sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A Geopolítica de Ormuz

No dia 28 o Irã iniciou uma manobra naval no estreito de Ormuz, por onde passam 17% do petróleo global. O exercício é uma resposta à nova rodada de sanções prestes a ser adotada pelos Estados Unidos e mais um episódio das tensões políticas entre os dois países e Israel. Os mercados reagiram com tranquilidade e o preço do barril chegou até a cair. A serenidade vem do poderio marítimo que os EUA tem na região, pois o Bahrein sedia a V Frota da Marinha americana. Há também a percepção de que as ações iranianas se dão em grande medida para consumo interno, devido aos conflitos entre conservadores e extremistas que disputam o poder em Teerã – os moderados estão na oposição, na prisão, no exílio ou no cemitério.

Ainda assim, o governo do Irã marcou um ponto, relembrando que em caso de guerra a situação no estreito prejudicaria de imediato o abastecimento de petróleo mundial e no mínimo elevaria os preços por conta do medo e da especulação inerente a esse tipo de crise. Os interesses envolvidos são imensos: além do Irã, as exportações da Arábia Saudita, Iraque, Kuwait, Catar e Emirados Árabes passam por Ormuz.

Apesar das diversas rodadas de sanções, a economia iraniana vai bem. Cresceu 5,5% em 2011. O PIB é da ordem de US$400 bilhões e cerca de 25% dele vem do petróleo. Os preços aumentaram 10% neste ano, o que também reforça o caixa do governo, visto que as sanções não afetaram a indústria dos hidrocarbonetos, por pressão de parceiros importantes como China e Rússia.

No início do governo Obama houve uma tímida tentativa de reestabelecer o diálogo com o Irã, descrita como “uma única jogada de dados”. Ela falhou e foi enterrada de vez na oposição dos Estados Unidos ao acordo proposto por Brasil e Turquia com respeito ao programa nuclear iraniano. O cenário no próximo ano é bastante sombrio, com o que promete ser uma campanha presidencial americana bastante agressiva, em meio às dores da crise e os temores do declínio da influência dos EUA no Oriente Médio.

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Este é meu último post do ano - movimentadíssimo, por sinal. Retomo o blog na segunda-feira e que 2012 seja pelo menos tão interessante quanto 2011. Me despeço com minha entrevista para a revista do Valor Econômico, na qual faço a retrospectiva dos últimos 12 meses e arrisco duas ou três previsões. Bom Ano Novo a todos!

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A Guerra de Cristina Kirchner contra a Imprensa

Na semana passada, escrevi que a vitória estrodosa que a presidente argentina Cristina Kirchner obteve em sua reeleição fez com que se sentisse forte o suficiente para deflagrar conflitos com ex-aliados no sindicalismo e para implementar controversas medidas econômicas, como restrições à compra de dólares. O round mais recente de suas batalhas políticas é contra os meios de comunicação, em particular contra os grupos Clarín e La Nación, no que constitui a maior ameaça à liberdade de imprensa na Argentina desde a redemocratização.

Nos dias que antecederam o Natal, o Congresso aprovou duas leis polêmicas: 1) Uma declara que a empresa que fabrica papel jornal, na qual o Estado é acionista minoritário com cerca de 30%, é de “interesse nacional”, no que está sendo encarado como primeira etapa no processo de sua nacionalização. Isso deixaria o fundamental suprimento desse produto sob domínio do Estado. 2) A outra tipifica o crime de terrorismo, de modo tão vago e amplo que funcionários do governo afirmaram que pode ser usada contra jornalistas que “estimulem o pânico”, por exemplo, “provocando uma corrida aos bancos”. Dada a atual situação das contas públicas argentinas, essa é uma acusação que pode ser feita a quem relate de maneira crítica as medidas oficiais. O juiz da Suprema Corte Eugenio Zaffaroni, respeitado por sua militância pró-direitos humanos, classificou a nova lei de “disparate”, embora tenha sido cauteloso para atribui-la a "pressões internacionais", e não às intenções dos peronistas.

Em paralelo à nova legislação, policiais ocuparam a sede da Cablevisión, um canal de TV pertencente ao Grupo Clarín e a Justiça ordenou bloqueio de bens do jornal La Nación. Ambos os processos estão repletos de irregularidades e são bastante questionáveis do ponto de vista jurídico, sendo explicáveis somente pela postura oposionista das duas empresas de mídia.

Os atos do governo argentino acontecem num turbulento ambiente regional, no qual autoridades da Venezuela, Equador e Nicarágua também tomaram decisões que limitam a liberdade de imprensa, sem que isso provoque a refutação de presidentes moderados da América Latina. A reação dos Estados Unidos veio em entrevistas de Barack Obama a jornais oposionistas venezuelanos e argentinos. Isso tem tudo para ser um desastre, na medida em que identifica os EUA com os grupos conservadores, minoritários na região. E com seu próprio péssimo histórico de censura, ditadura e ataques a jornalistas.

A imprensa latino-americana ainda é muito limitada ao controle de um pequeno grupo de grandes empresas, mas não ficará melhor caso seja submetida às manipulações políticas de governos. As novas tecnologias propiciam possibildades extraordinárias para meios de comunicação mais sintonizados com os valores e demandas da população regional. Mas o que está no horizonte é o enfrentamento mais duro dos governantes bolivarianos e peronistas com a mídia, amparados por sua ampla popularidade e pela maioria parlamentar da qual dispõem.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Café, Poder, Revolução e Democracia

Nos últimos 20 anos ganhou força a agenda de pesquisa das variedades do capitalismo, que examinam as diversas maneiras pelas quais se organizam as economias de mercado e suas relações com instituições como sindicatos, partidos, associações empresariais etc. Alguns desses trabalhos analisam também os impactos dos diferentes capitalismos para as políticas públicas ou para a própria democracia, como é caso do excelente “Coffee and Power – Revolution and the Rise of Democracy in Central America”, de Jeffery Paige. O autor parte de três paises dependentes do café – Costa Rica, Nicarágua, El Salvador – mas que têm histórias políticas muito diferentes, que oscilam da democracia sólida à revolução sandinista, passando por golpes, ditaduras militares ou personalistas.

Nos três países o café consolidou-se como o principal produto de exportação em meados do século XIX, e serviu de base econômica para a instalação de regimes liberais que procuraram varrer os vestígios dos sistemas feudais e mercantilistas da era colonial, criando sistemas modernos de propriedade da terra, do mercado de trabalho. Ainda que a política excluísse os pobres, que formavam a maioria da população.

Paige afirma que esse quadro foi transformado por três fatores: a estrutura de posse da terra, as relações entre fazendeiros e trabalhadores rurais e o grau de envolvimento da elite rural com o comércio e a agroindústria. Na Costa Rica, pequenos e médios produtores, articulados com um dinâmico setor de processamento e exportação do café, criaram ambiente bem mais propício à democratização, sobretudo a partir da crise da Grande Depressão da década de 1930. Em El Salvador, houve uma polarização violenta entre latifundários e uma mão-de-obra migrante, sem posse de terra, uma espécie de proletariado agrário. O resultado foram sangrentas rebeliões e contra-insurreições em 1932, num clima de radicalização ideológica. Na Nicarágua, a longa ocupação militar dos Estados Unidos gerou a rebelião nacionalista e religiosa (e anticomunista) de Augusto Sandino. Embora debelada pela ditadura da família Somoza, lançou bases para cooperação política entre diversas forças progressistas, que culminaria na aliança revolucionária sandinista em 1979.

Após a Segunda Guerra Mundial, a América Central experimentou os efeitos benéficos do boom econômico global, não só no café mas também com o agronegócio em geral: algodão, banana. Na Costa Rica, uma série de governos desenvolvimentistas apostou na indústria, por meio de empresas públicas. Na Nicarágua, surgiu uma camada de agroempresários prósperos e de mentalidade mais aberta, que questionavam as práticas corruptas e autoritárias de Somoza. El Salvador não teve o mesmo crescimento, mas também lá houve a ampliação de um setor mais moderno, que apoiou os esforços de uma junta militar reformista que tentou mudanças para impedir que a Revolução Sandinista chegasse também ao país. Mais tarde, foram importantes nas negociações de paz que puseram fim à guerra civil.

Os modelos teóricos sobre transições políticas, como os de Barrington Moore Jr, são taxativos: “não há democracia sem burguesia”, e a classe mais autoritária costuma ser a elite agrária, por conta de suas relações de força com seus trabalhadores. Paige relativiza esse paradigma, com a constatação de que na América Latina não há uma distinção clara entre burguesia e setor agrário (pessoalmente, acredito que a Argentina é uma exceção). Contudo, o autor afirma que quanto mais envolvida com o comércio e os aspectos industriais da agricultura, mais pró-democracia é o segmento agrário.

Os três países analisados por Paige são hoje democracias, embora a Nicarágua e El Salvador estejam sujeitas a muita instabilidade, por conta de bolsões autoritários no governo ou nas Forças Armadas, o fortíssimo impacto da violência urbana e os difíceis legados das guerras civis e intervenções militares estrangeiras. Seu livro é uma interpretação rica e criativa das jornadas rumo à liberalização política e com certeza inspirará muitas pesquisas futuras.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Sucessão no Reino Eremita

A Coréia do Norte tem o regime político mais fechado do mundo e apesar de nominalmente comunista desde a década de 1990 não funciona mais como um sistema dominado pelo Partido, mas por como uma ditadura militar cujo comando é transmitido de pai para filho. O fundador do Estado, Kim Il-Sung, o passou para seu rebento sonhador, Kim Jong-Il, que preferia ter sido cineasta. Ele faleceu no último sábado e a herança do “reino eremita”, como é conhecido o país, agora está com seu caçula Kim Jong-un, de apenas 28 anos (ou 27, não se sabe ao certo sua idade). Sua juventude e inexperiência significam que o poder real será exercido pelas Forças Armadas e por parentes mais velhos, como seu tio Jang Song Thaek.

O ambiente de segredo na Coréia do Norte é tão grande que a existência de Kim Jong-un era desconhecida no Ocidente até a década passada. Sabe-se que ele estudou na Suíça, sob um nome falso, e que sua mãe foi uma dançarina japonesa. Era o filho favorito de Kim Jong-Il, talvez pela semelhança física entre ambos, talvez pelo temperamento determinado e explosivo. Há relatos que o ditador teria excluído os primogênitos da linha sucessória por considerá-los de caráter fraco e até, pasmem, pouco resistentes à bebida.

