quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Avatar



Para um cientista político, “Avatar” é um filme de ficção científica que explora de maneira brilhante diversos dilemas atuais dos Estados Unidos: suas guerras contra povos que não compreendem, a necessidade de maiores preocupações com o Meio Ambiente e até as debilidades de suas redes de proteção social. Foi uma bela surpresa para uma matinê da qual eu só esperava um pouco de diversão com a nova tecnologia 3D.

O herói de “Avatar” é Jake, um ex-fuzileiro naval que ficou paraplégico numa operação militar e é contratado por uma grande empresa para desempenhar uma missão inovadora e arriscada na lua florestal do planeta Pandora. Nela existe um mineral raro e vital para a economia, mas sua exploração é dificultada pelos conflitos com uma raça humanóide local, os Na´vi, cuja cultura e nível tecnológico se parece muito com a dos índios americanos. Jake terá seu cérebro conectado a um corpo Na´vi artificial, desenvolvido em laboratório, e o conduzirá pela lua de Pandora, mais ou menos como se fosse um personagem de Second Life. O objetivo é compreender aquele povo, para melhor negociar um acordo com eles – ou eliminá-los, se esse for o caso.



A missão deveria ser desempenhada por um cientista, irmão gêmero de Jake, mas ele foi assassinado durante uma tentativa de assalto. É um lembrete de que o mundo do futuro – a ação se passa daqui a 150 anos – não resolveu diversos problemas sociais básicos. Do mesmo modo, Jake poderia voltar a andar, a tecnologia existente é capaz de consertar sua coluna, mas os custos da cirurgia são altos demais para seu soldo de militar na reserva. Pois é, no universo do diretor James Cameron a reforma Obama do sistema de saúde fracassou... Também temos indícios que o mundo do século XXII vive uma séria crise de energia. Jake serviu como fuzileiro na Venezuela, e o coronel que ele conhece na lua de Pandora esteve na Nigéria. Ambos são países ricos em petróleo.

Na lua de Pandora, os humanos vivem num complexo industrial cuja segurança é garantida pelos militares. Choques armados com os Na´vi e com a fauna local são frequentes, mas também houve tentativas de diálogo, como a escola montada pela cientista Grace (Sigourney Weaver).

Os cientistas querem compreender os Na´vi e a lua, em especial a forte ligação que existe entre ambos, um tipo de religião da Mãe-Terra com vínculos biológicos muito intensos. Os militares e funcionários da empresa querem os Na´vi fora do caminho para permitir a exploração mineral. Desejam evitar a violência, se possível (massacres não agradam aos acionistas, nem à imprensa) mas estão dispostos a usá-la, se necessário. Sobretudo, por meio de ataques ao Meio Ambiente, o que devido às particularidades da cultura local, é algo próximo ao genocídio contra os Na´vi.



Há vários pontos em comum entre a situação retratada no filme e as guerras que os americanos travam no Iraque e no Afeganistão, bem como a história colonial de diversos países, em particular com a subjugação dos povos indígenas nas Américas. Os dilemas éticos que se colocam aos cientistas do projeto Avatar se parecem bastante com os problemas enfrentados por antropólogos que trabalharam para as empreitadas imperialistas da Grã-Bretanha, e para que os desempenham papéis semelhantes nos projetos bélicos dos EUA.

A tecnologia e os efeitos visuais de “Avatar” são muito bonitos, mas o enredo é um amálgama de histórias sobre guerreiros que se apaixonam por culturas ditas primitivas e passam a questionar os valores de sua própria sociedade. Pense em filmes como “Dança com Lobos”, “Pequeno Grande Homem”, “O Último Samurai” e “Distrito 9”. Ainda assim – sinal dos tempos – nenhum de seus heróis levou tão longe a opção ideológica de Jake, que me recordou o sonho de Ivan Karamazóv, de devolver a Deus seu bilhete de entrada na humanidade.

Gostaria de uma discussão menos maniqueísta, mas o filme valeu, e muito. Há bastante espaço para uma continuação. A ver.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Ditadores Contemporâneos



No próximo mês darei na Casa do Saber um curso sobre Ditadores Contemporâneos. O tema me foi proposto pela coordenação da instituição e minha idéia é debatê-lo a partir da seguinte perspectiva: 20 anos após a queda do Muro de Berlim, numa economia global cada vez mais integrada, e diante de revoluções nas comunicações, ainda há espaço para regimes autoritários? Adoraria dizer que não, mas me parece que a resposta é que sim, e muito.

Segundo o levantamento de 2009 da Freedom House, 54% dos países são ditaduras ou regimes “parcialmente livres”, no quais liberdades essenciais sofrem constrangimentos. O mapa acima ilustra os dados: as nações em verde são democracia, as em amarelo, parcialmente livres e as roxas, não livres.

Tenho restrições aos critérios dessa organização – Por que o México é considerado como mais livre do que o Paraguai, por exemplo? É válido colocar na mesma categoria o Canadá e a Namíbia? - mas concordo com a avaliação da disseminação do autoritarismo pelo mundo.




Quero discutir com meus alunos o que é necessário para que uma ditadura contemporânea prospere, como no caso da China, e o que faz com que certos regimes se tornem esteriótipos de péssimos governos, desastre econômico ou psicoses individuais de seus líderes, como, digamos, a Coréia do Norte e o Zimbábue.

Cuba é uma categoria intermediária, um sistema autoritário que conseguiu sobreviver à Guerra Fria e ao fim dos subsídios soviéticos, empreendendo um grau considerável de reforma econômica e reavaliação das suas relações diplomáticas. Mas e quanto às liberdades civis e políticas? Será que Raúl Castro é capaz de postergá-las ainda mais, num quadro em que a sociedade da ilha se torna mais complexa, e a comunidade cubana nos EUA busca aproximar-se do governo em Havana?

Por fim, falarei das ditaduras baseadas na “maldição dos recursos naturais”, que se mantém graças à alta expressiva no preço de commodities como o petróleo. A idéia é usar o Irã como exemplo principal, debatendo como as reformas dos anos 1990 foram abandonadas no contexto da radicalização política do Oriente Médio, das guerras e ocupações estrangeiras nos vizinhos Iraque e Afeganistão.

A Venezuela entra no curso como uma nação no limite, um regime que pode tanto rumar para recuperar o equilíbrio democrático ou naufragar no conflito político e no autoritarismo. Pode render uma boa discussão sobre qual é a fronteira que separa a democracia das ditaduras, o que talvez seja mais confuso hoje do que no passado.

Lamentavelmente, o subtítulo do curso poderia ser algo como "os aliados internacionais do Brasil" e quero debater com a turma por que a política externa brasileira trata tão mal a questão dos direitos humanos. Será que não está na hora de um aggiornamento, de abrir as janelas para a democracia?

domingo, 27 de dezembro de 2009

Massacre no Suriname



Nas aulas e palestras que tenho dado no Exército, destaco com frequência o risco de ataques às comunidades de brasileiros no exterior, e examino a importância desses grupos para as políticas externa e de defesa do Brasil. Contudo, sempre aponto Paraguai e Bolívia como áreas de maior potencial de conflito. Foi uma surpresa para mim a escala da violência que ocorreu no Suriname contra os brasileiros que lá vivem. Na pequena cidade de Albina, de apenas 10 mil habitantes, um grupo de 200 pessoas atacou com facões 80 brasileiros. As notícias ainda estão confusas e imprecisas, mas há relatos de uma morte, uma grávida esfaqueada que perdeu a criança, sete homens internados em estado grave e denúncias de estupros. O estopim da selvageria foi um brasileiro ter matado um morador local, durante uma briga por dívidas. A cidade é uma área de garimpo, de precária manutenção da lei e da ordem.

A migração de garimpeiros entre o Brasil e os países amazônicos tem dado origem a muitos conflitos nos últimos anos. Além do choque no Suriname, houve problemas com Venezuela e Colômbia. Um aluno militar que serviu em um Pelotão Especial da Fronteira me contou que certa vez ele e seus soldados capturaram uma quadrilha de policiais venezuelanos que atuava na região roubando os garimpeiros brasileiros – e ainda por cima se apresentavam fardados como militares colombianos! Em todos casos, é uma combinação explosiva da ausência do Estado com a presença de ouro e a possibilidade de ganhos fáceis.



No Suriname, há uma complicação extra, de cunho racial. A região de Albina é de forte presença de maroons, quilombolas. Os descendentes dos escravos tem péssima relação com o governo do país e com os estrangeiros que lá vivem e trabalho. Esses conflitos remontam à época colonial – o Suriname só se tornou independente da Holanda em 1975 – quando houve choques violentos entre os maroons e empresas de mineração que se estabeleceram na região.

