
É muito interessante o post, como sempre. Em minha opinäo é melhor saver antes sob a Rússia czarista e soviética e após dos novos tempos; é mais fácil aprender conhecendo melhor o passado e se conhece muito mais sob a cultura e idiosincracia do pais.
Só uma dúvida, suponho que tonta. Você diz que a Rússia é a segunda maior produtora do "ouro preto". Teria vantagens pra a Rússia um ingreso ou aliança com a OPEP?
Saludos!

Maurício Santoro disse...

Salve, Patricio.

A dúvida não tem nada de ruim, é um tema de debate forte na Rússia se o país deve ou não ingressar na Opep.

Me parece que a opinião que predomina atualmente é a Rússia faria melhor permanecendo fora da Opep. Se entrar para a instituição terá que adotar cotas de produção e exportação de petróleo, o que limitará seus lucros.

Esse é um problema particularmente sério para os russos, porque eles estão torrando suas reservas. Se continuarem no ritmo de hoje, elas terminarão em apenas 20 anos.

A Opep tem pressionado a Rússia para fazer algo a respeito e muitos políticos e diplomatas árabes têm visitado o país, em negociações de alto nível como nunca tinham ocorrido.

A Opep se reúne na sexta-feira, para discutir a crise. Vamos ver o que será dito sobre a Rússia.

Abraços

Janaina Amado disse...

Mauricio:
De blog em blog, cheguei aqui. Gostei muito do post, aprendi um bocado, vou ler o livro do Meler. Estive em Moscou e São Petersburgo há uns 2 anos, e 2 coisas me impressionaram muito: nunca vi no mundo jovens se vestindo tão na moda (principalmente em Moscou); e era palpável a indiferença e o desprezo dos jovens para com os velhos. Completa, total cisão de gerações. No meio, uma geração lá pelos 40, criada no socialismo e vivendo na Rússia de hoje, inteiramente perdida.
Parabéns pelo blog.

Ramon Blanco disse...

Grande Maurício,
a Russia sempre está em alta mesmo. Por aqui as discussões com relação russa sempre são envolvidas com um desconfiar, desconforto... ainda mais agora com essa estoria da Georgia. Contudo por dois pontos de contato e de atrito colocam a UE e a Russia assim, o alargamento e a NATO. Tenho lido algumas coisas de uma profa. minha que é uma super-especialista em Russia, Profa. Raquel Freire. Esta sempre aconselhando a alta diplomacia e os altos militares no tocante ao assunto. O contato dela é rfreire@fe.uc.pt. Sinta-se sempre a vontade de contata-la se quiser mais informações sobre algo. Sei disso porque também sempre comento de vc quando o assunto é AL e ela sempre fala de quando o assunto for Russia e regiao contacta-la.

No mais, muito trabalho por aqui. Estou gostando bastante do PhD, estou aprendendo demais! O problema é que fico com pouco tempo para o Botequim....

Grande abraço!
Ramon

Maurício Santoro disse...

Olá, Janaína.

Deve ter sido uma experiência muito interessante a que você viveu. Você escreveu sobre ela em algum lugar?

Infelizmente nenhum dos livros aborda em detalhes a questão da juventude, mas esse é um assunto que me interessa bastante, até porque trabalho com ele na América do Sul, e seria bom ter o contraste da Rússia.

Caro Ramón,

Obrigado pelo contato da sua professora, escreverei a ela se precisar de informações. Sinto falta de especialistas brasileiros que possam puxar um bom debate sobre Rússia.

Abraços

Anônimo disse...

Prezado Mauricio,

Bem a diferença da Rússia é que a crise deve ser a pá de cal que faltava para enterrar os oligarcas e diferente de outros países que vivem das commodities os russos ainda tem a "fronteira Artica" quase intocada e um forte gasto em pesquisa de ponta (militar eu sei, mas é de ponta

Maurício Santoro disse...

É verdade, Marcelo.

Inclusive tem havido uma corrida ao Ártio envolvendo a Rússia e outros países, que disputam as riquezas naturais da região.

Ironicamente, o aquecimento global tem facilitado o acesso ao Ártico. Neste ano, pela primeira vez foi possível navegar ao redor de toda a região, devido ao derretimento de algumas geleiras.

Abraços