Nos últimos 20 anos a principal atividade econômica da Coréia do Norte tem sido a extorção de ajuda internacional por meio de ameaças envolvendo seu programa nuclear e suas tecnologias militares avançadas, como a construção de mísseis. O principal patrocinador externo do regime é a China, que no entanto com frequência age no sentido de conter as iniciativas mais turbulentas de Pyongyang. Naturalmente, há muita especulação sobre o que significa a sucessão entre os Kims para as relações exteriores da Coréia do Norte. Aparentemente, o início do reinado do jovem Jong-un deve ser um período mais voltado para a consolidação de seu poder doméstico, com menos iniciativas internacionais.

A maré de protestos democráticos que atravessou os países árabes e a Rússia não mostra sinais de ter chegado à Coréia do Norte. Como se vê pelo vídeo acima, pelo menos o ritual público de homenagem à ditadura continua vigente. No entanto, há o debate sobre chances da China retirar seu apoio ao regime, em caso de instabilidade. Difícil dizer, pois manter a Coréia dividida tem sido um dos objetivos da política externa chinesa, que teme um país reunificado com a força econômica do sul e a tecnologia militar do norte.

Em 2012 se completarão cem anos de nascimento de Kim Il-Sung, o fundador do Estado norte-coreano e da dinastia que o governou desde então.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Depois da Vitória, os Conflitos

Há dois meses a presidente argentina Cristina Kirchner foi reeleita com 54% dos votos, a maior distância com relação ao 2º colocado desde a redemocratização de seu país e maioria no Congresso. Há dez dias ela tomou posse em seu segundo mandato em meio a uma crise política que culminou no rompimento como principal líder sindical do país, Hugo Moyano (foto) e com medidas controversas e impopulares para conter a compra de dólares pela população. As contradições são menores do que parecem à primeira vista: após a vitória nas eleições, afloraram os problemas latentes que estavam para explodir.

Moyano é o secretário-geral da Confederação-Geral do Trabalho, principal central sindical, e um aliado com diversos usos para o governo – por exemplo, bloquear a circulação do jornal Clarín, arquiinimigo (após 2008) dos Kirchners. Oriundo dos sindicatos dos caminhoneiros, por seus métodos e história de vida Moyano é com frequência comparado ao americano Jimmy Hoffa. Apesar da proximidade política, ele e a presidente vinham se desentendendo por temas econômicos. Para tentar controlar a inflação, Cristina Kirchner tinha vetado vários aumentos significativos conquistados por Moyano para sindicatos sob seu controle.

Há também uma questão política mais ampla. A oposição argentina é fragmentada e geralmente ineficaz, a não ser na cidade de Buenos Aires e em algumas províncias sob forte influência de líderes locais. Isso significa que boa parte da luta política migrou para dentro do governo, que um amigo me descreveu como “peronismo de coalizão”. Os Kirchner eram figuras marginais ao centro de poder peronista, mas ao longo da década de 2000 consolidaram sua posição e depois da vitória de outubro aprofundaram o giro que se afasta dos líderes tradicionais (sindicatos, governadores) e fortalece novos atores, como o movimento juvenil La Campora, liderado pelo filho de Néstor e Cristina. Moyano, evidentemente, não gostou: rompeu com governo e partido, e discursa elogiando Perón em detrimento dos Kirchner.

Os problemas também são graves na economia, como se pode ver pelo gráfico acima. As contas públicas da Argentina estão piorando constantemente e há preocupação no governo com as baixas reservas internacionais e com a fuga de dólares. A decisão oficial foi impor um limite ao que as pessoas podem comprar em moeda estrangeira. A medida é impopular, de regras confusas e afetou muitos cidadãos de classe média que buscam dólares apenas para se proteger das turbulências na economia e que se assustaram com a semelhança do gesto atual com o corralito ocorrido às vésperas do colapso de 2001. O amigo Rodrigo Mallea escreveu ótimo texto comparando como brasileiros e argentinos se relacionam de forma muito diferente com o dólar.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Os Crimes de Ódio na Europa

Na terça-feira, dois homens atiraram em multidões nas cidades de Florença (Itália) e Liège (Bélgica). Mataram vários, feriram centenas e se suicidaram ao serem cercados pela polícia. Há pontos em comum com o terrorista que cometeu o massacre de julho na Noruega. Os três casos envolveram temas mal-resolvidos com xenofobia: o italiano atirou em imigrantes do Senegal numa feira, o noruguês agiu movido pelo ódio ao que julgava ser uma permissiva atitude do governo com respeito ao multiculturalismo, e o belga era ele mesmo um filho de imigrantes, que não conseguiu adaptar-se à nova sociedade, e vivia com problemas com drogas. Os três agiram sozinhos, mas sua loucura individual floresce em meio à força crescente da extrema-direita na Europa, que encontra um terreno fértil para ampliação com a crise econômica regional.

Os países europeus têm um percentual relativamente pequeno de imigrantes, em geral entre 5% e 10% da população. A título de comparação, cerca de 50% dos habitantes da cidade de Nova York nasceram fora dos Estados Unidos. No entanto, não se deve subestimar o impacto que o medo e raiva dessa minoria podem alcançar. Na Alemanha nazista, os judeus mal chegavam a 1% dos moradores do país, o que não impediu o antissemitismo de se tornar um pilar ideológico do regime. Os imigrantes da Europa vêm de várias partes: norte da África (França), do subcontinente indiano (Reino Unido), Turquia (Alemanha), da antiga União Soviética.

Florença, Liège e Oslo não são cidades marcadas pela violência étnica e por tensões sócio-políticas, como, digamos, os subúrbios de Paris ou leste de Londres, para citar o epicentro de distúrbios recentes. Mas os sentimentos de fanatismo estão por toda a Europa. Na porção oriental do continente, a extrema-direita já é um dos blocos parlamentares na Hungria. Na parte ocidental, recentemente voltou ao parlamento na Suécia e na Grécia e é forte candidata à presidência da França. Na Alemanha, ocorreram uma série de crimes ligados a grupos neonazistas.

Numa perspectiva otimista, a Europa passará a década de 2010 em crise, com baixo crescimento, alto desemprego (o britânico bateu recorde nesta semana) e fazendo os dolorosos ajustes para adaptar sua economia e sua rede de proteção social à uma economia global mais competitiva diante das potências emergentes. Esta é, repito, a visão otimista. Na pessimista, o próprio processo de integração sofrerá retrocesso, com nações da periferia européia abandonando o euro, com as tensões entre Reino Unido e Alemanha sobre o nível de controle supranacional adequado e desejado.

Mesmo na perspectiva otimista, haverá muitas oportunidades para o crescimento da extrema-direita e para o aumento de crimes de ódio. Imigrantes, ciganos, muçulmanos, cidadãos europeus de ascendência africana e pele negra. Até os pogroms contra judeus voltaram a ocorrer na Hungria. O sucesso da integração européia não eliminou os sentimentos racistas, o ódio ideológico e as simpatias por visões autoritárias, anti-políticas, que ofereçam supostos bálsamos diante das diversas falhas das democracias parlamentares.

O debate europeu sobre políticas para sair da crise tem se dado em meio a um espantoso clima de pobreza intelectual, limitado às reformas de austeridade. É um ambiente da década de 1920, pré-Keynesiano, e com frequência tenho a sensação de que o medo tem sido manipulado para forçar populações cautelosas a aceitar como inevitáveis medidas impopulares. Elas não bastarão, É preciso pensar em alternativas sociais para conter a maré de ódio, antes que ela escape ao controle.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Emergência no Peru

Menos de cinco meses após o início de seu governo, o presidente do Peru, Ollanta Humala enfrenta uma crise com protestos contra grandes mineradoras na região de Cajamarca, no norte do país. Ele decretou estado de emergência, restringindo liberdades civis e políticas, e mudou 10 dos 17 ministros, inclusive o premiê - trocou o empresário Salomon Lerner pelo ex-militar Óscar Valdez, agora também um homem de negócios. A reforma sinaliza o endurecimento do presidente contra os movimentos sociais, que enfrentaram seu antecessor Alan García.

Há cerca de 200 conflitos em curso no Peru envolvendo organizações populares, grupos indígenas, organizações não-governamentais e grandes empresas, sobretudo nos setores de mineração, petróleo e infraestrutura. As disputas em Cajamarca ocorrem em torno de um projeto minerador de US$5 bilhões e são as mais importantes neste momento.

Humala sempre foi visto com hostilidade e desconfiança pelas grandes empresas e pelo mercado financeiro - o dia de sua vitória foi a queda mais acentuada na bolsa de valores de Lima em toda sua história. Os empresários o vêem como um nacionalista de esquerda com projetos de maior controle do Estado sobre os recursos naturais, e como um crítico das reformas liberais implementadas no Peru ao longo das décadas de 1990-2000.

Humala começou sua carreira política como emulador de Hugo Chávez, mas na campanha presidencial de 2011 apresentou-se como alguém inspirado por Lula, prometendo moderação na economia e nomeando uma equipe conservadora para cuidar dos ministérios e órgãos governamentais ligados às finanças, e que foi mantida na reforma. Mas aumentou os impostos cobrados das empresas mineradoras e afirma ser necessário uma nova Constituição, que dê mais poderes econômicos ao Estado - ao tomar posse, ele sequer jurou sobre a atual Carta Magna, usando em seu lugar um exemplar da Constituição de 1979!

O sistema partidário do Peru é um dos mais fragmentados da América Latina. O Congresso é fracionado em muitas siglas, a maior parte delas frágil e com pouca coesão ideológica. Conflitos com movimentos sociais são custosos e resultarão em dificuldades para Humala em manter sua coalizão - o ex-presidente Alejandro Toledo retirou seus dois aliados que serviam como ministros da Defesa e do Trabalho em desacordo com o que chamou de "militarização do governo", mas afirmou que partido Peru Possível continuará a apoiar Humala no parlamento.

As mudanças no ministério deixaram a esquerda peruana desconcertada. Nem Chávez, nem Lula: Humala segue uma trajetória própria, que aponta para um quadro de extrema instabilidade no país, pela dificuldade de equilibrar nacionalismo, grandes empresas e movimentos sociais, em meio a um frágil presidencialismo de coalizão.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A Plataforma Durban

Em meio às preocupações da crise econômica global, o acordo na Conferência das Partes da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima (COP 17) foi importante: os países concordaram em negociar até 2015 um tratado ambiental em que todos (incluindo nações em desenvolvimento, como China e Brasil) se comprometerão com metas obrigatórias de redução de emissões de carbono, para serem implementadas a partir de 2020. O Protocolo de Quioto, que expiraria em 2012, foi estendido até 2017, mas sem Japão, Rússia e Canadá.