O governo do Suriname reagiu de modo exemplar à onda de barbárie contra os brasileiros e tem prestado toda a colaboração às autoridades do Brasil. Um avião da Força Aérea Brasileira foi enviado para evacuar aqueles que queiram deixar o país.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Lendo Lolita em Teerã



No próximo mês darei um curso sobre o Irã e aproveito para ler alguns livros sobre a história recente do país. O mais interessante, sem dúvida, foi “Lendo Lolita em Teerã: memórias de uma resistência literária”, de Azar Nafisi. A autora é professora de literatura e atualmente vive nos Estados Unidos. Seu relato autobiográfico é focado em dois momentos: a situação explosiva nas universidades logo após a Revolução Islâmica e o fechamento do país nos anos posteriores, quando teve que abandonar seu cargo e passou a lecionar em sua casa, para um grupo restrito de estudantes.

Nafisi é especialista em literatura inglesa e americana, o que por si só a tornava suspeita no Irã pós-revolucionário. Descende de uma família de intelectuais e politicos: durante a monarquia, o pai fora prefeito de Teerã, e a mãe, deputada. Teve uma educação refinida e cosmopolita, curiosamente marcada pela cultura de esquerda dos anos 60 – o tema de sua tese de doutorado foram os escritores radicais nos EUA durante a Grande Depressão.

A jovem acadêmica caiu direto dos campi americanos para as salas de aula de Teerã logo após a queda do Xá. O caráter da Revolução estava então em disputa, e clérigos e militantes de esquerda lutavam pelo controle do país. Ambos os grupos eram muito fortes na universidade, e os cursos sobre literatura americana ministrados por Nafisi foram rapidamente taxados de “contrarevolucionários”, fosse em nome dos aiatolás, fosse em razão do comunismo. Ambas as correntes convergiam no ódio intenso aos Estados Unidos.



Nafisi estrutura seu livro a partir de quatro partes que prestam homenagem a grandes escritores: Vladimir Nabokov, Scott Fizgerald, Jane Austen e Henry James. Os leitores que os conhecem sabem de suas posições extremamente críticas às sociedades em que viveram. Essse é o ponto de Nafisi para seus jovens estudantes, às vezes com sucesso, às vezes com fracasso. Um dos melhores pontos da narrativa é o julgamento (literalmente, com juiz, promotor, defensor) do romance “O Grande Gatsby”, de Fitzgerald, que muitos fundamentalistas (com ou sem turbantes) consideravam típico da decadência moral americana.

Na visão de Nafisi, da qual compartilho, se trata de um retrato irônico de como o Sonho Americano pode ser fútil, vazio e enganador. E Lolita, de Nabokov, não é só sobre pedofilia, mas uma interpretação de como podemos destruir um ser humano ao tentar transformá-lo em marionete de nossos sonhos e fantasias. Exatamente como os aiatolás fazem com os iranianos, provoca Nafisi.

Ela adota uma posição que já havia lido em Vargas Llosa, a de que boa literatura é, em si mesma, contestadora, subversiva e rebelde, mesmo quando os escritores são conservadores. Mais do que isso, diz Nafisi:

Um bom romance é aquele que mostra a complexibilidade dos indivíduos; e que cria espaço suficiente para que todos esses personagens tenham uma voz; por isso um romance é chamado de democrático – não porque defenda a democracia, mas porque esta é sua natureza. A empatia está no cerne da questão, no centro de O Grande Gatsby, como em tantos outros grandes romances – o maior pecado é ficar cego dinte dos problemas e dos sofrimentos das outras pessoas.

A segunda parte do livro, a dos grupos de estudo, é menos interessante. O tema é de grande relevância: a opressão feminina que se dá no cotidiano do Irã. A dificuldade para Nafisi é que essa história foi contada de maneira muito mais saborosa em “Persépolis”, de Marjane Satrapi.

E enquanto isso, no Irã: o funeral do aiatolá mais crítico ao regime se tornou palco de outra grande manifestação contra o governo. E numa decisão surpreendente, a justiça iraniana reconheceu que houve tortura na repressão aos protestos durante as eleições.

O blog dá uma parada para o Natal e retorna na próxima semana. A todos, uma excelente festa.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O Brasil em Copenhage



A Conferência foi um fiasco, uma decepção mesmo para os que tínhamos poucas expectativas. Mas o Brasil se saiu bastante bem, atuando de maneira construtiva. Duas constatações: o Meio Ambiente ganha força na agenda política brasileira (doméstica e externamente) e a diplomacia do país brilha quando encampa teses de direitos humanos.

Começando pelo primeiro ponto: a delegação brasileira foi encabeçada pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, o que mostra a importância política de Copenhague. Tradicionalmente, em fóruns desse tipo, tal posto cabe ao ministro do Meio Ambiente. O titular brasileiro da pasta, estava lá, mas em geral foi desautorizado e corrigido por Dilma.
A ministra tem pouca familiaridade com o tema e em geral o tratou de forma hostil, como nos diversos conflitos que opuseram o Ibama e a Casa Civil por exigências ambientais que retardaram obras do PAC. Caso da preocupação com a biodiversidade no Rio Mandeira, atrasando a contrução das usinas na área, e da espécie rara de perereca colocada em risco pelo arco rodoviário no Rio de Janeiro.

A conversão de Dilma se explica em função da candidatura da senadora Marina Silva, a líder ambientalista mais respeitada do Brasil, cujo período como ministra do Meio Ambiente do governo Lula foi um acúmulo de decepeções e frustrações. Ironicamente, ela tem mais influência sobre a política pública na oposição, fazendo seus colegas se esforçarem para provar seu compromisso com o assunto. Como coerência política não se improvisa, o resultado foram diversas gafes de Dilma, em particular aquela em que chamou o Meio Ambiente de “ameaça ao desenvolvimento sustentável”. Veja o vídeo, abaixo:



Dois dos pré-candidatos da oposição também estiveram presentes. Marina e o governador de São Paulo, José Serra. Naturalmente, aproveitaram a ocasião para criticar o governo e apontar as contradições da posição brasileira. Um exemplo, levantado por Marina, foi a recusa do Brasil em contribuir com o fundo que ajudará os países mais pobres do mundo a combater o aquecimento global. Era boa ocasião para que o governo brasileiro assumisse a liderança nesse ponto importante e construísse pontes para envolver de modo mais intenso os as nações mais frágeis. Lula sinalizou que isso poderia ocorrer, Dilma disse que não. Mais um exemplo da falta de coordenação entre as principais autoridades do país.

Apesar dos problemas, Lula saiu-se muito bem, foi aplaudido na Conferência e bastante elogiado pela imprensa internacional, que ressaltou seu domínio do tema e capacidade de síntese das principais questões em discussão na Conferência. Como destaques negativos, a incapacidade dos Estados Unidos e da China em chegarem a consensos mínimos para avançar a agenda, e o papel patético desempenhado pelos anfitriões dinamarqueses, que num dado momento chegaram a tentar negociar um acordo às escondidas dos EUA.

Os maiores desafios para o Brasil na questão do Meio Ambiente não virão do plano externo, mas da política doméstica. Em particular, os obstáculos colocados pela bancada ruralista no Congresso, já que muito do desmatamento no país vem da pecuária.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A Terceira Margem



Neste dia em que tudo indica que a Cúpula de Copenhage irá terminar frustrando as esperanças sobre um acordo global a respeito da mudança climática, uma excelente leitura é o recém-lançado “A Terceira Margem: em busca do ecodesenvolvimento”, as memórias do economista polonês Ignacy Sachs. O livro é um ótimo apanhado das discussões sobre desenvolvimento no pós Segunda Guerra Mundial, enriquecido pela experiência de vida do autor nos “três mundos”: França (nações ricas), Polônia (socialismo real), Brasil e Índia (países em desenvolvimento) e com interlocutores extraordinários como Michal Kalecki, Amarthya Sen, Maurice Strong, Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso.

Sachs nasceu numa rica família de banqueiros e morou em Varsóvia até a adolescência. Teve que fugir do país às pressas, quando a Alemanha nazista o invadiu em 1939, pois era judeu. Terminou no Brasil, onde se formou em economia e morou até meados dos anos 50, trabalhando principalmente para a representação diplomática da Polônia já ocupada pela URSS. Sachs havia se casado no Brasil com uma refugiada polonesa e o jovem casal resolveu embarcar na aposta de construir um “socialismo com face humana”, o que parecia uma boa chance na época do reformista governo Gomulka e do degelo pós-Stalin.

Por conta da temporada brasileira, Sachs foi se tornando um especialista no Terceiro Mundo, e suas análises da economia e dos problemas desses países eram um terreno relativamente seguro para a ortodoxia comunista, não despertavam muitos medos. Em Varsóvia, ele se tornou assistente de Michal Kalecki, genial economista que foi um dos inventores da macroeconomia e inclusive antecipou várias idéias de Keynes.



As portas se abriram rapidamente e Sachs passou uma instrutiva temporada na Índia, como adido na embaixada polonesa. Lá cursou o doutorado num período em que Nova Délhi era parada obrigatória da maioria dos intelectuais de destaque, interessados em conhecer o governo de Nehru e a tentativa indiana de construir uma posição não-alinhada na Guerra Fria. Os capítulos sobre a Índia são muito bons, em particular a narrativa dos encontros do autor com Amartya Sen e suas tentativas de compreender a mensagem de Gandhi.

