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Para um cientista político, “Avatar” é um filme de ficção científica que explora de maneira brilhante diversos dilemas atuais dos Estados Unidos: suas guerras contra povos que não compreendem, a necessidade de maiores preocupações com o Meio Ambiente e até as debilidades de suas redes de proteção social. Foi uma bela surpresa para uma matinê da qual eu só esperava um pouco de diversão com a nova tecnologia 3D.
O herói de “Avatar” é Jake, um ex-fuzileiro naval que ficou paraplégico numa operação militar e é contratado por uma grande empresa para desempenhar uma missão inovadora e arriscada na lua florestal do planeta Pandora. Nela existe um mineral raro e vital para a economia, mas sua exploração é dificultada pelos conflitos com uma raça humanóide local, os Na´vi, cuja cultura e nível tecnológico se parece muito com a dos índios americanos. Jake terá seu cérebro conectado a um corpo Na´vi artificial, desenvolvido em laboratório, e o conduzirá pela lua de Pandora, mais ou menos como se fosse um personagem de Second Life. O objetivo é compreender aquele povo, para melhor negociar um acordo com eles – ou eliminá-los, se esse for o caso.
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A missão deveria ser desempenhada por um cientista, irmão gêmero de Jake, mas ele foi assassinado durante uma tentativa de assalto. É um lembrete de que o mundo do futuro – a ação se passa daqui a 150 anos – não resolveu diversos problemas sociais básicos. Do mesmo modo, Jake poderia voltar a andar, a tecnologia existente é capaz de consertar sua coluna, mas os custos da cirurgia são altos demais para seu soldo de militar na reserva. Pois é, no universo do diretor James Cameron a reforma Obama do sistema de saúde fracassou... Também temos indícios que o mundo do século XXII vive uma séria crise de energia. Jake serviu como fuzileiro na Venezuela, e o coronel que ele conhece na lua de Pandora esteve na Nigéria. Ambos são países ricos em petróleo.
Na lua de Pandora, os humanos vivem num complexo industrial cuja segurança é garantida pelos militares. Choques armados com os Na´vi e com a fauna local são frequentes, mas também houve tentativas de diálogo, como a escola montada pela cientista Grace (Sigourney Weaver).
Os cientistas querem compreender os Na´vi e a lua, em especial a forte ligação que existe entre ambos, um tipo de religião da Mãe-Terra com vínculos biológicos muito intensos. Os militares e funcionários da empresa querem os Na´vi fora do caminho para permitir a exploração mineral. Desejam evitar a violência, se possível (massacres não agradam aos acionistas, nem à imprensa) mas estão dispostos a usá-la, se necessário. Sobretudo, por meio de ataques ao Meio Ambiente, o que devido às particularidades da cultura local, é algo próximo ao genocídio contra os Na´vi.
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Há vários pontos em comum entre a situação retratada no filme e as guerras que os americanos travam no Iraque e no Afeganistão, bem como a história colonial de diversos países, em particular com a subjugação dos povos indígenas nas Américas. Os dilemas éticos que se colocam aos cientistas do projeto Avatar se parecem bastante com os problemas enfrentados por antropólogos que trabalharam para as empreitadas imperialistas da Grã-Bretanha, e para que os desempenham papéis semelhantes nos projetos bélicos dos EUA.
A tecnologia e os efeitos visuais de “Avatar” são muito bonitos, mas o enredo é um amálgama de histórias sobre guerreiros que se apaixonam por culturas ditas primitivas e passam a questionar os valores de sua própria sociedade. Pense em filmes como “Dança com Lobos”, “Pequeno Grande Homem”, “O Último Samurai” e “Distrito 9”. Ainda assim – sinal dos tempos – nenhum de seus heróis levou tão longe a opção ideológica de Jake, que me recordou o sonho de Ivan Karamazóv, de devolver a Deus seu bilhete de entrada na humanidade.
Gostaria de uma discussão menos maniqueísta, mas o filme valeu, e muito. Há bastante espaço para uma continuação. A ver.