O acordo foi chamado de Plataforma Durban e deixa muito - quase em tudo - em aberto, principalmente no que toca ao tamanho das metas, e também à natureza exata do caráter jurídico do futuro tratado - a mediação do embaixador brasileiro Luiz Alberto Figueiredo foi fundamental. Foi criado um fundo verde de US$100 bilhões anuais para ajudar nos esforços de adaptação, mas ninguém sabe de onde sairá o dinheiro. Evidentemente, até 2015 várias coisas podem mudar, até mesmo a disposição dos países em manter a negociação. Isso ocorreu anteriormente com o Protocolo de Quioto, com idas, vindas e hesitações de Estados como EUA e Austrália.

A Plataforma Durban é uma ruptura com a posição tradicional dos grandes países emergentes (Brasil, África do Sul, Índia e China, o grupo BASIC) que insistiam em metas voluntárias e recusavam qualquer compromisso obrigatório. Os Estados Unidos também haviam assumido essa postura, após suas oscilações quanto ao protocolo de Quioto. A União Européia agiu de modo bastante coeso e pressionou por acordos mais abrangentes. Os países em desenvolvimento estão divididos quanto ao clima, pois há alguns deles - particularmente os Estados-ilhas - muito ameaçados pela mudança ambiental e ansiosos por tratados amplos que os protejam.

Os compromissos assumidos em Durban equilibraram de maneira bastante razoável os interesses diversos. Poderia ter sido muito pior. O problema mais sério é que mesmo as perspectivas mais otimistas das negociações nos próximos anos apontam para metas muito inferiores às que deveriam existir para combater a mudança do clima. Mas a diplomacia foi importante para manter aberta a porta do diálogo, o importante será a mobilização da sociedade - ativistas, cientistas etc - para pressionar opinião pública e governos.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Entre Hamlet e Dom Quixote: a luta pela democracia na Rússia

Neste mês se completam 20 anos do fim da União Soviética e é bastante simbólico que o aniversário seja marcado pelos maiores protestos pró-democracia na Rússia desde as mobilizações que levaram à queda do regime marxista. Sinal dos tempos, agora o Partido Comunista é uma das vozes que se manifestam contra a autocracia baseada em controle da imprensa, fraude eleitoral e perseguição de opositores (incluindo assassinatos) controlada pelo primeiro-ministro Vladmir Putin.

Olhando em retrospecto, o período de 1990-3 foi o de um extraordinário interlúdio de pressões populares por abertura democrática, que culminaram com a resistência pacífica e bem-sucedida à tentativa de golpe de Estado da linha dura soviética (1991). Significativo que apenas dois anos depois, o líder dos protestos, Boris Ieltsin, tenha se convertido no algoz que mandou bombardear o parlamento da Rússia.

É bastante conhecido como Putin ascendeu de um cargo de médio escalão na KGB para se tornar o homem forte da Rússia pós-comunista, articulando uma rede oriunda do aparato de segurança que domou os oligarcas que dominavam a economia, excluindo-os da política, lançou a devastadora segunda guerra da Chechênia e consolidou seu poder em meio à alta dos preços do petróleo e do gás e da cultura do medo – do terrorismo, do fundamentalismo islâmico, do declínio russo, etc. Sua principal base ideológica é o amálgama do nacionalismo com o reviver do cristianismo ortodoxo.

O quadro partidário russo é dominado pela “Rússia Unida”, a sigla guarda-chuva criada por Putin em 2001 para abrigar seus seguidores. Ela tinha dois terços do parlamento, mas agora, mesmo com a fraude, caiu para pouco mais de 50%. A oposição mais efetiva vem dos comunistas, com cerca de 15%. O Kremlin tem um partido da oposição consentida (“A Rússia Justa”) e há um grupo de extrema-direita com o nome adorável de Partido Liberal Democrata. A cláusula de barreira russa é inusitadamente alta – os partidos precisam de 7% dos votos para ter cadeiras no parlamento, e muitos têm os registros negados, pura e simplesmente, como a sigla de oposição liderada pelo ás do xadrez Garry Kasparov (“A Outra Rússia”).

Embora a Rússia seja considerada uma potência emergente, e forme uma das letras dos BRICS, seu status é antes o de um Estado rentista que usa os recursos do petróleo para tentar restaurar sua antiga área de influência, particularmente no Cáucaso, por guerras quentes e frias, como o uso político de seus suprimentos de gás natural. O país sofre uma severa crise demográfica (sua população encolhe) e a qualidade de seu ensino e da sua capacidade de inovação tecnológica são baixas.

A identidade nacional russa é um eterno conflito entre visões liberais, pró-Ocidente, e as que advogam um caminho próprio para o país. As primeiras costumam lamentar os acontecimentos históricos que afastaram a Rússia das principais transformações sociais da Europa: a longa ocupação mongol, o isolamento do Renascimento e da Reforma, o impacto muito limitado do Iluminismo, o fracasso da rebelião dos Dezembristas e da Revolução de 1905, a persistência da servidão e da autocracia, as décadas do autoritarismo soviético.

O escritor Ivan Turguenev certa vez comparou os intelectuais russos como cindidos entre Hamlet (angústia crônica, indecisão) e Dom Quixote (utópicos, sem influência prática). Talvez isso possa ser aplicado também aos grupos pró-democracia. É uma luta dura, mas a Rússia de hoje tem desdobramentos positivos: o crescimento do ativismo político e da decepção com a autocracia, a importância de vozes independentes como as do blogueiro Alexei Navalny, o efeito contagiante da Primavera Árabe.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Antônio Vieira, Jesuíta do Rei

Dois lançamentos de fim de ano destacam a figura do padre jesuíta Antônio Vieira, o mais importante intelectual do Brasil colonial: seu perfil, escrito pelo historiador Ronaldo Vainfas, e uma antologia de seus sermões, editada pela Companhia das Letras-Penguin. Oportunidades fascinantes para conhecer o escritor, missionário, profeta e diplomata que já foi chamado de “imperador da língua portuguesa” (por Fernando Pessoa) e de “pérfido e intrigante” (pelo rei Pedro II de Portugal).

Vieira nasceu em Portugal, mas passou a maior parte da infância e toda a juventude na Bahia, onde seu pai era funcionário subalterno na administração. Vieira fez toda sua notável formação intelectual no Colégio dos Jesuítas de Salvador, cuja qualidade na época (início do século XVII) não deixava a dever à Universidade de Coimbra. Seu sermões e outros escritos são obras-primas da literatura barroca e podemos apenas imaginar o impacto do texto quando acompanhado de sua retórica e desempenho no púlpito, que até seus muitos adversários reconheciam como extraordinário.

Os acontecimentos decisivos da vida de Vieira foram a invasão holandesa do nordeste brasileiro e a restauração da monarquia portuguesa, após 80 anos de União Ibérica com a coroa da Espanha. O jesuíta se destacou na resistência aos ocupantes da Holanda, tanto por razões patrióticas quanto religiosas. Com pouco mais de trinta anos, foi à Lisboa numa delegação de colonos para saudar o novo rei, João IV. Vieira ficou na Corte e acabou por se tornar o principal conselheiro do inseguro monarca, convencendo-o de que ele era o escolhido por Deus para restaurar a glória de Portugal, e que seria a reencarnação do rei dom Sebastião, desparecido no Marrocos, no século XVI, em cruzada contra os mouros.

Essas idéias eram heréticas – desenvolviam temas do catolicismo popular português, mas se chocavam contra a ortodoxia de Roma. Os problemas religiosos de Vieira se agravaram porque ele procurou tecer uma aliança entre o rei , os cristãos-novos e os judeus que haviam emigrado de Portugal para Holanda e França. A idéia era dar apoio financeiro à reconstrução do Estado e às longas e custosas guerras contra seus inimigos. A Inquisição não gostou nada e o processou, mas ele conseguiu se safar às custas de seus aliados na Cortes e de ocasionais retratações públicas.

As negociações e intrigas de Vieira eram rocambolescas, dignas de romances de espionagem. Em linhas gerais, ele tentou uma negociação de paz com a Holanda que deixasse Portugal livre para combater somente a Espanha, mas se opunha à rebelião armada dos colonos brasileiros, que numa série de operações de guerrilha derrotaram a Companhia das Índias no Nordeste e, não satisfeitos, cruzaram o Atlântico e reconquistaram Angola!

Depois da morte de João IV houve um período confuso, que culminou com o golpe e a ascensão de seu filho mais novo, que depôs o irmão, casou com a cunhada e reinou como Pedro II. Ele não tinha muita simpatia por Vieira, que ademais tinha vários inimigos em Lisboa, e o despachou novamente para o Brasil, onde trabalhou como missionários por longos anos no Maranhão e no Pará. O jesuíta se envolveu em muitos conflitos com os colonos: embora endossasse a escravidão dos negros africanos, era contrário a dos índios (a posição contraditória era a da Igreja na época) e com frequência os senhores de Engenho e outros poderosos da Colônia o expulsavam à força de seus territórios.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

América Latina no Pensamento Estratégico do Brasil

Nesta semana foi lançada a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) – ou seja, todos os países das Américas menos os Estados Unidos e o Canadá. A organização é um esforço em aprofundar as responsabilidades do Grupo do Rio e se soma a uma série de outras instituições regionais (Mercosul, Comunidade Andina, Unasul, Caricom, OEA...), que têm divisões de tarefas pouco claras, com muitas sobreposições e retrabalhos. Mas é sinal de uma época para a diplomacia brasileira, em que as preocupações tradicionais com Amazônia, Cone Sul e Atlântico Sul ganham aos poucos novos contornos com interesses mais amplos do Brasil: investimentos na América Central, missão de paz no Haiti, a transição política em Cuba. Falei um pouco do tema em entrevista à Telesur e aprofundarei minha abordagem em palestra na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, no próximo dia 8, na conferência da IASIA.