Mas o retorno à Polônia foi dificil, pois o país já começava a passar pela crise que culminou na queda de Gomulka, e os judeus foram particularmente visados. Como Sachs já era uma figura respeitada no circuito internacional, conseguiu se estabelecer na França, como professor universitário em Paris, e iniciou uma longa carreira de consultor para diversas agências da ONU e muitos governos estrangeiros, inclusive o do Brasil.

Sachs se dedicou a diversos temas desde então, mas sem dúvida o mais singnificativo para sua obra foi incorporar as preocupações sobre Meio Ambiente à agenda do desenvolvimento, algo que começou por sua amizade com o milionário canadense Maurice Strong e participação destacada em todas as grandes conferências da ONU sobre o tema – Estocolmo, Rio, Johannesburgo. Seu relato mostra como o assunto foi aos poucos conquistando parcelas crescentes da opinião pública e dos próprios governos, embora os impasses em Copenhage sejam ilustrativos dos muitos problemas da área.

Infelizmente, Sachs não escreve muito sobre a França no livro, seria interessante saber como ele observa as várias transformações pelas quais a sociedade francesa passou desde 1968, quando ele se estabeleceu em Paris. Mas o Brasil recebe bastante espaço em suas memórias, permanecendo um dos seus principais temas de pesquisa – ele dirige o Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. O próprio título de suas memórias vem, claro, do belo conto de Guimarães Rosa.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Chile: o declínio da Concertação



O primeiro turno das eleições presidenciais chilenas foi realizado no domingo e marcou uma contradição: a presidente Michelle Bachelet termina seu mandato com excelentes avaliações, que batem nos 80% de aprovação, mas sua coalizão política, a Concertação, enfrenta séria crise e provavelmente será derrotada nas urnas, pela primeira vez desde que o Chile voltou a ser uma democracia.

O declínio da Concertação é natural. Após 20 anos no poder, é compreensível que os eleitores queram renovação, mesmo que muitos tenham boa opinião sobre a coalizão de centro-esquerda que reúne socialistas, democratas-cristãos e outros partidos. No longo período em que seus líderes estiveram à frente do país, a Concertação conseguiu conduzir uma difícilima transição para a democracia, sempre à sombra do general (e senador vitalício) Pinochet. Fez boa gestão da economia e, nesta última década, deu bastante atenção às políticas sociais e ao combate à desigualdade. Seus desgastes foram menores do que aqueles experimentados pelos socialistas na França e na Espanha, uma vez que os governos Mitterand e Gonzáles terminaram com escândalos de corrupção que estiveram ausentes no Chile.

Contudo, a Concertação deixa alguns impasses sérios. A política externa chilena não conseguiu resolver os problemas com os vizinhos sul-americanos, em particular com Peru e Bolívia. A marginalidade social dos índios continua forte, com conflitos violentos envolvendo disputas de terra no sul do país. A xenofobia e o neonazismo têm ocorrido em escala preocupante. As demandas por reformas amplas na educação não foram atendidas a contento e serão grandes desafios para o próximo presidente. E a estrutura interna da Concertação não soube lidar com seus rebeldes e dissidentes, o que culminou na fragmentação e alienação de seus integrantes mais dinâmicos.



A escolha do democrata-cristão Eduardo Frei para candidato à presidência foi um erro. A um eleitorado ávido por mudança, a Concertação apresentou um ex-presidente, filho de ex-presidente. As propostas de transformação mais interessante vieram de Marco Enríquez-Ominami, jovem cineasta com pinta de galã (foto acima), filósofo, ex-deputado pelos socialistas, filho de um dirigente guerrilheiro morto por Pinochet e enteado de um senador socialista. Ominami concorreu como independente e balançou o establishment com uma plataforma que incluía implementar o federalismo (num país muito centralizado) e diminuir o poder presidencial num sistema híbrido que criaria um primeiro-ministro, à semelhança do modelo francês.

O favorito para ser o próximo presidente do Chile é o empresário Sebastian Piñera, o homem mais rico do país, dono de uma série de negócios que incluem a companhia aérea Lan Chile, redes de farmácia e times de futebol. Lidera a “Coalizão pela Mudança”, cujos principais integrantes são os partidos de direita Renovação Nacional e União Democrática Independente. Esta última é a sigla criada por Pinochet após o golpe de 1973, para substituir o tradicional Partido Conservador. Mas a direita chilena rachou depois da redemocratização – nas últimas eleições presidenciais concorreu com dois candidatos - e Piñera representa sobretudo a corrente que privilegiou o aspecto da liberalização econômica, e não o legado autoritário da ditadura. Este último se enfraqueceu muito com os escândalos de corrupção envolvendo Pinochet e sua família. No Chile, esse tipo de crime faz os políticos perderem votos. Que inveja!

Em comparação à Argentina e ao Brasil, a direita chilena se destacava por ser eleitoralmente forte, pelo menos até a década de 1960. O retorno dos conservadores ao poder, pelas urnas, é boa notícia para a democracia no Chile. Quando o revezamento ideológico-partidário se concretizar, o país poderá então celebrar o momento em que sua transição democrática estará completa. Só preocupa a concentração de poderes econômicos e políticos nas mãos de Piñera. A sombra de Berlusconi é um alerta do que pode ocorrer em casos assim.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Diplomacia Militar



Passei o fim de semana na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), dando um curso sobre política na América Latina, como parte de um convênio de pós-graduação entre a instituição e a Universidade Candido Mendes. É muito gratificante acompanhar, e participar, do fortalecimento do campo de relações internacionais no Exército. Algo que para mim começou de maneira mais intensa no ano passado, quando dei outro curso na AMAN, para os cadetes do último ano.

Um dos projetos que anda na minha cabeça é o de organizar um livro sobre diplomacia militar. A participação das Forças Armadas em missões de paz na ONU é um tema bastante estudado – na própria turma para a qual lecionei na AMAN havia oficiais que serviram no Haiti – mas há muitos outros desdobramentos internacionais da ação dos militares.

Um exemplo são os Pelotões Especiais de Fronteira na região amazônica. Um dos oficiais com os quais conversei me contou histórias fantásticas de quando comandou um desses destacamentos, como jovem tenente. É uma experiência desafiadora, porque o oficial, além de exercer funções militares em grande isolamento geográfico, precisa desempenhar atribuições de prefeito, juiz de paz, mediador de conflitos e diplomata.

As Forças Armadas também exercem funções clássicas de dissuação em negociações internacionais. O barão do Rio Branco era mestre em utilizá-las dessa forma, deslocando tropas por ocasião de diálogos delicados, como exemplo do que poderia acontecer caso a diplomacia fracassasse. Atualmente, na América do Sul, os temas da segurança energética e da proteção às comunidades de brasileiros no exterior (sobretudo no Paraguai e na Bolívia). Este último assunto, inclusive, tem sido objeto de diversas manobras de treinamento, em razão de crises políticas que envolveram tais grupos.

Outro tema que tem ganhado destaque é a revitalização da indústria de defesa, diante do aumento dos investimentos do governo no setor. Por enquanto as expectativas estão concentradas na Força Aérea, mas logo deve começar também uma expansão da Marinha, pela necessidade de proteger o pré-sal e pelo repasse de royalties do petróleo à instituição.

Tenho sido um defensor de que os currículos dos cursos de relações internacionais dediquem também mais espaço ao estudo da política doméstica de países que são importantes para o Brasil. A importância desse enfoque tem se tornado clara no caso de crises recentes com a Bolívia e a Venezuela, mas até mesmo no que diz respeito a Honduras, onde um conhecimento mais sólido da realidade local teria auxiliado bastante as autoridades brasileiras. Foi ótimo constatar que os militares compartilham minha preocupação.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Copenhage



A Conferência de Copenhage sobre Mudança do Clima prossegue até o dia 18, mas as linhas de batalha já estão demarcadas de forma clara: os países desenvolvidos querem que as nações em desenvolvimento arquem com parte do fardo para reduzir as emissões de gás carbônico, mas estas aceitam apenas adotar compromissos voluntários, que não sejam vinculados a um tratado internacional, e querem que os Estados ricos paguem a conta. Há poucas possibilidades de que se consiga um acordo abrangente, em grande medida devido às restrições da crise internacional, mas também pela relutância dos dois principais poluidores, China e EUA.

O principal referencial diplomático é o Protocolo de Quioto, adotado em 1992, que expira em 2012. Ele estabeleceu o princípio de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Ou seja: os dois grupos reconhecem o dever de agir para combater a mudança climática, mas apenas as nações ricas adotaram metas obrigatórias. E nem todas: os Estados Unidos permanecem de fora, e não está claro se haverá mudanças signicativas vindas de Washington. Em abril deste ano, o governo Obama declarou as emissões de gás carbônico um “risco para a saúde”, o que aponta para medidas mais duras para combater o problema. Contudo, o plano que apresentou ao Congresso é muito modesto e prevê diminuição de apenas 5%, se tomamos por base os dados da década de 1990. Muito aquém do necessário.

Há polêmicas entre os cientistas sobre a extensão dos compromissos que o problema exige, mas as estimativas mais comuns oscilam entre 25% e 40% de redução até 2020. Se isso não ocorrer, as temperaturas podem aumentar entre 1 e 6 graus C nas próximas décadas. A escala da divergência é grande, mas mesmo expectativas moderadas significam dificuldades monumentais para adaptar países às novas condições ambientais.

As nações em desenvolvimento, em particular os BRICs, adotaram posturas bem mais flexíveis do que em épocas anteriores. China, Índia e Brasil aceitam reduções em torno de 40%, embora recusem compromisos legais e demandem transferência de tecnologia limpa e auxílio financeiro. O Brasil acena com promessas de combater o desmatamento na Amazônia e com o desenvolvimento dos biocombustíveis, apesar de comentaristas céticos observarem que a exploração do pré-sal continua a amarrar a economia brasileira à energia fóssil. A Rússia é um caso curioso: o colapso do Estado soviético reduziu muito as emissões de carbono do país, de modo que Moscou está ironicamente bastante à frente do que foi acordado na ONU, e agora quer compensações por isso.

Outro tema polêmico é quanto custará adaptar a economia global para combater as emissões de gás carbônico. A União Européia apresentou o pacote mais ambicioso, cerca de US$150 bilhões por ano, mas certas estimativas apontam que seria necessário quatro vezes mais do que isso. Num cenário de crise generalizada, é claro que mesmo que seja negociada alguma quantia, ela será bem menos do que isso.

Boa sorte para os delegados em Copenhage, e para todos nós que vivemos neste planeta. Precisamos.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Elogiemos os Homens Ilustres



Nos últimos dias, mergulhei em duas obras de arte que refletem sobre a extrema pobreza nos Estados Unidos, na Depressão da década de 1930 e na crise atual. “Elogiemos os Homens Ilustres” é uma reportagem clássica sobre agricultores em dificuldades no Alabama. “O Solista”, adaptação para o cinema da história real da amizade entre um jornalista e um músico sem-teto em Los Angeles.

Em 1936 a revista Fortune encarregou o repórter James Agee de seguir para o sul dos EUA e passar algumas semanas com as famílias que cultivavam o algodão e enfrentavam com especial severidade os efeitos da crise econômica. Ele levou junto o fotógrafo Walker Evans, que documentou a jornada em excelentes imagens. A reportagem nunca foi publicada, mas serviu de base para um livro no qual Agee relatou a experiência, numa análise social que mergulhou bastante fundo naquela realidade.



Agee misturou o senso de justiça da geração do New Deal com a inventividade formal dos escritores modernistas que ele tanto admirava, seu livro se parece muito com a obra de James Joyce ou Alfred Doblin (“Berlim Alexanderplatz”). Em certo sentido, ele foi um precursor dos beats e do Novo Jornalismo da década de 1960, e não por acaso seu livro demorou muito a ser reconhecido, para depois virar objeto de culto pela vanguarda literária americana. Não é uma obra fácil ou agradável de ser lida, mas impressiona o retrato da miséria pintado por Agee, com um tipo de falta de esperança e escassez de oportunidades que em geral só esperamos encontrar em narrativas sobre países subdesenvolvidos.

O jornalista também estava à frente do seu tempo no que diz respeito ao combate ao racismo. É significativo que a Fortune o tenha mandado expressamente acompanhar o cotidiano dos trabalhadores brancos, embora o plantio e a colheita do algodão fosse tradicionalmente realizada por negros, ainda mais no Alabama! Ele ataca com rigor as discriminações enfrentadas pelos afro-americanos e os próprios historiadores atuais do New Deal são muito críticos com relação à relativa pouca atenção que Roosevelt dedicou ao grupo, em parte porque precisava do apoio dos hiper-conservadores Democratas do sul.

“O Solista” é ambientado 70 anos depois de “Elogiemos...”. O cenário é a conturbada e injusta megalópole de Los Angeles, na qual o jornalista Steve Lopez (interpretado por Robert Downey Jr.) escreve uma coluna sobre o cotidiano local. Um dia ele escuta um músico sem-teto executar com perfeição obras de Beethoven numa praça do centro. Interessado por sua história, descobre que ele se chama Nathaniel Ayers Junior (Jamie Foxx) e que foi aluno da prestigiada escola Julliard, da qual fugiu após um surto de esquizofrenia. Acossado pela doença, vive nas ruas, mas continua apaixonado pela música e com grande talento artístico.



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Novamente, o racismo está presente. Nathaniel refugiou-se na música e em sua própria mente em grande medida para tentar se proteger de um meio hostil e violento, e o desejo de Lopez em ajudá-lo de início é marcado por muito paternalismo. Aos poucos, os dois homens se tornam amigos e Lopez mergulha no mundo da miséria do Skid Row de Los Angeles. A degradação da área é tão grande que fui pesquisar, para ver se o filme não exagerava. Infelizmente, a representação cinematográfica está correta, exceto por um detalhe importante: na tela grande a região aparece como majoritariamente negra, enquanto na vida real predominam os sem-teto de origem latino-americana.

Ao tratar das periferias francesas, escrevi que amizade é civilização. Vendo “O Solista”, penso que é também a última utopia humanista, a trincheira que nos restou para defender certos valores que fazem a vida valer a pena. E que, nesse belo filme, contam com aliados fundamentais, como dois dos melhores atores do cinema contemporâneo e a excepcional, celestial música de Ludwig van, a ressoar pelas ruas de Los Angeles e nos lembrar que os seres humanos podemos ser sempre melhores.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A Reeleição de Evo



Em cerca de 190 anos de vida independente, a Bolívia teve mais de 200 presidentes. É raro que um mandatário consiga completar seu mandato – nesta década, Evo Morales é o primeiro a consegui-lo, e leva, de quebra, sua reeleição. O que aconteceu na política boliviana para que ele realizasse esse feito, num período turbulento que incluiu fortes conflitos regionais com as províncias do Oriente, o embate pela nova Constituição, disputas sérias com Brasil e Estados Unidos e a pressão de sua própria base de apoio popular? Penso que a resposta passa pela agenda social, pelo nacionalismo e pela gestão da macroeconomia.

A participação dos movimentos indígenas no Estado bolviano ocorre de forma crescente desde os anos 1980, com a redemocratização do país. Começaram como grupos sociais de protestos, ligados sobretudo às demandas por recursos naturais, logo assumiram papéis importantes nas administrações municipais. Com Evo Morales, chegaram à presidência, embora ele próprio seja muito mais um fruto dos sindicatos do que de mobilizações puramente indígenas, como a dos kataristas. Sua maneira de se vestir, mesclando roupas aymara e ocidentais, é um símbolo importante das funções de intermediário entre mundos culturais diferentes.

As respostas de Evo às demandas indígenas se deram sobretudo por meio da nova Constituição, que concede bem mais autonomia às comunidades (ayllus) e reconhece tradições de justiça e de medicina, numa decisão controvertida, pois com freqüência elas entram em conflito com as instituições do Estado. Minha experiência de pesquisa na Bolívia me ensinou a não menosprezar os efeitos do que os teóricos chamam de “politica da presença”: a própria existência de um indígena-presidente têm efeitos extremamente benéficos para a autoestima e a mobilização dessas populações, como pude comprovar nas entrevistas e consersas que fiz no país.

O Estado boliviano tem uma estrutura frágil, que dificulta a implementação de políticas sociais abrangentes, mas Evo conseguiu contornar o problema com a alta do preço das commodities (que multiplicou por nove as receitas sociais disponíveis para os municípios) e auxílio internacional: a Venezuela financiou seu programa de habitações populares e de alfabetização, e Cuba, suas clínicas de atendimento a comunidades pobres. A equipe do presidente adaptou políticas bem-sucedidas em outros países: o Bono Juancito Pinto é uma versão boliviana do Bolsa Escola, e também há ações bem-sucedidas de combate à mortalidade e desnutrição infantis.

Em sua política externa, enfrentou conflitos sérios com os dois principais parceiros. Retórica à parte, a nacionalização parcial dos hidrocarbonetos deixou marcas profundas na relação com o Brasil, e afugentou investidores externos. A alta do gás ajudou a Bolívia no curto prazo, permitindo boa gestão macroeconômica (as reservas cambiais, por exemplo, se multiplicaram por cinco) mas há dificuldades para planejar o futuro do setor. Com os Estados Unidos, a agenda também é tensa: os bolivianos expulsaram um embaixador e vivem maus momentos com Washginton em função do aumento das plantações de coca e da aliança com Chávez.