O conceito de “América Latina” foi criado por intelectuais da região e da Europa, que gravitavam em torno do imperador francês Napoleão III, para justificar as intervenções da França no continente (como instalar no trono do México um príncipe austríaco), em nome do pertencimento comum a uma grande família cultural. O termo foi bem aceito nos países hispano-americanos, mas sua recepção no Brasil sempre foi problemática, em função da singular identidade brasileira, dada pela língua portuguesa, pelos fortes laços com a África e pela formação do Estado no século XIX sob a égide da monarquia e de uma transição relativamente pacífica. Não por acaso, depois de 50 anos de guerras platinas, os republicanos se opunham ao império com um argumento de identidade: "somos da América e queremos ser americanos".

Os líderes brasileiros não pensavam uma grande estratégia para a América Latina, suas preocupações eram regionais: a bacia do rio da Prata, a Amazônia, o Atlântico Sul. As relações com México e os países centro-americanos e caribenhos eram de pouca importância política e econômica. Isso começou a mudar na segunda metade do século XX, porque a criação da ONU e a formação de blocos regionais forçou o país a pensar em termos de América Latina, como nas importantes iniciativas da CEPAL na promoção do desenvolvimento econômico e dos primeiros esforços de integração regional, na ALALC e ALADI, o Grupo de Contadora na mediação dos conflitos centro-americanos e o Grupo do Rio, que o sucedeu. O papel aglutinador da Revolução Cubana e do Chile de Salvador Allende como pólos de atrativo continental e de refúgio para exilados também foi importante. Na política e na cultura, muitos jovens brasileiros passaram a se afirmar como latino-americanos. Como quando os tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil dedicaram ao Che Guevara morto seu hino em portunhol, Soy loco por ti, América.

Crises econômicas e políticas criaram limitações a esse projeto. O acordo de livre comércio entre os Estados Unidos, México e Canadá (Nafta, 1994) fez com que o Brasil abandonasse os projetos latino-americanos. As iniciativas diplomáticas regionais brasileiras dos anos 1990-2000 foram restritas à América do Sul: Mercosul, IIRSA, Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, Unasul, cúpulas sul-americanas e da região com a África e a Liga Árabe etc.

Nos últimos anos, a economia brasileira em expansão fortaleceu os vínculos com a região, mas foi além dela. Empresas brasileiras de construção civil trabalham no Plano Puebla-Panamá e na reforma do Canal, o agronegócio investe na América Central, o golpe em Honduras acendeu velhos temores, o Haiti tornou-se palco da principal missão de paz liderada pelo Brasil e as transformações em Cuba tornam a ilha novamente relevante na arena continental. Não é um retorno clássico ao projeto latino-americano das décadas de 1940-1980, mas aponta para certa revalorização da perspectiva mais ampla, acentuadas pelo papel dinamizador da Venezuela, cuja diplomacia tradicionalmente dá muita atenção ao Caribe a à América Central.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Ciberameaças e Relações Internacionais

O jornalista britânico Misha Glenny, autor dos livros “Mercado Sombrio – o cibercrime e você” (cuja edição brasileira chega às livrarias em dezembro) e “McMafia – crime sem fronteiras”, deu palestra na Fundação Getúlio Vargas falando sobre cibercrimes, ciberguerra e relações internacionais. Glenny foi correspondente da BBC nos conflitos nos Bálcãs e colunista do jornal The Guardian e destacou os enormes prejuízos causados pelos criminosos que agem na Internet e friou a necessidade – e os obstáculos – dos governos trabalharem em cooperação para deter esse tipo de bandido.

“Ninguém sabe exatamente os dandos que eles provocam. As estimativas variam de US$1 trilhão a US$300 bilhões por ano, dependendo da fonte. Sabemos, no entanto, que só no Ocidente os governos gastam anualmente US$110 bilhões anuais com ciber-segurança”, afirmou Glenny. Ele classificou as ciber-ameaças em três grandes grupos: crime, espionagem industrial e atos de guerra.

(...)

Segundo o jornalista, essas atividades só foram possíveis porque contaram com a cumplicidade de governos que fizeram acordos com os criminosos – imunidade em troca de que eles não atacassem empresas do país e auxiliassem as autoridades em casos de segurança nacional. Glenny afirma que essa aliança entre o serviço de inteligência da Rússia e os hackers locais é que executou os recentes ciberataques à Estônia, numa onda de invasões que tirou do ar vários sites do governo desse país báltico.

A preocupação com a ciberguerra tem levado à criação de departamentos especializados nesse assunto, como o Cibercomando das Forças Armadas dos Estados Unidos – que se junta às unidades existentes para Terra, Mar, Ar e Espaço sideral. O potencial dessa nova forma de combater é imenso, como mostra o uso do vírus stuxnet, que contaminou os computadores do programa nuclear do Irã e podem tê-lo atrasado em anos: “Há várias versões para explicar sua origem, alguns dizem que foi criado pelos Estados Unidos, outros por Israel. Mas o certo é que ele funcionou.”

O resto, no site do Centro de Relações Internacionais da FGV.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

A Última Utopia

Em 2012 irei lecionar na nova pós-graduação em Direitos Humanos que está sendo criada pela Universidade de Vila Velha, no Espírito Santo. Por conta disso, tenho reunido material para preparar os cursos que irei ministrar. Há novas reflexões acadêmicas bastante interessantes, que questionam as interpretações ortodoxas a respeito do tema.

A narrativa clássica identifica as origens dos direitos humanos na Antiguidade, nas idéias greco-romanas sobre “lei natural” e nas doutrinas medievais da Igreja Católica. Essa tradição teria sido ampliada com as grandes revoluções dos séculos XVII-XVIII (Britânica, Americana, Francesa) e se consolidado na criação do sistema ONU, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os diversos tratados associados à organização. Tal linha de raciocínio é ilustrada exemplarmente pelo vídeo abaixo:

É uma belíssima edição de imagens, mas seus pressupostos não se sustentam na análise acadêmica contemporânea, em particular o provocador livro do historiador Samuel Moyn (Universidade Columbia), “The Last Utopia – human rights in history”. Para ele, os direitos humanos só se afirmam na década de 1970, como uma reação anti-totalitária ao colapso dos ideais revolucionários do marxismo e da descolonização, e como rejeição das doutrinas de segurança nacional que impuseram ditaduras em nome da contenção ao comunismo.

Para o historiador, os direitos humanos são “a última utopia”, marcada pela desconfiança com relação ao Estado e pela atuação de organizações não-governamentais. Moyn a distingue com respeito às doutrinas anteriores porque elas não eram universais, mas aplicadas somente aos membros de uma determinada comunidade política. Eram garantias a serem estabelecidas pelo Estado, e não direitos a serem exercidos, por vezes, contra ele.

É comum que os defensores dos direitos humanos afirmem que eles são indivisíveis e que não se contradizem, mas a realidade é bem mais contraditória e conflitante. Moyn é muito perspicaz em analisar os conflitos entre as tradições liberais de direitos humanos, centradas nos indivíduos, e aquelas nacionalistas ou coletivistas, voltadas para a comunidade (nação, grupo religioso etc), como as das lutas anti-coloniais – tema, aliás, de excelente palestra realizada há algumas semanas na FGV-Rio.

Penso apenas que ele exagera na oposição entre as duas tradições. O Estado é muitas vezes parte do problema quando se trata de Direitos Humanos, mas sempre será parte inescapável da solução.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

África na Agenda Econômica do Brasil



Na semana passada fui a seminário do CEBRI sobre África no comércio exterior e nos investimentos estrangeiros do Brasil. O intercâmbio comercial entre os dois quadruplicou em dez anos, atingindo US$20 bilhões anuais. É uma quantia expressiva, mas que não chega a 10% do total brasileiro e que está muito concentrada em alguns países e produtos.Cerca de dois terços do comércio do Brasil com a África é com sete países: Nigéria, Angola, Argélia, Egito, África do Sul, Marrocos e Líbia. Cerca de 85% das importações brasileiras do continente são petróleo e derivados. As exportações para lá são mais diversificadas e 56% delas são de produtos manufaturados.

As regiões mais ricas da África são o Norte árabe e o Cone Sul, de modo que a concentração do comércio com Brasil com essas áreas não é surpresa. Contudo, chama a atenção certo descompasso entre as ambições brasileiras para o continente (sempre muito grandes) e relativa fragilidade nas bases das trocas econômicas. Por exemplo, à exceção da Nigéria e de Angola o Brasil não tem comércio expressivo com países africanos que foram fundamentais para sua formação étnica, como as nações do Golfo da Guiné a maioria das ex-colônias portuguesas.

A situação é um tanto diversa em Moçambique, por conta dos grandes investimentos que a Vale e a Petrobras têm feito no país. Mas o foco das empresas brasileiras na África continua a ser os países produtores de petróleo, muitos dos quais têm laços culturais frágeis com o Brasil, como Argélia ou Líbia. A turbulência política da Primavera Árabe lança uma série de outros problemas para a diplomacia brasileira na região.

Naturalmente, vale lembrar a lição de um dos mestres africanistas brasileiros, o embaixador Alberto da Costa e Silva: a política externa é po-lí-ti-ca, e não deve ser limitada meramente por considerações de comércio e investimentos. De fato, há dimensão na África que escapa a tais restrições, como o peso dos mais de 50 países do continente nos fóruns internacionais ou a parceria estratégica com a África do Sul em vários diálogos globais (BRICS, IBAS, BASIC). O Brasil já tem 33 embaixadas junto aos países africanos, mas a metade delas foi inaugurada somente na última década e contam com pouco pessoal e recursos.

Não obstante, é importante pensar também em maneiras de superar as limitações, como a escassez de rotas aéreas e navais ligando o Brasil à região, a fragilidade da infraestrutura local, instabilidade política e dificuldades de financiamento para o comércio exterior brasileiro com a África. No campo do crédito oficial ao exportador, só há mecanismos viáveis do BNDES com Angola (com o petróleo servindo de garantia aos empréstimos) e projeto de fazer algo parecido com Moçambique, usando minérios.Muitos dos problemas vêm do pouco que o país importa do continente, o que torna complicado estabelecer redes de transporte eficientes economicamente – os navios teriam que voltar vazios, por exemplo.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Egito: a praça, os quartéis, as mesquitas



Os protestos contra a junta militar que governa o Egito desde a queda da ditadura em fevereiro foram motivados pelas medidas autoritárias tomadas pelas Forças Armadas, como a prisão de cerca de 12 mil ativistas, tortura de vários deles, e o constantemente adiamento de eleições – as presidenciais podem ocorrer só em 2013. As manifestações desta semana resultaram em mais de mil feridos e 30 mortos, com um inédito pedido de desculpas da junta à população. Ministros civis do governo renunciaram e o secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa (ex-chanceler de Mubarak) foi convidado para o posto de premiê. Este round foi vencido pelos movimentos pró-democracia, mas o desfecho segue incerto.