Ainda assim, a maior ameaça a Evo veio de dentro: a rebelião das províncias do Oriente, as mais ricas da Bolívia, em embates violentos que por vezes pareceram que desceriam ao nível de guerra civil. O pior foi evitado, mas por pouco, e inclui episódios trágicos como o massacre de camponeses no departamento (província) de Pando. O ex-governador Leopoldo Fernández é candidato a vice-presidente na principal chapa da oposição. Detalhe: ele faz campanha do cárcere, pois está preso em função do massacre. Seu colega é o ex-prefeito de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, membro da elite tradicional associado à ditadura militar. Com opositores desse naipe, não espanta a grande votação de Evo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Se não têm pão, que comam panetones



“Se estes são os nossos Democratas, então votarei nos republicanos!”,
De um dos meus ex-professores no doutorado

A rebelião em Brasília contra o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, é uma bela novidade em um caso que tinha tudo para entrar como mais um exemplar do folclore da corrupção brasileira: câmeras ocultas, uso heterodoxo de peças de roupa para guardar dinheiro, desculpas estapafúrdias (era tudo para comprar panetones) e, meu momento favorito, a oração dos deputados em favor de um dos chefes do esquema. Como diria o padre Antônio Vieira, é o Sermão do Bom Ladrão.




“Sabemos que somos falhos”, dizem os parlamentares. Nós, cientistas políticos, também desconfiávamos. Já são sete pedidos de impeachment contra Arruda e o escândalo em Brasília provavelmente fará com que os Democratas percam seu único governnador. Seu prefeito mais importante, Gilberto Kassab, de São Paulo, enfrenta problemas sérios: uma gestão muito criticada, com expressivo aumento de impostos e multiplicação de secretarias municipais. O partido há tempos tem perdido muitos quadros para o PSDB, inclusive essa tendência motivou a controversa decisão do Supremo Tribunal Federal estabelecendo fidelidade partidária.

Mais do que um problema de conjuntura, é a expressão de dificuldade típica da política brasileira: o estabelecimento e consolidação de um partido de direita competitivo eleitoralmente, como aqueles que existem, por exemplo, no Chile (Renovação Nacional, favorita na disputa presidencial) e Uruguai (Partido Nacional).

Tomo emprestadas aqui as idéias do sociológo argentino Torcuato di Tella: a ausência de uma sigla desse tipo é má notícia para a democracia, pois o sistema é baseado em negociações e concessões entre os diversos interesses dos cidadãos, e todos ganham quando o jogo se dá às claras, em alianças partidárias, barganhas no Congresso etc. Di Tella argumentou que sem esse partido e acuada pelo peronismo, a direita argentina com frequencia apelou a golpes de Estado, tentando tomar pela força o poder que não conquistava pelo voto. Pode-se estabelecer comparações com o Brasil de 1946-1964, em particular pela ação destrutiva da União Democrática Nacional conta praticamente todos os presidentes eleitos no período.

A ditadura militar brasileira procurou reorganizar o sistema partidário por decreto, reunindo seus apoiadores de direita na Arena, que por muitos anos se vangloriava de ser “o maior partido do ocidente.” O retorno do multipartidarismo antecedeu em alguns anos a volta da democracia, em parte como estratégia do regime autoritário para fragmentar a oposição (dividida no PMDB, nos trabalhistas, no nascente PT etc) mas também para permitir a dança das cadeiras entre a elite conservadora que apoiou a ditadura, e que teve tempo para construir alternativas eleitorais viáveis. Os Democratas (que bom que mudaram de opinião quanto ao regime político desejável para o país, não?) são encarnação mais recente da Arena.

A direita brasileira após a redemocratização é um tema que merece mais atenção dos pesquisadores. O livro mais interessante que conheço sobre o assunto foi escrito pelo cientista político americano Timothy Power, que observa a relutância dos políticos brasileiros em se assumir como direitistas – preferem se autoclassificar como “centro-esquerda”. Power acredita que isso se deve à identificação do conservadorismo com a ditadura, e afirma que a direita estava se reconstruindo com base no liberalismo econômico. Isso poderia ser verdade para a década de 1990, mas acredito que a política recente tomou outro rumo, menos polarizado nesse aspecto.

Infelizmente a convergência também se manifesta na frequência com que os principais partidos se envolvem em escândalos de corrupção. Nesse aspecto, a renovação tem que vir de fora, por iniciativa da população. A rebelião dos brasilenses me fez pensar nas “puebladas” da Argentina da década de 1990, as mobilizações populares que estouraram em diversas províncias e por fim chegaram à capital em dezembro de 2001. Será que testemunhamos a eclosão de algo semelhante no Brasil?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O Engenheiro


A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro
O engenheiro pensa, sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número;
o engenheiro pensa o mundo justo
mundo que nenhum véu encobre...


João Cabral de Mello Neto

“Eliezer Batista – o engenheiro do Brasil”, de Victor Lopes, é um belo documentário que conta a trajetória de um dos mais importantes pensadores da estratégia de desenvolvimento brasileiro do século XX, o homem que por duas vezes presidiu a Vale do Rio Doce, que foi fundamental para a construção dos portos de Tubarão e de Sepetiba, para a exploração da maior província mineral do planeta, Carajás, um pioneiro da internacionalização de empresas nacionais que revolucionou a logística da mineração e que por duas vezes foi ministro de Estado. Por meio da história de sua vida, é possível entender muitas das transformações pelas quais o país passou, e analisar os desafios dos próximos anos.

Eliezer nasceu numa pequena cidade de Minas Gerais e se formou em engenharia no Paraná. Foi trabalhar com os americanos que construíam a ferrovia Vitória-Minas e no cargo aprendeu o que eram então as técnicas mais sofisticadas de construção, que conviviam com um cenário de miséria rural – ainda hoje, décadas depois, Eliezer chora ao lembrar as condições de vida dos trabalhadores que comandava. Foi para a Alemanha cursar pós-graduação e lá se casou com Jutta, uma mulher extraordinária, lembrada com carinho pelos que a conheceram. Foi um matrimônio feliz que resultou em sete filhos, o mais famoso dos quais, o empresário Eike, é atualmente o homem mais rico do Brasil.

O jovem engenheiro fez carreira na Vale, então uma pequena mineradora que enfrentava problemas logísticos aparentamente insolúveis. Eliezer ascendeu na empresa até se tornar seu presidente e mudou a mineração mundial: apostando na demanda crescente do Japão por minérios, elaborou um sistema pelo qual navios gigantescos, com capacidade para 100 mil toneladas, saíam do Brasil e levavam a carga até a Àsia, voltando carregados com o petróleo do Oriente Médio. Para viabilizar a operação, construiu ferrovias e portos modernos. Pequeno detalhe: os maiores navios à época levavam 40 mil toneladas. Ele precisou convencer os estaleiros a apostar em tamanhos ampliados, para obter as economias de escala necessárias para competir com a Austrália, então a principal fornecedora do Japão.




O presidente João Goulart o nomeou ministro das Minas e Energia, e a ditadura militar instalad a em 1964 considerou Eliezer inimigo e comunista – pesavam suspeitas por sua preocupação social com os trabalhadores. Ele ficou dez anos afastado do serviço público, trabalhando para mineradoras privadas na Europa e nos EUA, mas acabou voltando à Vale para articular a conquista de novos mercados internacionais. O presidente João Figueiredo o reconduziu à presidência da empresa e o encarregou de desenvolver a província mineral de Carajás, construindo um complexo de minas, ferrovias e porto.

Collor o apontou ministro dos Assuntos Estratégicos, na reforma ministerial que tentou evitar o impeachment formando um gabinete de notáveis. Nos poucos meses em que ocupou o cargo, Eliezer lançou projetos importantes que se concretizaram em anos posteriores, como a integração da infraestrutura da América do Sul.

O filme de Victor Lopes tem, entre outros méritos, o de mostrar a extraordinária simpatia humana de Eliezer. Aos 85 anos, é lúcido, bem-humorado, exímio contador de histórias e continua muito ativo, pensando idéias para o desenvolvimento do estado do Rio de Janeiro, como consultor da Federação de Indústrias. Dele veio a inspiração para o pólo metal-metânico em Resende e Porto Real, e para o arco rodoviário que ligará o porto de Sepetiba ao aeroporto internacional do Galeão.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Duas Eleições: Uruguai e Honduras



As eleições presidenciais do Uruguai e de Honduras, ambas realizadas no domingo passado, mostram duas faces opostas da política na América Latina.

No Uruguai, o ex-guerrilheiro Tupamaro José Mujica foi escolhido presidente numa campanha bastante tranquila, em especial se levarmos em conta que incluiu dois plebiscitos sobre temas extremamento polêmicos: a revogação da lei de anistia contra militares que cometeram violações de direitos humanos na ditadura e a descriminalização do aborto. Ambas as mudanças foram rejeitadas pela população.

Em Honduras, cinco meses após o golpe contra Zelaya, cerca de metade dos eleitores compareceu às urnas e elegeu o candidato conservador, Porfírio Lobo. Houve conflitos de rua no país e o alto nível de abstenção mostrou a fragilidade da votação. Mas a comunidade internacional já tende para a aceitação do novo governo. EUA, Colômbia, Peru, Costa Rica e Panamá já se manifestaram a favor, a Espanha deu indicações de que fará o mesmo. O Brasil segue recusando-se, mas levou reprimendado presidente da Costa Rica, Oscar Arias, veterano mediador de conflitos e Nobel da Paz, que criticou “certos países” que questionavam a democracia em Honduras mas acreditavam que estava tudo bem com as eleições no Irã.

O presidente eleito do Uruguai tem como vice o ministro da Fazenda de Tabaré Vázquez Danilo Astori, bastante conservador em sua gestão da economia. A escolha desse companheiro de chapa aponta para um governo que continue as políticas ortodoxas de Vázquez, natural já que ambos são da Frente Ampla. Mujica tem pela frente a tarefa de enfrentar a pressão internacional da OCDE contra os aspectos menos transparentes do sistema financeiro uruguaio. Curioso desafio para um ex-militante de um dos mais ativos grupos guerrilheiros do continente.



O novo mandatário de Honduras é o típico político centro-americano: um latifundiário conservador que, sinal dos tempos, acena com o desejo de implementar um programa ao estilo do Bolsa Família em seu país. Seria, claro, uma maneira inteligente de reaproximar-se do Brasil e pelo andar dos desdobramentos internacionais isso deverá acontecer mais cedo ou mais tarde. Sem consenso quanto às eleições hondurenhas mesmo na América do Sul, o desgaste para o governo brasileiro em sustentar sua posição atual será grande. E ainda há a questão da permanência de Zelaya na embaixada em Tegucigalpa.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Brasil e Irã



O Irã é uma potência regional no Oriente Médio e um ator de destaque em vários conflitos locais, no Líbano, Palestina e Afeganistão. É um mercado promissor para o agronegócio. As duas características, somadas, o tornam um interlocutor importante para o Brasil, nesta conjuntura em que o país almeja maior presença no Oriente Médio e que, numa impressionante demonstração de prestígio internacional, recebe em poucos dias três chefes de Estado da região. Contudo, a visita do mandatário iraniano ao Brasil ocorre em péssimo momento: em meio à crescente pressão diplomática contra seu programa nuclear, e logo depois de uma violenta onda repressiva contra seu movimento democrático.

Ao longo do século XX, o Irã sofreu diversas invasões: da Gra-Bretanha, da União Soviética, do Iraque. Os Estados Unidos intervieram de forma brutal em sua política, em particular no golpe de Estado da década de 1950 contra o regime nacionalista que asssumiu o controle da indústria do petróleo. Desde a Revolução Islâmica de 1979, os dois países vivem em conflito. Nos primeiros anos do século XXI, o Irã viu seu vizinho mais importante ser ocupado por exércitos estrangeiros, liderados pelos EUA e pelo Reino Unido. Além disso, o país se envolveu em guerras religiosas, apoiando grupos xiitas no Líbano e na Palestina, e enfrentando Israel em batalhas clandestinas que chegaram até a Argentina. Nesse contexto, não causa espanto que Teerã busque armas nucleares.

Tampouco provoca surpresa que as grandes potências – inclusive Rússia e China - rejeitem esse pleito. O Irã é uma força desestabilizadora numa região turbulenta, seu xiismo militante apavora os Estados sunitas, numa mistura de milenares rivalidades religiosas, culturais e étnicas (árabes contra persas). Seu virulento antissemitismo é recente, em parte fruto da rejeição da Revolução Islâmica aos entendimentos entre Israel e o xá Reza Pahlevi contra inimigos comuns, como o nacionalismo árabe.

O presidente Lula foi cauteloso ao afirmar que o apoio brasileiro ao programa nuclear iraniano está condicionado ao caráter pacífico dessa iniciativa, e ao respeito às normas internacionais. Contudo, nas condições atuais, receber Ahamadinejad significa ajudá-lo a romper o cordão de isolamento que os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU tentam construir a seu redor. Indispor-se com os integrantes desse clube seleto não é a melhor maneira de candidatar-se a fazer parte do grupo.



Além do programa nuclear, há a questão das violações de direitos humanos perpretadas pelo governo iraniano, em particular a repressão aos protestos contra a reeleição de Ahamadinejad em 2009. Mesmo que aceitemos as alegações de Teerã de que não houve fraudes na votação, nada justifica as prisões arbitrárias e torturas cometidas pelo regime. A violência foi tão grande que provocou uma cisão na elite do país, com os clérigos da cidade sagrada de Qom lançando uma inédita manifestação contra o governo.

Naturalmente, o Irã não está sozinho em seu autoritarismo. Podemos fazer uma analogia, por exemplo, com o massacre da praça da Paz Celestial na China, em 1989. A diferença é que no caso chinês se trata de uma grande potência, cujo enorme poder dá pouco espaço para questionamentos e negociações. Mas uma relação política intensa com o Irã é uma opção, não uma necessidade. Uma escolha que precisa levar em conta os impactos para um momento em que a política externa brasileira frisa a importância da preservação da democracia em Honduras, onde há o risco de criar um precedente para o retorno do golpismo na América Latina.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Duque de Caxias: por trás do monumento



Li por estes dias a excelente biografia “Duque de Caxias: o homem por trás do monumento”, da historiadora Adriana Barreto de Souza. Ela se soma ao ótimo perfil do general Osorio, de autoria de Francisco Doratioto, para compor um panorama contemporâneo dos dois principais líderes militares brasileiros do século XIX. Para quem se acostumou com a imagem de um Brasil pacífico, impressiona observar o quanto os conflitos bélicos foram essenciais para a política do país nas primeiras décadas de vida independente.

O maior mérito do livro de Adriana de Souza é mostrar como a excepcional trajetória de Caxias se inseriu no contexto de ampla teia de relações pessoais e familiares, que se iniciou com a aposta de seu tio-avô, ainda no século XVIII, de emigrar de Portugal ao Brasil, em busca de oportunidades de acensão social que inexistiam na Europa. Foi o início de uma dinastia militar que galgou passo a passo as principais hierarquias na Colônia e no jovem império, aproveitando as oportunidades criadas pelas guerras no Prata, pela vinda da família real, pela Independência e mais tarde pela necessidade de debelar as rebeliões provinciais durante a Regência.

Embora Caxias tenha se tornado célebre como líder conservador do Segundo Reinado, a história de sua família está ligada aos liberais. Seu pai e tios serviram com distinção a dom Pedro I, ajudando a combater os vestígios do domínio colonial na Bahia, e a reprimir as manifestações populares contrárias ao monarca. Contudo, o imperador privilegiava os oficiais nascidos na Europa e vivia às turras com os parentes de Caxias. O pai do futuro duque foi decisivo nas mobilizações cívico-militares que culminaram na Abdicação de dom Pedro, e chegou mesmo a ser Regente do Império.

As turbulentas décadas de 1830 e 1840 foram fundamentais para Caxias. Já tinha impressionante experiência militar, nas guerras no Nordeste e na Cisplatina. Jovem major, tornou-se o chefe de polícia do Rio de Janeiro e se mostrou muito eficiente no ofício, que à época era muito delicado politicamente porque significava arbitrar conflitos entre liberais moderados e radicais, conservadores, militares e civis, negros libertos, escravos e brancos. É um período pouco estudado pelos biógrafos de Caxias, mas Adriana de Souza argumenta que foi essencial porque nele Caxias conquistou a confiança de diversos líderes políticos que impulsionaram sua carreira, do regente liberal padre Diogo Feijó (uma figura fascinante que merece ser mais pesquisada) aos expoentes do Regresso conservador que seriam os responsáveis pela maioridade precoce de d. Pedro II.



Tal credibilidade é que permitiu ao então coronel ser enviado ao Maranhão para enfrentar a rebelião dos Balaios. Ele se mostrou extremamente habilidoso na guerra e nas negociações políticas, e a autora nos explica como a perícia diplomática era vital para coordenar um Exército pouco profissionalizado, com baixa disciplina, muito semelhante às Forças Armadas do Antigo Regime. Caxias voltou do Nordeste general e nobre – barão. Daí em diante foi uma sucessão de vitórias: contra as rebeliões liberais em Minas Gerais e São Paulo (nesta, ele prendeu seu antigo chefe, padre Feijó) e a luta épica contra a Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, onde encerrou um conflito de dez anos, numa vitória que lhe rendeu o título de conde e o cargo, vitalício, de senador do Império.

Um dos tios de Caxias havia sido líder farroupilha, e morreu no conflito. Lembrete do custo que as guerras civis do século XIX trouxeram para tantas famílias brasileiras. Outro ponto importante da experiência no Sul é como os embates dos gaúchos contra o Império estavam vinculados ao cenário internacional, das disputas com o Uruguai e a Argentina, no que foi, de fato, algo muito próximo a uma guerra civil sem fronteiras no Cone Sul. Que está a pedir uma abordagem histórica igualmente cosmopolita, e não as perspectivas nacionais tradicionais.