A Tunísia já realizou suas eleições legislativas e o novo parlamento, comandado por um partido islâmico moderado, elaborará a constituição democrática. A situação do Egito é mais complexa, porque as Forças Armadas que governam o país desde 1952 são maiores, mais poderosas e construíram um império econômico do qual não querem abrir mão. A força partidária mais relevante, a coligação comandada pela Irmandade Muçulmana, ocasionalmente protesta contra os militares, mas compartilha com eles o adversário comum: os novos movimentos sociais como o 6 de abril, nos quais os jovens têm papel de destaque.

As eleições parlamentares do Egito estão marcadas para começar no dia 28, e foram confirmadas apesar de rumores e solicitações para que fossem adiadas por uma ou duas semanas, em função dos problemas logísticos – o próprio ministro do Interior afirma que não pode garantir a segurança pública durante as votações. A nova lei eleitoral da junta é considerada consensualmente ruim e confusa, divide os distritos do país entre proporcionais com lista fechada (dois terços) e um modelo misto no qual podem concorrer candidatos independentes. As indefinições dificultam aos mais de 40 partidos elaborar estratégias coerentes para disputar votos e prejudicam em especial as novas siglas e movimentos, ainda em processo de consolidação. Favorecem, claro, o grupo mais antigo e bem-organizado: a Irmandade Muçulmana, fundada em 1928 e com ampla rede de mobilização e serviços sociais.

Ninguém duvida que a coligação islâmica seja a vitoriosa nas eleições, a discussão é quantos votos terá – especula-se que entre 40%-60% do total. O parlamento terá a tarefa crucial de elaborar a nova constituição democrática, mas a junta militar pressiona para que vários temas fiquem como “supra-constitucionais”, isto é, fora da alçada de deliberação democrática. A mais controversa é a proposta de que o orçamento de Defesa seja secreto.



A mobilização social no Egito tem sido impressionante e reuniu uma grande frente formada tanto por ativistas de classe média como por movimentos populares, como os sindicatos – cuja longa luta contra Mubarak foi importantíssima para a queda da ditadura. Isso criou contrapesos contra as medidas da junta militar, embora não tenha conseguido evitar a repressão política. Não ajuda que o comandante do grupo, marechal Hussein Tantawi (ironizado na foto que abre o post), tenha sido por 20 anos o ministro da Defesa do antigo regime.

Nenhuma transição democrática é fácil, e a do Egito certamente será mais difícil do que a da Tunísia. Em nome da estabilidade política, terão que ser feitos acordos com os militares, provavelmente com a garantia de que continuarão a desfrutar de parcela considerável do seu atual poderio econômico. E as Forças Armadas continuarão a representar para o Ocidente as fiadoras do processo de mudança, a garantia de última instância de que os fundamentalistas não tomarão o poder, de modo semelhante ao papel que desempenharam na Turquia e na Argélia.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O Brasil de Camille



Nesta terça-feira nasceu minha primeira sobrinha, Camille. Ela é a primeira bebê da nova geração entre minha família próxima e, inevitavelmente, sua chegada me fez pensar em quanto o país mudou com relação ao nascimento de seu pai e de seu tio, entre 1978-1980. O Brasil está longe, muito longe, de ser o lugar que sonhamos, mas melhorou muito com relação a minha infância e adolescência.

Meu irmão e eu nascemos numa ditadura na qual a maioria da população era pobre, e cerca de 25% viviam na miséria. Camille chega numa democracia consolidada, embora incompleta, que aos poucos torna-se um país de classe média. A renda per capita brasileira está em torno de US$11 mil por ano, mais do que média mundial de US$9 mil. A desigualdade continua a ser um sério problema social – talvez o pior do país – mas tem caído de modo lento e constante desde a década de 1990. É um diferencial importante e ainda subvalorizado do desempenho sócio-econômico do regime democrático.



Camille um dia ouvirá nossas histórias sobre os anos difíceis de hiperinflação e provavelmente achará graça quando souber que seu pai e eu íamos para a fila do supermercado com sua falecida bisavó, para ter acesso a maior quantidade de produtos que estavam racionados. Ela certamente ouvirá como só aprendi a gostar de peixe quando a carne bovina despareceu um ano das prateleiras e vai achar difícil de acreditar que faltava água e luz quase todo mês, e que o telefone às vezes precisava de meia hora para dar sinal. Talvez se irrite com os contos de “quando eu tinha sua idade” e quem sabe fique cética quando dissermos que nos divertíamos: “Às vezes sobreviver pode ser melhor do que viver”, como diz um personagem de um dos filmes favoritos do seu pai e do seu tio.

O país e a cidade ainda são violentos e perigosos, e é claro que essas preocupações também cercarão a pequena Camille. Seu pai e eu não conhecemos outra realidade e um dia ela talvez se espante em saber que todos nós, bem como seus avós e bisavós, estivemos sob a mira de uma arma. É possível que se indigne em como deixamos a nação chegar a esse ponto, sem fazer nada, e estará coberta de razão em sua cobrança.

Seu nascimento foi saudado com câmeras digitais e postagens na Internet, em meio a uma prosperidade que a família jamais desfrutou desde que se instalou no Brasil, há 100 anos. Quando nasci, o marco foi minha madrinha chegar à maternidade com uma escritura de doação na qual me legava como herança sua linha telefônica: “O futuro do menino está garantido!”, comemorava minha avó. O de Camille é um livro aberto com mais possibilidades e escolhas do seus parentes julgariam viável há apenas uma geração. Sua chave para chegar lá não será o telefone, mas a educação, que ela precisará para navegar num oceano cada vez mais amplo de informações e dados. Mas como mestre Louis Armstrong cantava ao ver as crianças do seu tempo: “Eles aprenderão muito mais do que eu jamais soube, e penso comigo mesmo, ´Que mundo maravilhoso´”.

Conhecimento é parte importante da história, mas não só isso. Camille crescerá numa sociedade mais tolerante e aberta, mais plural do ponto de vista religioso, étnico, cultural, anos-luz à frente do país pobre e fechado de décadas atrás. Ela terá oportunidade de aprender outras línguas, viajar e estudar no exterior, abrir o mundo pelas janelas da Internet e da TV a cabo – que seu pai e eu só conhecemos quando já estávamos na universidade. Torço para que ela mergulhe na cultura brasileira, mas que não tenha medo ou insegurança em explorar o novo. Que tenha raízes, mas também radares, na bela formulação da historiadora Denise Rollemberg.

Questões Para a Comissão da Verdade



Na sexta-feira a presidente Dilma Rousseff sancionou duas leis importantes relacionadas à transparência e à memória histórica: a Criação da Comissão da Verdade (para investigar violações de direitos humanos no período 1946-1988) e a Lei de Acesso à Informação, que acaba com o sigilo eterno de documentos oficiais e estabelece normas mais abertas para sua classificação e consulta. Falei sobre o significado da nova legislação à revista britânica Economist e à rádio CBN.

Boa parte da cobertura de imprensa se concentra nas razões pelas quais o Brasil é um retardatário internacional nas duas iniciativas, que já foram implementadas em dezenas de países. Contudo, há questões em aberto para a Comissão que devem ser discutidas nos próximos meses - a previsão é que ela comece a funcionar daqui a um semestre. Destaco quatro pontos:

1) Composição. Seus sete integrantes serão escolhidos pela presidente Dilma, provavelmente de modo a refletir a amplitude das forças que defendem os direitos humanos no Brasil, com representantes de igrejas, partidos, meio acadêmico. A negociação da Comissão no Congresso foi um modelo de entendimento suprapartidário e é de esperar que os trabalhos da instituição continuem assim. Seria importante ter participantes das Forças Armadas, talvez um oficial-general da reserva. Afinal, uma das consequências menos discutidas da ditadura foi como o regime autoritário destruiu uma importante tradição da esquerda militar, vinculada aos movimentos sociais desde o início da República.

2) Modo como irá operar, sobretudo se suas audiências serão públicas (como na África do Sul) ou a porta fechadas (Argentina). O melhor modelo para o Brasil contemporâneo é de reuniões abertas. Poderíamos ter, por exemplo, programas de TV ou rádio que acompanhassem os trabalhos da Comissão. A Internet oferece novas e extraordinárias possibilidades de participação que podem ser aproveitadas.

3) Como realizará o trabalho de investigação e apuração de fatos. A maior parte de suas homólogas nos diversos países incluiu viagens a zonas remotas do interior e locais nos quais ocorreram graves violações de direitos humanos. No Peru, foram realizadas muitas entrevistas com camponeses e indígenas das regiões montanhosas mais atingidas pela violência, reunindo um acervo valioso de história oral de segmentos da população marginalizados. No Brasil, o mesmo pode ser feito em zonas como o Araguaia, ou com os posseiros atingidos pela expansão da fronteira agrícola no Centro-Oeste e Amazônia, ou ainda nas lideranças dos movimentos das favelas das grandes cidades, vítimas quase sempre esquecidas da ditadura militar.

4) O papel das empresas privadas no financiamento à repressão política ainda é assunto tabu no Brasil, pouco discutido inclusive na reflexão acadêmica. A Argentina fornece exemplos importantes, tanto no envolvimento de multinacionais estrangeiras quanto das firmas locais com o aparato de prisões ilegais e torturas.

A Comissão brasileira será menor e terá menos funções do que aquelas criadas em outros países e por isso continua a despertar críticas da Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos. Ainda assim, sua implementação é um passo importante e ela é uma iniciativa de política externa, tanto quanto de política doméstica. No mundo da Primavera Árabe e das transformações de direitos humanos na América Latina, uma nação que aspira à liderança internacional precisa afirmar compromisso com a democracia (a não ser, claro, que seja uma potência econômica como a China, ou que clame uma bandeira de legitimidade religiosa como Irã).

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Olhares do Cinema sobre a Primavera Árabe



Em outubro, no Festival do Rio, assisti a dois excelentes filmes sobre a Primavera Árabe: o documentário “Tunísia: o fim do medo” e a coletânea de curta-metragens de ficção “18 Dias no Egito”. A trajetória dos dois países está intensamente interligada. Suas ditaduras foram derubadas com poucas semanas de diferença e o mesmo ocorre agora com suas primeiras eleições legislativas livres. A tunisiana foi em outubro, a egípcia será no dia 28.