Adriana de Souza toca de leve nas vinculações entre os líderes militares e os partidos políticos, que era extremamente forte no século XIX. Os interessados podem ler o perfil que Doratioto escreveu de Osorio, que dá grande destaque à atuação do general entre os liberais. Caxias destacou-se como símbolo de um Estado forte e centralizado. Características que o tornaram incômodo para a Primeira República, mas que o fizeram ser redescoberto pelo Estado Novo.

Sua biografia se encerra com a vitória de Caxias sobre os farrapos. Resta torcer para que siga adiante em seu trabalho e conte também seu período na alta política Imperial e na guerra do Paraguai.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Cesare Battisti e a Itália de Chumbo



Depois de confuso e controverso processo no Supremo Tribunal Federal, é improvável que o presidente Lula decida extraditar Cesare Battisti à Itália, país no qual ele foi condenado por diversos crimes, em sentenças posteriormente confirmadas por tribunais da França e pela Corte Européia de Direitos Humanos. Manter Battisti no país viola o tratado de extradição entre Brasil e Itália e por isso o Ministério das Relações Exteriores e o Comitê Nacional para os Refugiados se opuseram à concessão do refúgio.

Os debates sobre o caso Battisti no Brasil dedicaram pouco espaço à análise da conjuntura da Itália nos anos de chumbo e é isso que pretendo fazer neste post – como possuo dupla cidadania, brasileira e italiana, a crise entre os dois países me diz respeito de perto.

Nas décadas de 1960 e 1970 a Itália enfrentou problemas sérios de violência política. Era uma jovem e frágil democracia, e muitos de seus líderes tiveram papéis de relevo no regime fascista. Isso levou a nova geração do pós-guerra a desprezá-los, e questionar a legimitidade de instituições representativas vistas como anêmicas e pouco mais do que uma cortina de fumaça para o domínio da elite tradicional. Os ativistas de extrema-esquerda formaram grupos armados, dos quais o mais conhecido foram as Brigadas Vermelhas. Houve equivalentes da extrema-direita, a ação de esquadrões neofascistas se tornou notória, em particular no norte do país.

O Partido Comunista Italiano (PCI), em seus anos de glória, era conhecido pelo brilhantismo intelectual de seus dirigentes, do naipe de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti. Embora sem conquistar o poder no nível nacional, o PCI se estabeleceu como bom administrador regional no centro-norte, em particular em Bolonha, a “cidade vermelha”.

Na década de 1970, o PCI criou o “eurocomunismo”, rompendo com o autoritarismo soviético e se firmando como alternativa plausível ao poder. Foi então que o primeiro-ministro Aldo Moro, da democracia-cristã optou pela política do “compromisso histórico”, de aliança com os comunistas. Isso foi demais para os radicais e nesse contexto as Brigadas Vermelhas sequestraram e mataram Moro. Apesar da esquerda moderada sempre ter condenado esse tipo de ação, muitos analistas acreditam que o terrorismo dos pequenos grupos comunistas a atingiu, eliminando suas chances de ascender à chefia de governo. Isso só aconteceu no pós-Guerra Fria, com o sucessor bem mais conservador do PCI, o Partido Democrático de Esquerda.



Cesare Battisti havia sido por roubo, na prisão conheceu radicais políticos e se juntou ao grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), uma dissidência das Brigadas Vermelhas que rompeu com a organização principal por achar suas estruturas decisórias muito centralizadoras. A segunda foto deste post os mostra em ação e se tornou uma das imagens mais conhecidas dos anos de chumbo da Itália. Battisti foi condenado por envolvimento em quatro homicídios cometidos pelo PAC, alguns contra policiais e militantes fascistas, outros contra comerciantes que reagiram a assaltos. Ele nega ter participado desses crimes, mas os tribunais de dois países e da União Européia concluíram de forma contrária.

Battisti foi preso na Itália, mas fugiu e rumou para a França, onde ficou alguns anos sob a proteção da Doutrina Mitterand. O presidente francês, ansioso por agradar a seus aliados comunistas, críticos de sua política econômica, havia decidido abrigar os ativistas políticos de esquerda condenados em outros países. A Doutrina foi abolida na década de 2000, pela pressão dupla de governos conservadores e dos tribunais europeus, que a julgaram incompatível com as leis anti-terrorismo do continente. Battisti passou à clandestinade na França e veio para o Brasil.

O Ministro da Justiça, Tarso Genro, baseia sua decisão de conceder refúgio a Battisti em dois argumentos principais: seus crimes teriam sido de natureza política e os tribunais italianos não teriam legitimidade para agir de forma independente do Executivo – em sua declaração mais recente, o governo Berlusconi seria um exemplo de “fascismo galopante”.

A Justiça brasileira entende “crime político” como aquele em que a vítima é condenada em função de sua opinião. Essa definição exclui, por exemplo, assassinatos cometidos por motivação política. Se não fosse assim, Bin Laden teria que ser acolhido no Brasil, segundo a classificação de Genro.

Quanto à avaliação que o ministro faz do regime político italiano, ela pouco importa. Afinal, Battisti também foi condenado na França e na Corte de Direitos Humanos da União Européia.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

São José dos Campos: desenvolvimento à brasileira



Na semana passada estive em São José dos Campos, para dar aulas em um Seminário de Altos Estudos promovido no Parque Tecnológico local. Foi uma experiência enriquecedora: lecionar relações internacionais para um público não-acadêmico e, simultaneamente, conhecer de perto a fantástica experiência do pólo aeronáutico da cidade.

A coordenação do Seminário me havia pedido um programa que abordasse as transformações contemporâneas na política internacional, com ênfase na América Latina. Estruturei as aulas a partir de reflexões sobre o que aconteceu após a queda do Muro de Berlim e expus aos alunos um pouco dos debates sobre a nova ordem internacional: os avanços e impasses da União Européia, a ascensão dos BRICs etc. Um dos temas que mais mobilizou a turma foi em que medida a globalalização econômica cria oportunidades para países em desenvolvimento e usei a fórmula do professor de Harvard Dani Rodrik - “uma economia, muitas receitas”. Dito de outro, modo, os mercados estão cada vez mais interdependentes, mas cada país tem que procurar a melhor maneira de se integrar a esses fluxos internacionais. Tais escolhas são fruto de muitos conflitos sociais e visões de mundo de suas elites e populações, mas também se explicam em função da história local e de decisões tomadas às vezes em décadas anteriores.

Ilustrei o ponto com o próprio exemplo de São José dos Campos. A cidade foi modificada para sempre com a decisão da Aeronáutica, nos anos 1940, em instalar ali um Centro Tecnológico e um estupendo instituto de engenharia, de padrão internacional. A concentração de mão-de-obra qualificada acabou propiciando o que hoje se conhece como um “cluster de desenvolvimento”, a concentração de empresas de tecnologia avançada, centros de pesquisa e universidades num mesmo espaço geográfico, com significativos ganhos em inovação e economias de escala – Paul Krugman recebeu um Nobel por estudar tais fenômenos. O Vale do Silício, na Califórnia, é um exemplo de cluster na área de informática.

A Embraer é a filha mais famosa de São José dos Campos e pedi aos alunos que imaginassem o presidente de um país pobre que quisesse replicar o modelo para competir no mercado global de aviões. Precisaria de anos, embora pudesse economizar erros aprendendo com a experiência alheia e recorrendo à universidades estrangeiras para formar profissionais. Em seu período inicial, o próprio Instituto Tecnológico de Aeronáutica do Brasil se valeu bastante de docentes oriundos dos Estados Unidos, ainda no contexo de cooperação intensa entre os dois países, no início da Guerra Fria. Hoje, ironias da História, um belo avião Super Tucano fabricado pela Embraer está em frente à sede do complexo da Força Áerea na cidade – o mesmo modelo de avião que o Brasil tentou vender à Venezuela de Chávez, numa operação vetada pelo governo americano. A proibição foi possível pela presença de componentes dos EUA na aeronave.

Naturalmente, um dos temas nas conversas sobre América Latina foi o redespertar do interesse por Defesa nos países da região e expus brevemente o cenário para os principais países. A presença de tantos profissionais da indústria aeronáutica enriqueceu muito os debates e aprendi bastante sobre as diversas possibilidades e limitações da transferência de tecnologia nos três concorrentes do pacote de caças que a Força Áerea Brasileira quer adquirir. Enquanto o automóvel da organização me conduzia a 120 Km/h na moderna rodovia rumo ao aeroporto de São Paulo, tentei arrumar a cabeça para entender este admirável Brasil novo e seu imenso potencial. Receio que vou precisar de muitos anos para isso.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

A Guerra da Sucessão Hondurenha



A decisão do governo golpista de Honduras de desrespeitar o acordo de votar pela volta de Zelaya aponta para um cenário bastante ruim, que pode colocar em risco a legitimidade das eleições presidenciais que serão realizadas em 29 de novembro. Segundo as notícias mais recentes, o Congresso decidiria sobre o destino de Zelaya apenas no dia 2 de dezembro. É muito questionável que a votação ocorra em boas condições e há a possibilidade de que a oposição ao golpe não aceite os resultados. A questão divide a OEA: os Estados Unidos apoiam a realização das eleições, mesmo com Zelaya fora do poder, os países da América Latina são contrários.