O documentário sobre a Tunísia foi dirigido por Mourad Ben Cheikh e é uma co-produção com a emissora Al-Jazeera, importantíssima como fonte de notícias críticas sobre o Norte da África e o Oriente Médio, e para criar ou fortalecer o senso de identidade pan-árabe dos países envolvidos nas revoltas democráticas.

O filme é um conjunto de entrevistas com pessoas que participaram da derrubada da ditadura de Ben Ali: uma moça que escreve um importante blog político, uma advogada que comanda uma ONG de direitos humanos, seu marido, um veterano militante comunista e uma mulher em tratamento psicológico, que monta um grande e belo painel fotográfico sobre a revolta, como modo de expurgar os efeitos nocivos do regime autoritário.

O subtítulo, “o fim do medo”, resume à perfeição o clima da produção e os depoimentos emocionam – o filme foi aplaudidíssimo pela platéia no festival. O mais impressionante foi constatar a relação entre a democratização do país e o reforço dos laços de confiança entre os cidadãos, além de sua recuperação do espaço público. Contudo, o documentário peca pelo pouco espaço dedicado aos islamistas – que já se consagraram como a principal força política da Tunísia, com 40% dos votos.




O filme egípicio é uma colaboração entre dez cineastas, cada um com seu estilo, mas há grande coesão narrativa e política entre eles, talvez pelo trabalho de organização e articulação de Sherif Arafa. Os diversos curta-metragens abordam temas como a perseguição política e a tortura sob a ditadura de Mubarak, o cotidiano dos capangas que atacaram os manifestantes pró-democracia, as reações das pessoas sem engajamento político que subitamente se viram envolvidas pelos gigantescos protestos e até episódios poéticos ou humorísticos, como o menino que quer apenas tirar uma fotografia em cima de um blindado, ou o rapaz que se apaixona platonicamente pela vizinha que participa da ocupação da Praça Tahrir.

O melhor e mais elaborado dos curtas é o que abre o filme: um grupo de pacientes internados num hospital psiquiátrico assiste espantado às notícias da revolução, enquanto percebem as mudanças na administração da instituição. Há de tudo entre eles: um coronel da polícia secreta, um islamita, um jovem rebelde, um professor desiludido, um cínico jornalista da TV oficial. Lembra a peça Marat/Sade, de Peter Weiss.

O filme egípcio não é exatamente mais pessimista do que o tunisiano, porém é um tanto mais cauteloso, no sentido em que deixa claro que há muitos outros interesses no país além dos grupos pró-democracia – partidários da ditadura, oportunistas que esperam ver para onde soprará o vento, cidadãos apáticos, assustados ou confusos. Ele não trata dos militares, presumo que o assunto ainda seja tabu numa nação com Forças Armadas tão influentes. Mas o tema será quente nas iminentes eleições. Por aqui, em breve.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Kissinger sobre a China



Secretário de Estado e Assessor de Segurança Nacional de dois presidentes (Richard Nixon e Gerald Ford, 1969-1977), o cientista político Henry Kissinger foi o principal arquiteto da aproximação entre os Estados Unidos e a China comunista, como uma maneira de pressionar a União Soviética, contra a qual os dois países tinham interesses comuns. Em seu livro mais recente, Sobre a China, Kissinger conta os bastidores dessa diplomacia triangular e procura traçar o panorama da história das relações internacionais chineses do século XIX aos dias atuais. Contudo, o resultado é decepcionante, pois Kissinger está preso a um formato de reflexão intelectual que leva em conta somente as intenções dos principais líderes políticos e dá pouca ou nenhuma atenção às grandes transformações das sociedades, ao desenvolvimento econômico e a temas como democracia e direitos humanos.

(...)


O livro torna-se mais interessante quando aborda a China após a Revolução Comunista de 1949. Kissinger examina os erros cometidos pela liderança dos Estados Unidos naquela época, mostrando como a rigidez ideológica do período os cegou para as possibilidades de explorar as divergências crescentes entre Pequim e Moscou, e atrelou Washington a uma aliança ineficaz com o regime nacionalista em Taiwan. Medos e desconfianças fizeram com que os Estados Unidos creditassem ao governo comunista chinês intenções agressivas com relação à Coréia, numa escalada que culminou com a guerra de 1950-2, que terminou num surpreendente impasse militar – ninguém esperava tal desempenho do exército chinês, desgastado após o longo embate contra japoneses e nacionalistas.

(...)

O que Kissinger tem a oferecer são anedotas – algumas delas saborosas – sobre suas negociações com líderes chineses como Mao, Zhou Enlai e Deng Xiaoping. Ele vê o primeiro como um filósofo camponês desconfiado e astuto, o segundo como um diplomata refinado, um mandarim cortês como os que serviram os imperadores. Claramente foi seu interlocutor favorito: “Mao era ávido por acelerar a história: Zhou se satisfazia em explorar suas correntes”. O terceiro é elogiado como pragmático e direto: “Ele incubia seus subordinados de inovar, depois endossava o que funcionava.” Há bons perfis dos líderes chineses da era de Deng, como o reformador heterodoxo Zhao Zyiang, o presidente Jiang Zemin e o chanceler Qian Quichen (“um dos ministros das Relações Exteriores mais habilidosos que já conheci”).


O texto completo, em minha resenha para o Amálgama.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Irã e Israel: cartas na mesa



As ameaças do governo de Israel ao Irã têm aumentado nas últimas semanas com a retórica de bombardeios aéreos caso a república islãmica continue com seu programa nuclear. Não está claro se haverá nova guerra no Oriente Médio e ao menos por enquanto o discurso israelense se encaixa numa estratégia mais ampla de pressões que envolvem também os Estados Unidos e a União Européia. Na terça-feira a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) divulgou relatório que reforça suas afirmações anteriores: o Irã avança em sua pesquisa tecnológica nuclear, inclusive na possibilidade de desenvolver bombas atômicas, mas não há indicações de que esteja empreendendo a construção dessas armas. A divulgação do relatório pela imprensa foi bem mais alarmista do que o documento em si. Para os interessados numa análise mais moderada, o melhor é ler o livro do ex-diretor da AIEA e Nobel da Paz, Mohamed El-Baradei (há edição brasileira).

Um Irã com bombas nucleares estaria protegido de invasões e intervenções militares ocidentais, como as que sofreram Iraque e Líbia – o erro do qual Kadafi mais deve se arrepender foi ter desmantelado seu programa de armas de destruição em massa após o 11 de setembro. Isso provavelmente o tornaria mais ousado em suas ações no Oriente Médio, inclusive pelo apoio a aliados como Síria, Hezbolá e Hamas. O não-reconhecimento de Israel e a negação de que o Holocausto ocorreu tornam a república islâmica ainda mais perigosa aos olhos do governo israelense que traça analogias entre a situação atual e a Europa às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

Em 1981 a força aérea de Israel realizou um bem-sucedido ataque cirúrgico contra as instalações nucleares de Osirak, que sediavam o programa atômico de Saddam Hussein. Em 2007, algo semelhante foi feito com a Síria. O Irã é um alvo bem mais difícil, pois os iranianos aprenderam com os erros dos outros e criaram um programa descentralizado, espalhado por seu país. A maior distância geográfica também dificulta a ação israelense. Mas o objetivo dos ataques não seria a destruição do programa, e simplemsente atrasá-lo em alguns anos. Isso é que tem sido feito com sucesso por operações de espionagem, como a implementação do vírus Stuxnet nos computadores iranianos e o assassinato de diversos cientistas.



O Irã é signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, que o proíbe de desenvolver armas atômicas. Israel nunca o assinou. A Coréia do Norte o fez, e depois se retirou do acordo. Ameaças de guerra e sanções econômicas não tem funcionado e há espaço para a retomada do diálogo diplomático, inclusive com propostas de relançar o acordo proposto por Brasil e Turquia, em 2010, pelo qual o governo iraniano mandaria seu urânio para ser enriquecido fora do país, a 20%, taxa suficiente para seu uso médico, mas não para a construção de bombas nucleares.

Soluções pacíficas têm sempre muitos inimigos, em particular no Oriente Médio, e as potências ocidentais e Israel rejeitaram rapidamente a proposta do Brasil e da Turquia. As pressões internacionais têm fortalecido a linha dura no Irã e há crise entre os aiatolás e o presidente Mahmoud Ahamadinejad, que corre risco de ser deposto. Por estranho que possa parecer, ele é a voz moderada nos debates. Pode-se imaginar o que viria em seu lugar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O Último Bunga Bunga em Roma



A crise na Europa faz mais duas vítimas, com a renúncia (efetiva) do primeiro-ministro da Grécia e (anunciada) de seu homólogo da Itália. Ninguém acredita que a mudança nos governos resolverá os problemas, que são ecumênicos do ponto de vista ideológico: afetam a esquerda grega e a direita italiana. Algo semelhante ocorreu em Portugal e deve acontecer na Espanha no dia 20. Em todos esses países, a liderança política está sendo substituída por sua incapacidade de formular ou implementar soluções para a turbulência econômica. A Itália é o caso mais impressionante, porque sua descida ao abismo se dá numa situação de relativa tranquilidade financeira.

O paradoxo se explica da seguinte maneira: a Itália tem superávit primário, isto é, arrecada mais do que gasta antes de pagar os juros de sua dívida. Só que ela é imensa – maior do que a soma dos débitos da Espanha, Portugal e Irlanda. Mas como mostra o gráfico abaixo, a crise na União Européia elevou os juros no continente, ao ponto de tornar o governo italiano insolvente.



Para as autoridades regionais, Berlusconi era parte do problema e o primeiro-ministro vinha sendo submetido a cobranças humilhantes, como ter que apresentar relatórios trimestrais comprovando que vem implementando cortes de gastos públicos e restringindo benefícios sociais. Foi hostilizado nas cúpulas européias por seus colegas da Alemanha e da França. A crise econômica fez o que os escandâlos repetidos envolvendo sexo e corrupção não conseguiram: dividiram a base aliada de Berlusconi e o fizeram perder a maioria no Parlamento.

Esta é a terceira vez que Berlusconi ocupou o cargo de primeiro-ministro e ele foi o homem que por mais tempo foi chefe de governo na Itália desde a proclamação da República. Sua ascensão, em 1994, deu-se sobre os escombros de um sistema partidário desacreditado por corrupção e envolvimento com crime organizado. A morte de Berlusconi foi proclamada com alarde nas duas ocasiões anteriores em que deixou o posto, e não está claro que esta seja a última vez. As condições sociais que geraram seu fenômeno político continuam presentes. Deixa um legado de estagnação e dificuldades crônicas.

Berlusconi e Papandreou, o ex-primeiro-ministro grego, são políticos populares com ampla base de apoio. Não caíram por perder eleições, mas pelo desgaste em sua coalizão parlamentar, em função das tensões trazidas pelas pressões da União Européia por ajustes fiscais. Nos moldes do modelo proposto pelo economista Dani Rodrik (Harvard) é o “trilema” entre Estado-nacional autônomo, democracia e integração ampla à economia global. Na Reuters, Felix Salmon esboça um quadro mais matizado: a de que as contradições entre exigências internacionais e demandas sociais locais só consegue ser solucionada por líderes habilidosos e carismáticos, escassos na Europa de hoje. Salmon cita o ex-presidente Lula como modelo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Franco



A Editora Babel lançou coleção de biografias de líderes políticos do século XX e a que mais me atraiu foi a do general e ditador espanhol Francisco Franco. O excelente livro da historiadora francesa Andrée Bachoud, professora da Universidade de Paris VII, é um panorama abrangente da política espanhola de 1900 a 1975 e retrata Franco como um governante hábil em jogar com as várias correntes conservadoras de sua nação (monarquistas, fascistas, católicos, liberais), preocupado em manter a autonomia diante de aliados ideologicamente contraditórios (Alemanha e Itália no nazi-fascismo, Estados Unidos e Europa Ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial) e pragmático o suficiente para modernizar a economia, mas confuso diante das mudanças na Igreja Católica e na força dos regonalismos da Catalunha e do País Basco.

Franco nasceu numa família que se dedicava às Forças Armadas desde o século XVIII, mas sua juventude se deu numa Espanha abalada pela perda de Cuba, Filipinas e Porto Rico na guerra contra os EUA (1898) e governada por uma monarquia frágil e instável. Seus parentes não eram conservadores: o pai e um dos irmãos eram maçons de simpatias republicanas, mas Franco desde moço mostrou uma disposição política bem mais tradicional. No Exército, foi um cadete sem distinção, porém cedo encontrou sua vocação servindo no Marrocos espanhol, a última parcela do império colonial. Os militares que lá lutavam tinham promoções mais rápidas que aqueles que permaneciam na metrópole e Franco ascendeu rapidamente por suas provas de coragem e habilidade nas guerras contra os berberes das montanhas e foi um dos criadores e comandantes da Legião Estrangeira da Espanha. Sua ascensão ao generalato se deu com apenas 33 anos.

A Espanha foi poupada da carnificina da I Guerra Mundial, mas o país sofreu as consequências das turbulências posteriores ao conflito. Primeiro com a ditadura do general Primo de Rivera (1923-30), versão local de Mussolini. Depois com a queda da monarquia (1931) e a turbulenta Segunda República, com a polarização política que levou à guerra civil de 1936-9.

Para os padrões da época, Franco era um oficial pouco envolvido com política, mais preocupado com questões técnicas da carreira militar e com a situação no Marrocos. Ele foi um dos generais que se rebelou contra a República, em nome do anticomunismo e da defesa do catolicismo, mas não era inicialmente um dos comandantes. Mas destacou-se rapidamente por sua eficiência no campo de batalha e pela habilidade política, aglutinando as várias forças da direita e mantendo um discurso vago de restauração da monarquia. Consolidou-se como líder (“Caudilho”, foi o título que adotou) do que chamou de Movimento Nacional, e que se tornaria o partido único após a vitória contra a coligação republicana de socialistas, comunistas e anarquistas. Bachoud dá pouco espaço às descrições dos combates e às atrocidades da guerra civil, para quem se interessar numa análise mais profunda, recomendo “A Batalha pela Espanha”, de Anthony Beevor e “Lutando na Espanha”, de George Orwell.



A primeira metade da biografia cobre a ascenção de Franco ao poder, a segunda, seu longo exercício de 1939 até sua morte em 1975. Bachoud mostra a cautela e desconfiança do ditador diante de seus aliados da guerra civil, Alemanha e Itália, e sua rejeição do nazi-fascismo – o franquismo não era antissemita. Franco soube manter a neutralidade da Espanha devastada pela guerra e pela pobreza, conseguindo manter boas relações com os Aliados que precisavam de sua benevolência para operar no Mediterrâneo. Após o conflito, ele enfrentou problemas, visto pelas democracias ocidentais como um autoritarismo anacrônico e perigoso – sofreu sanções da ONU, ficou de fora do Plano Marshall e da OTAN.

Na década de 1960 o regime deu uma guinada econômica, iniciando um projeto de modernização e abertura liberal sob a égide de tecnocratas da organização católica Opus Dei. Eles foram bem-sucedidos em atrair investidores e turistas e aumentar o PIB, mas às custas de forte arrocho salarial e repressão aos trabalhadores (sindicatos independentes eram ilegais). A Espanha continuou a ser mais pobre do que outros países europeus, inclusive os que haviam passado por guerras e ditaduras, como a Itália. O liberalismo comercial também desgostou a muitos dos pilares do franquismo, em especial a Falange, o grupo fascista que advogava um nacionalismo coorporativista na gestão da economia. Suas contendas internas foram ferozes, em particular nos últimos anos do regime.

Outro problema para Franco foi como lidar com a Igreja Católica após o Concílio Vaticano II. Ele sentiu-se traído e confuso pelas novas orientações progressistas dos católicos e teve muitos problemas com os bispos da Catalunha e do País Basco, que quase sempre se posicionavam ao lado dos movimentos regionais (inclusive do ETA, que surgiu durante a ditadura) contra o centralismo de Madri. Os papas João XXIII e Paulo VI se recusavam a apoiar Franco do modo intenso de prelados conservadores como Pio XII.



Por fim, Bachoud também analisa as relações do ditador com a monarquia, que ele queria restaurar, mas só após sua morte. Franco manipulava uns contra os outros os pretendentes ao trono (chegaram a haver quatro ao mesmo tempo) e se decidiu em 1969 pelo princípe Juan Carlos, nascido durante a guerra civil e neto do último rei, Alfonso XIII. Ele era visto como mais dócil do que seu pai, Juan de Bourbon, considerado um democrata. Ilusões do Caudilho, pois o rei Juan Carlos mostrou ser um ardoroso defensor da democracia espanhola, com sua atuação decidida durante a tentativa de golpe de 1982.A biografia de Bachoud termina com a morte de Franco, sem examinar seu impacto para a transição e para a nova Espanha. É pena, pois muitos assuntos estão pendendentes, inclusive a dificuldade de lidar com o passado autoritário e investigar as atrocidades do período. Nessa linha, recomendo “The Triumph of Democracy in Spain”, de Paul Preston.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Paz (?) na Síria



No pós-Guerra Fria, as organizações regionais cresceram em importância na resolução de conflitos e na organização de missões de paz da ONU. Uma das características mais preocupantes da Primavera Árabe até este momento tem sido a incapacidade da Liga Árabe em desempenhar qualquer papel de relevo na contenção da violência ou na busca de saídas negociadas para os ditadores ameçados por rebeliões populares. Isso reflete a pouca legitimidade maior parte de seus líderes e a ausência de figuras respeitadas que pudessem exercer tal moderação. É com esse ceticismo que se encara o acordo de paz que a Liga fechou com o governo da Síria.

O acordo contempla libertação de presos políticos, diálogo com oposição e permissão para que entrem no país jornalistas e observadores de direitos humanos. São belas palavras no papel, mas não há qualquer garantia de que ele seja colocado em prática. Pouco após sua assinatura, o governo bombardeou Homs, uma das cidades onde os protestos são mais fortes. A maioria das análises resssaltou que o pacto é uma vitória política para Assad, que ganha tempo e consegue certa credibilidade internacional, como alguém disposto a negociar.

Estima-se que desde o início da revolta contra o presidente Bashar al-Assad, as autoridades tenham matado cerca de três mil pessoas. O que começou como uma rebelião pacífica torna-se cada vez mais violenta, na medida em que muitos grupos se armaram contra o regime autoritário. Há relatos de deserções significativas no Exército e o risco grande de uma guerra civil de cunho político-religioso, com facções da maioria sunita enfrentando os alauítas que dominam o Estado. Contudo, está descartada uma intervenção militar estrangeira, como a da OTAN na Líbia. A Síria ocupa posição delicada demais, na turbulenta fronteira entre Israel e Turquia e a moral da região é algo como “ruim com Assad, bem pior sem ele, e com a incerteza que se seguiria à sua deposição.”

Há medos razovelmente bem fundamentados de que em lugar do nacionalismo laico do partido B´aath se estabelecesse um regime religioso sunita, que traria fortes tensões para as diversas minorias sírias (xiitas, alauítas, cristãos, druzos) que foram cerca de um terço da população. A classe média e as elites econômicas nas principais cidades, Damasco e Aleppo, em grande medida apoiam o presidente Assad e vêem com desconfiança o ativismo político dos mais pobres, base da rebelião.

A violência na Síria já repercute nos países próximos. Milhares de refugiados fugiram para a Turquia e especula-se que o Irã tenha reagido ao medo de perder o aliado sírio estimulando ataques de separatistas curdos contra os turcos.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Angela Merkel



Há poucos livros traduzidos para o português sobre a política da Alemanha após a reunificação. “Angela Merkel – ascensão ao poder”, do cientista político e ex-deputado Gerd Lagguth é novidade importante. Ele é professor na Universidade de Bonn e pertence ao mesmo partido de Merkel, a CDU (democracia cristã). Seu livro é um perfil equilbrado de uma política que marca inovações foi a 1ª mulher e a 1ª alemã oriental a assumir o cargo da primeira-ministra, e também a pessoa mais jovem (51 anos) a ocupá-lo.

Merkel nasceu na Alemanha Oriental na primeira década do regime comunista, sob o qual viveu até 35 anos. Seu pai era um pastor protestante que havia estudado na Alemanha Ocidental, mas voltado à região natal para a difícil tarefa de encontrar um modus vivendi entre a igreja e o governo marxista. Suas atitudes até hoje são controversas, aparentemente o pastor era um homem de esquerda, simpático a certos aspectos do regime e crítico de outros. Talvez tal ambiguidade fosse necessária para sobreviver além da Cortina de Ferro, mas o fato é o que o pai de Merkel nunca foi um opositor da ditadura, como outros religiosos.