Como a economia de Honduras é extremamente dependente dos mercados dos EUA, mas têm relativamente poucos vínculos com os vizinhos do continente, a divisão da OEA indica uma situação de instabilidade, em que Washington reconheceria o presidente eleito, e as nações latino-americanas, não. Segundo noticiou o Valor, as autoridades brasileiras estudam limitar as relações diplomáticas com Honduras a um patamar mínimo, inclusive retirando o embaixador.

A ambiguidade da OEA criaria um precedente perigoso, em particular para países que passaram por riscos recentes de golpes, na América Central e na região Andina. Grupos que queiram derrubar governantes controversos, mas eleitos democraticamente, podem muito bem concluir que ações violentas compensam, contanto que consigam resistir por alguns meses e evitem determinados erros. Por exemplo, permitir que o presidente deposto busque refúgio no exterior.

Zelaya escreveu uma carta a Barack Obama acusando os Estados Unidos de terem-no abandonado em seus esforços para voltar à presidência, e anunciou que não aceitará um acordo com o governo golpista. A Venezuela, seu principal patrono político, passa por muitas dificuldades. Além da tensão com a Colômbia (que abordei no post anterior), nesta semana o país entrou recessão e ainda foi declarado o mais corrupto da América Latina. Com aliados como esses, Zelaya dificilmente precisa de inimigos.

A crise de Honduras conseguiu deixar em situação contrangedora quase todos os países envolvidos com seus turbulentos acontecimentos e o mesmo acontece com os Estados Unidos, numa demonstração de indecisões e vacilações que ilustram a falta de diretrizes claras do governo Obama com relação à América Latina. Na excelente definição de um amigo com quem conversei sobre o tema, a região “hoje oferece para os EUA mais custos do que benefícios”. Ir contra as nações do continente em um assunto tão delicado quanto a preservação da democracia confirma os piores esteriótipos sobre a política externa americana, e se afasta das promessas de Obama em deixar para trás os fantasmas desse relacionamento.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Nação, Território e Conflitos



Nunca antes na história democrática deste continente houve tantos conflitos em torno de recursos naturais e controle de território. Na mesma semana tivemos a eclosão de mais um ciclo de rusgas entre Colômbia e Venezuela, e outra rodada de embates entre Chile e Peru. Além disso, persiste a disputa entre Argentina e Uruguai em torno do uso das águas do rio que divide os dois países. Todas estas questões extrapolaram os canais convencionais de diálogo e negociação bilaterais e com frequencia resultaram na mediação de instituições internacionais ou terceiros países.

É um comportamento político discrepante das expectativas das teorias de relações internacionais. Elas nos dizem que a conjugação de processos de integração regional com a democratização dos países da América Latina deveriam ter levado a um cenário mais calmo e estável. De fato, isso foi o que aconteceu nos anos iniciais do retorno da democracia. Por exemplo, a ditadura militar da Argentina quase foi à guerra contra o regime autoritário do Chile, e manteve um tenso conflito com o do Brasil, tentando impedir a construção da usina de Itaipu. As mudanças políticas no Cone Sul provocaram a resolução dessas questões e um grau bastante elevado de entendimento entre os três países, inclusive em áreas extremamente sensíveis como a energia nuclear, e na aprovação pelo povo argentino, em plebiscito, de um acordo com o governo chileno de Pinochet que resultou em perda territorial para o país.

Os raros conflitos territoriais da década de 1990 pareciam confirmar a regra da “paz democrática”, como foi o caso da Guerra do Cenepa entre Peru e Equador, que envolveu o regime autoritário do peruano Alberto Fujimori. Democracias não fazem guerras entre si, prega a teoria, e o bom senso e a liberdade de expressão terminam por levar a compromissos nos quais cada lado cede uma parte.

O que houve na década de 2000 para reverter essa tendência progressista e trazer novamente à agenda pública ataques de nacionalismo grosseiro e estridente, que pareciam enterrados com as ditaduras militares do continente? A meu ver, é uma mistura de causas que envolvem transformações na economia internacional e no jogo de conflitos doméstico.



Do ponto de vista global, a ascensão de uma China faminta pelas commodities latino-americanas deu novo valor aos recursos naturais do continente, aumentando também a atratividade do prêmio para quem os controla. Passou a ser interessante, por exemplo, que Chile e Peru disputem os limites marítimos de uma área rica em minérios e pesca, e que o Uruguai invista pesadamente na produção de celulose, mesmo diante da preocupação da Argentina com o impacto ambiental e a perda do turismo.

Na perspectiva do conflito doméstico, os anos recentes foram marcados por polarização política, sobretudo nos países andinos e pela ascensão de novos movimentos de esquerda que não usam mais a linguagem tradicional da luta entre classes sociais, recorrendo a estratégias de retórica e mobilização que se valem de categorias mais abrangentes como “nação” e “povo”, construídas em oposição a inimigos externos (sobretudo os Estados Unidos, mas também Colômbia ou Chile), ideologias (“neoliberalismo”, “imperialismo”) ou às elites nacionais. Em grande medida essas mudanças refletem transformações na estrutura econômica: não faz mais sentido falar na organização do proletariado em países onde a maioria dos trabalhadores pobres migrou para o setor informal, em quadro de extrema precarização do emprego.

Nada mobiliza mais uma nação ou povo do que a identificação comum contra um inimigo externo e a causa da defesa do território nacional tem sido bastante adotada por Hugo Chávez em suas diatribes contra a Colômbia, os Estados Unidos e no uso da antiga disputa territorial com a Guiana. Se essa estridência nacionalista é compatível com a preservação da paz e da democracia na região, só o tempo dirá, mas os exemplos históricos não nos autorizam otimismo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Mundo se Despedaça



Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.


W.B. Yeats


O romance Things Fall Apart, do nigeriano Chinua Achebe, foi publicado em 1958 e é o marco do nascimento da moderna literatura africana. Contemporâneo às primeiras lutas de independência do continente, narra de maneira magistral o esfacelamento da sociedade tradicional da região diante da chegada dos colonizadores britânicos. Em boa hora a Companhia das Letras lança nova tradução brasileira, “O Mundo se Despedaça”, pois o livro há muito estava esgotado no país. O livro vem com breve mas esclarecedora introdução do diplomata Alberto da Costa e Silva, que foi embaixador do Brasil na Nigéria e é um dos mais importantes estudiosos nacionais sobre a África.

O romance é ambientado em duas aldeias do povo Ibo, no território que atualmente é o Sudeste da Nigéria. O protagonista é Okonkwo, um homem corajoso e trabalhador que conquistou o respeito de sua comunidade por sua bravura na guerra e dedicação na agricultura. Mas é um herói trágico: pois suas muitas qualidades convivem com o desprezo que sente pelo pai, já falecido, que era preguiçoso e incompetente, motivo de piada para parentes e vizinhos. Na ânsia de sempre provar que é diferente, Okonkwo se torna duro e amargo mesmo com relação àqueles que ama. Essas características o levarão a uma série de conflitos familiares, de sérias conseqüências para os Ibo.

O que torna Okonkwo explosivo é o momento delicado em que vive, quando os britânicos começam a se instalar em definitivo no interior da Nigéria. Até então, os Ibo tinham acesso às mercadorias trazidas pelos europeus, mas não haviam entrado em contato direto com os brancos, e até duvidavam de sua existência. Aos poucos, os britânicos chegam. Os missionários aparecem, e a mensagem igualitária do cristianismo atrai os humilhados e ofendidos da sociedade Ibo, todos aqueles desprezados pelo rigoroso código de honra local. O novo Deus entra em conflito com a antiga religião, e logo chegam juízes e soldados para mediar as disputas. Okonkwo tenta organizar uma revolta, apenas para descobrir que os britânicos haviam cortado as fibras que mantinham a sociedade Ibo unida, explorando habilmente suas divisões.

Achebe é um filho dos dois mundos, seus pais eram professores numa escola missionária e ele recebeu a melhor educação disponível na África colonial, inclusive estudando na universidade que os britânicos criaram para educar a futura elite nigeriana. Ele escreve em inglês, a língua do colonizador, e retira o título de seu livro de um poeta irlandês. Ao mesmo tempo, narra com maestria os costumes Ibo, que aos brasileiros soam familiares – muitos deles foram trazidos como escravos ao país, e com eles vieram o azeite de dendê e o som do agogô, muito mencionados no romance.