A própria Merkel teve pouco envolvimento com política até a vida adulta. Ela estudou física e química e trabalhou como cientista nesses campos, em atividades de pouco destaque, que não exigiam compromissos com o regime. Quando o muro de Berlim ruiu, Merkel surpreendeu família e amigos engajando-se de modo intenso nas novas atividades políticas. Participou da fundação de um pequeno partido, o Advento Democrático, que logo incorporou-se à CDU. Numa carreira meteórica, em um ano ela já era deputada e ministra da Juventude.

Competente, dedicada, e sem a mácula de colaboração com o regime comunista, Merkel tinha enorme potencial para carreira na Alemanha reunificada, e assim foi percebida pelo primeiro-ministro Helmuth Kohl, que apostou nela. Em seu longo governo (16 anos), Merkel foi ministra por oito. Seu maior destaque veio quando assumiu a pasta de Meio Ambiente, muito importante na Alemanha, e que ela soube usar para ganhar também projeção internacional, tanto no âmbito da União Européia quanto nas negociações das Nações Unidas.

Quando a CDU perdeu as eleições para os sociais-democratas, Merkel ascendeu dentro do partido democrata cristão, beneficiada por uma série de disputas e escândalos de corrupção que atingiram Kohl e outros dirigentes do partido. Em 2005, depois numa eleição acirrada que resultou no pior desempenho eleitoral da CDU, ela foi eleita primeira-ministra, mas tendo que administrar uma difícil coalizão com os sociais-democratas, seus principais rivais.

O subtítulo do livro de Langguth é “ascensão ao poder” e o período de Merkel à frente do governo toma cerca de 70 das mais de 450 páginas do livro. Contudo, o retrato da política ajuda a entender bastante a personalidade da primeira-ministra. Sua discrição e introspecção – é casada pela segunda vez, ambos os maridos eram cientistas, não tem filhos, seus hábitos metódicos, sua flexibilidade ideológica (é mais individualista e liberal do que a tradição da democracia cristã) e sua habilidade em formar grandes coalizões e negociar consensos.

Em 2009 a CDU dissolveu a coalizão com os sociais-democratas e se aliou aos liberais. Esse período não é abordado na biografia, que tampouco trata da atual crise econômica na UE. Mas Langguth retrata Merkel como uma diplomata talentosa, que reaproximou a Alemanha dos EUA (após tensões oriundas da guerra contra o Iraque) e colocou certa distância crítica do governo russo, parceiro fundamental na área energética. Com ambos, tem forte agenda de direitos humanos.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Lisboa a Caminho de Atenas



Por Ramon Blanco
Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos pela Universidade de Coimbra, em parceria com o Centro de Estudos Sociais
Blogueiro Convidado

Ao se pensar na atual crise das dívidas soberanas na Europa, muito das atenções tem se dirigido, e não sem razão, para a Grécia. Afinal, foi lá onde a crise foi deflagrada, há quase dois anos. No dia 21 foi aprovada a sexta parcela (€ 8 bilhões) do segundo pacote de empréstimos ao país, que tem valor total de € 109 bilhões. Juntamente com essa nova medida foi acordado com detentores da dívida grega uma redução de 21% no valor dos seus papéis. Na última quarta-feira (26), tal redução chegou a 50% para títulos mãos de credores privados.

Essa sexta parcela chega aos cofres gregos na primeira quinzena de novembro, altura na qual a Grécia já estaria sem dinheiro mesmo para pagar salários e aposentadorias da função pública. Contudo, apesar dos elevados valores, tais montantes deixam a Grécia respirar por apenas alguns curtos meses. Já há estudos que colocam as necessidades gregas para a próxima década perto dos € 440 bilhões e a sua dívida em 170% do PIB em 2012.

Entretanto apesar da gravidade, e elevado valor dos números, ainda se está falando de uma situação de certa forma gerenciável em termos da União Européia. É preciso lembrar que, coletivamente, a UE tem o maior PIB do mundo e tais valores são uma pequena parcela do mesmo. A questão central de toda a crise é que esta nunca foi tratada enquanto um problema europeu, e sim grego. E isso faz toda a diferença. Assim, nessa linha de raciocínio, o grande receio do eixo franco-alemão, que é quem efetivamente lidera a Europa hoje, é o contágio da crise para outras economias européias, principalmente Espanha, Itália, e até mesmo França.

A seguir à Grécia, dois outros países europeus já sofreram intervenções financeiras por parte do Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Européia (a chamada troika) – Irlanda e Portugal. Observando as medidas recentemente adotadas, e o Orçamento de Estado (OE) proposto pelo governo – empossado em Junho desse ano e liderado pelo Partido Social Democrata (PSD), em coligação com o Partido Popular (CDS-PP) – para o ano de 2012, pode-se dizer que é bem possível assistirmos a Portugal caminhar para uma realidade vista na Grécia. Não tanto pela violência observada na contestação social, mas sim pelo acentuar do desemprego, perda de conquistas sociais, e grande possibilidade de não pagamento da sua dívida. Na sequência da recente visita do Primeiro-Ministro (PM) português ao Brasil, vale a pena olhar com um pouco mais de atenção para a realidade portuguesa.

Desde o primeiro trimestre de 2010, Portugal passa por série de pacotes de medidas de austeridade – como por exemplo, a redução das deduções fiscais, o aumento de impostos, o corte de salários de funcionários públicos e a redução de programas e subsídios sociais – com o intuito de lidar com a sua dívida. Em março, o governo acordou com a Comissão Européia novo pacote de medidas de austeridade – o quarto em doze meses – sem nenhuma consulta tanto à Assembléia da República (AR) quanto à Presidência. Ao ter tal pacote recusado pela AR, o governo teve a sua margem de governabilidade posta em causa, o que levou a sua queda e a convocação antecipada de eleições.

Em abril, o governo já demissionário assinou acordo com a troika visando um pacote de empréstimos para Portugal. A contrapartida seria a profunda reestruturação da economia e sociedade portuguesa. Pedro Passos Coelho, líder do PSD, foi eleito Primeiro-Ministro com uma agenda neoliberal de redução do tamanho do Estado e do papel deste na economia. O argumento apresentado era de que dessa forma a economia ficaria mais ágil e dinâmica.

Entretanto, o que se assiste, para a surpresa, e muitas vezes desespero, de muitos portugueses é um verdadeiro parar da economia. Logo que toma posse do governo, e dos números do Estado, Passos Coelho depara-se com grandes rombos – má execução orçamentária do primeiro semestre (ainda do governo anterior), um buraco no Banco Português de Negócios, e um enorme déficit nas contas da Região Autônoma da Madeira. Para o PM, tais desvios na execução do orçamento de 2011, em comparação à previsão feita no acordo com a troika, são superiores a € 3 bilhões.

De forma a chegar no limite do déficit acordado com a troika de 5,9% do PIB, em contraponto com os atuais 8,9%, o governo toma medidas de austeridade emergenciais. Alguns exemplos são o aumento nos preços dos transportes públicos, a subida de 6% para 23% no imposto sobre o gás e a eletricidade, e o corte pela metade dos subsídios de natal (equivalente ao 13º brasileiro) de todos os trabalhadores. No OE para 2012, além da subida de impostos em alguns escalões salariais e em diversos tipos de produtos e serviços, maior redução de deduções fiscais, privatizações de empresas chave, e redução de bens sociais, há o corte integral dos subsídios de natal e de férias para os funcionários públicos e aposentados para os próximos dois anos.

Em seu conjunto, todas as medidas retiram grande parte do dinheiro dos bolsos dos cidadãos e, em última análise, da economia. Isso levará Portugal a ter uma grande possibilidade de não conseguir pagar a sua dívida. O racional é simples. Com os tipos de impostos aplicados – sobre a produção, o consumo e a renda – tanto os produtos ficam mais caros, quanto as famílias têm menos dinheiro disponível para consumir. Somados, esses dois elementos levam a uma queda acentuada no consumo dentro da economia. Com menos consumo na economia, há por um lado menos produção de bens e serviços, e, por outro lado, menos incentivo para os empresários para arriscarem novos negócios ou expansões dos seus negócios atuais. Com isso, há menos produção de bens e serviços, o que gera não só menos contratação de funcionários, mas principalmente mais despedimentos de trabalhadores. Com menos trabalhadores com dinheiro disponível para consumir, há menos produção e menos incentivo para empreender novos negócios. Além disso, aqueles que ainda estão empregados, ao observar essa realidade negativa, passam a ter grande incerteza sobre os seus próprios futuros o que os leva a adiar, ou mesmo retrair, o seu consumo.

É dessa forma que a economia entra rapidamente em uma espiral negativa. A questão é que com menos consumo e menos produção, há uma redução drástica na arrecadação de impostos. Assim, a receita do Estado português irá decrescer acentuadamente nos próximos meses, o que fará com que tenha menos dinheiro para pagar suas dívidas. Esse caminho não só levará Portugal a não conseguir pagar as suas dívidas, mas literalmente matará a economia portuguesa quando esta mais precisa de se estar viva e vibrante para fazer frente às dificuldades externas e de seus cidadãos. É simplesmente deparar-se com um abismo e ver como melhor solução o passo à frente.

Já houve tempos em que os médicos, visando o tratamento de algumas doenças, praticavam a sangria – o que literalmente significava deixarem os pacientes sangrarem com o intuito de os curar. Obviamente, muitos pacientes morriam e assim a “solução” tirava mais do que salvava vidas. Felizmente, a Medicina aprendeu com os seus erros e tendo em vista a sua razão de ser – salvar vidas – avançou. Assim, tal técnica, além de desacreditada, foi praticamente abandonada enquanto tratamento médico. Não precisamos de uma medicina que mata mais do que salva. Na Economia, por outro lado, ainda assistimos à adoção de medidas que largamente ignoram as vidas das pessoas. Medidas estas que fundamentam-se em teorias econômicas que já evidenciaram falhas graves, tanto teoricamente quanto na prática. Uma economia que não tem como objetivo central, de uma forma sustentável, melhorar a vida das populações e dos seus indivíduos, além de não ser necessária, é bastante perigosa para a vida destes. Não precisamos de uma economia que mais destrói do que cria valor.